No intuito de dirimir algumas distorções do entendimento de 1 Co 11, quanto ao uso do véu e seu simbolismo cúltico, convido a todos a leitura do artigo publicado na Revista Orácula(*) da UMESP, “Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas” de Anderson Dias Araujo.
Convém, neste
estudo, darmos atenção ao simbolismo social do uso do véu e do cabelo, para
homens e mulheres, nas sociedades mediterrâneas antigas. Diversos estudos
indicam que o uso do véu e estilo de penteado possuíam uma simbologia própria
no que tange a diferenciação dos sexos e comportamento social.
O uso do véu tem
uma história muito antiga. Os primeiros indícios de uso do véu remontam a
Suméria. Os sumérios foram um povo extremamente inovador. Legaram a posteridade
a escrita, a irrigação, a roda, a astronomia, a literatura e, também, o uso do
véu no contexto religioso, como veremos a seguir.
Heródoto relata
que na cidade onde havia o templo da deusa Mylitta, toda mulher era solicitada,
uma vez em sua vida, a visitar aquele templo, e provavelmente na maioria dos
outros templos ao longo da Suméria e lá deveria permanece até que um estranho
arremessasse uma moeda de prata sobre seu colo e a levava embora com ele, para
então receber a benção da deusa do templo. As mulheres se sentavam em um
recinto santo do templo, cada uma coberta por um véu sobre a cabeça. Os homens
deveriam passar por aquele local e escolher uma mulher com a qual teria
relações sexuais. A mulher, uma vez que tivesse tomado assento, não poderia
retornar para sua casa, até que um estranho a tivesse escolhido. Ao ser
escolhida, não poderia recusar em ir com o indivíduo que a escolheu, pois isto
era determinado pelas leis e a escolha era considerada sagrada.
O homem ao laçar a
moeda dizia as seguintes palavras. Que a deusa Mylitta te faça próspera. Ao
aceitar a escolha e ir com o homem a mulher teria cumprido sua obrigação para
com a deusa, só então poderia retornar para sua casa. Cria-se que, à mulher,
após cumprir sua obrigação, nenhuma dádiva lhe seria recusada. Algumas
mulheres, por seu porte e beleza, logo eram escolhidas, outras, contudo,
permaneciam no recinto do templo por longos períodos até que pudessem cumprir a
lei. A partir deste início tímido, o legado sumério do uso do véu extrapolou as
fronteiras do contexto religioso da prostituição sagrada e se estendeu para o
cotidiano das mulheres das diversas sociedades semitas e indo-europeias,
adquirindo simbologia e sentidos próprios no que tange a diferenciação de gênero
e comportamento social.
A seguir, serão
vistas com mais detalhes algumas práticas concernentes ao uso do véu e penteado
de cabelo e se finalizará com uma análise de como a mulher era vista no
contexto literário judaico do período intertestamentário.
Uso do véu e
estilo de penteado para mulheres e homens
Com base em estudo
filológico e na cultura material (iconografia) do mundo mediterrâneo, é
possível a conclusão de que era comum às mulheres do mundo mediterrâneo,
incluindo as de origem judia, o uso de cabelos longos; contudo, deviam atá-los
de alguma forma, de modo que não ficassem soltos. Comumente utilizavam-se tranças
enroladas ao redor da cabeça. O uso do véu também era recomendado e até mesmo
obrigatório.
Na Antiguidade, os
cabelos soltos de uma mulher (e o ato de soltá-los) frequentemente tinham
conotações sexuais. Sair em público com cabelos soltos e desvelados eram
motivos de divórcio. Corrington cita um exemplo onde o escritor romano Valerius
Maximus congratula o cônsul Gallus por sua severidade ao flagrar a esposa em
público com a cabeça desvelada. O cônsul se divorcia dela, pois a cabeça
desvelada poderia atrair o olhar e, consequentemente, a cobiça e o interesse
sexual de outro homem. A práxis da época é que as mulheres deviam na medida do
possível ficar dentro de casa, pois elas são repositório da honra masculina.
Elas precisavam ser protegidas de contatos com homens de outras economias
domésticas, que poderiam maculá-las.
No texto de Pastor
de Hermas encontra-se um exemplo bastante ilustrativo sobre o uso dos cabelos
soltos, onde se relata que alguns se perderam (pedras rejeitadas) seduzidos
pela beleza de mulheres vestidas de preto, com os ombros descobertos, cabelos
soltos e belos. Hermas e seus leitores, obviamente, reconhecem os cabelos
soltos como um símbolo de atração sexual ilícita.
Assim, a honra do
homem poderia ser ferida pela mulher. Por outro lado, os cabelos soltos ou o
ato de soltá-los e a ausência do véu poderiam conotar outros tipos de
situações, conforme nos relata Gosgrove. Nos cultos ao deus Adonis, mulheres
soltavam seus cabelos como sinal de devoção. Neste caso, o ato de soltar os
cabelos simbolizava o desvencilhamento do aparato cultural; assim a devota
entraria no rito em um estado puro e natural. Desta forma, mulher com cabelos
soltos, diante de um deus, poderia ser considerado como ato de humilhação e
reverência. A mudança de estado civil de uma mulher também requeria uma mudança
em seu estilo de penteado. Mulheres casadas ornamentavam seus penteados com
faixas algo próximo a uma tiara, porém de tecido, simbolizando
indisponibilidade sexual da mulher aos demais homens, exceto seu marido. Consequentemente,
seria vergonhoso e desonroso para uma mulher casada parecer em público com seus
cabelos soltos, exceto em algumas circunstâncias que serão vistas a seguir.
Em caso de
adultério, no contexto judaico, recomendava-se (Num 5,18-31) que os cabelos da
mulher deveriam ser soltos e, em alguns casos, expor seus seios de modo a
constrangê-la e causar vergonha. Outros exemplos em que as mulheres podiam
soltar seus cabelos são os rituais fúnebres. A expressão profunda de tristeza e
dor era acompanhada da soltura dos cabelos e, às vezes, da exposição dos seios.
Há, também, em um período mais tardio século terceiro d.C. o caso de batismos
de pagãos que desejavam aderir ao cristianismo. Neste caso, recomendava-se às
mulheres que removessem as bijuterias e soltassem seus cabelos no momento do
mergulho batismal, tirando possíveis objetos que poderiam prender os cabelos
(alfinetes, pentes, tiaras). Uma possível interpretação desta recomendação é
que no mundo antigo pensava-se que os demônios poderiam residir nestas
bijuterias.
Elisabeth Fiorenza
nos relata que
cabelos desvelados e cabeças voltadas para
baixo eram gestos típicos do culto de Dionísio, de Cibele, da Pítia de Delfos,
da Sibila, e os cabelos soltos eram necessários para a mulher produzir
encantamento mágico eficaz. [...] Cabelo esvoaçantes e soltos podiam ser vistos
também no culto de Ísis, que possuía importante centro em Corinto.
Cabelos curtos
também apresentavam conotações diferentes daquelas supracitadas. Um dos
aspectos centrais do culto a Dionísio era a troca dos papéis e dos valores
sociais. Para os homens, a devoção a Dionísio era expressa pelo uso do véu e
por cabelos compridos, enquanto as mulheres apresentavam-se desveladas e
algumas mantinham seus cabelos curtos. Mulheres com cabelos curtos ou raspados
eram tidas como mulheres masculinizadas e lésbicas. Assim, quando mulheres
mostravam certos tipos de comportamento presumivelmente próprios dos homens por
natureza, eram consideradas masculinas. Cabelos curtos também podiam ser vistos
como sinal de adultério. O autor romano Dio Chrisostomo, do primeiro século,
faz menção a uma mulher da ilha de Ciprus, que seus cabelos haviam sido
raspados pelas autoridades por motivo de adultério, com a finalidade de identificá-la
como uma adúltera (prostituta). No caso dos homens, cabelos compridos ou
estilos de penteados extremamente rebuscados sugeriam homossexualidade. Murphy
O Connor encontrou vários exemplos judaicos e não-judaicos de situações em que
cabelos compridos em homens transmitiam a ideia de homossexualidade. Também
cita os filósofos estóicos Musonius Rufus e Epíteto, que consideravam cabelos
compridos em um homem como sinal de ambiguidade sexual e uma tentativa de
diminuir a diferenciação sexual entre homens e mulheres (androgenia).
Também era costume
entre os romanos, seja em suas terras nativas ou em suas colônias, cobrirem a
cabeça durante cultos religiosos, privados ou públicos. Também é atestado que, ao
oferecerem sacrifícios ou no momento de orar, os romanos cobriam a cabeça,
utilizando para isso a toga.
Contexto social da
mulher no mundo judaico-helenista.
A diferenciação
dos papéis sociais de homens e mulheres era bastante estrita nas sociedades
mediterrâneas da Antiguidade. Os papéis sociais eram considerados como fundados
na natureza ou estabelecidos por Deus. De modo correspondente, a expectativa de
um comportamento de acordo com o gênero era extremamente grande e a confusão
dos papéis ou competência masculinos e femininos era muitíssimo desaprovada.
Por exemplo, na esfera política romana, poderia haver participação das mulheres
de homens do primeiro estrato social. Atuavam como conselheiras de seus maridos
ou filhos, exerciam influência sobre eles, permaneciam publicamente ao lado
deles, mas elas não passaram jamais de um mero poder nos bastidores do trono, o
qual elas próprias nunca podiam ocupar, e sua ingerência na política sempre foi
recebida com ressentimento. Já a participação de mulheres em discursos públicos
era considerada um escândalo.
No contexto
judaico, a mulher era tida como ameaça à virtude masculina por causa de sua
alegada voracidade sexual e moralidade precária, sendo, portanto, responsável
pela lascívia masculina. Um exemplo clássico desta posição é o texto do
Testamento de Rúben, contido no livro pseudoepígrafo Testamento dos Doze
Patriarcas, onde se lê:
As mulheres são maldosas, meus filhos; se
não possuem força nem poder sobre o homem, procuram atraí-lo por meio de
encantamentos, e se não conseguem dobrá-los por esse meio, pressionam-no com
astúcias. Sobre elas falou-me um Anjo do Senhor, ensinando-me que as mulheres
são mais sujeitas ao espírito da luxúria que os homens. Armam intrigas em seu
coração contra eles. Primeiro transformam sua mente por meio da maquiagem, e
injetam neles o veneno através do seu olhar; depois o apanham pelo ato. De
outra forma, nunca uma mulher poderia subjugar um homem. Fugi da prostituta, meus
filhos! Proibi vossas mulheres e vossas filhas de enfeitarem a cabeça e o
rosto! Pois toda a mulher que recorre a esses ardis atrai sobre si o castigo
eterno. Foi desta maneira que elas também enfeitiçaram os Guardiões [Anjos
Vigilantes] antes do dilúvio. Eles olhavam-nas constantemente, e assim
conceberam o desejo por elas [...].
Outros textos do
Testamento dos Doze Patriarcas também oferecem proveitosos exemplos. No
Testamento de Judá, por exemplo, o patriarca lamenta sua relação com Tamar, mas
esguelha-se colocando a culpa na bebida e na mulher:
.[...] É costume entre os amorreus que uma
recém-casada se coloque por sete dias às portas da cidade, para fins de
fornicação. Dado que eu tinha bebido muito vinho, não a reconheci. Iludiu-me a
sua beleza, com o adorno das suas vestes. (T. Judá 12,2-4).
E em outra parte do
testamento, Judá recomenda: “não amem o dinheiro e não olhem para a beleza das
mulheres”. (T. Judá 17,1). Exemplo semelhante encontra-se no livro de Bem Sira
Eclesiástico que oferece o seguinte conselho: “desvia teu olho de mulher
formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perderam por causa da beleza de
mulher, por sua causa o amor inflama como o fogo”.
Em outro texto
pseudoepígrafo, Salmos de Salomão, datado de cerca 125 a.C. 70 d.C., lemos: “Livra-me, oh Senhor, do
pecado sórdido, e de toda mulher maldosa que seduz o tolo. E que a beleza da
mulher criminosa não me seduza e não me engane, e que ninguém se sujeite a tal
pecado”. (S. Salomão 16,7-8). Por último temos um eloquente exemplo no texto
deuterocanônico de Judite onde ela ora a Deus e pede: “Dá-me uma linguagem
sedutora, para ferir e matar”. (Judite 9,13) para em seguida ornamentar-se com
o propósito de seduzir e matar o general do exército inimigo:
“Quando cessou de clamar a Deus de Israel
e terminou todas as suas palavras, ela se levantou da sua prostração, chamou
sua serva e desceu para a casa que ficava nos dias de sábado e de festa. Tirou
o pano de saco que vestira, despojou-se do manto de sua viuvez, lavou-se,
ungiu-se com ótimo perfume, penteou os cabelos, colocou na cabeça o turbante e
vestiu a roupa de festa que usava enquanto vivia seu marido Manasses. Calçou
sandálias nos pés, colocou colares, braceletes, anéis, brincos, todas as joias,
embelezando-se a fim de seduzir os homens que a vissem”. (Judite 10,1-5)
E após concluir
sua tarefa de forma bem-sucedida, Judite, com a cabeça de Holofernes em suas
mãos, exclama: “Viva o Senhor que me guardou no caminho por onde andei, pois o
meu rosto o seduziu, para sua perdição” [...]. (Judite 13,16).
RESUMO
Em 1 Coríntios
11,2-16 Paulo está interessado em retificar a interpretação que a igreja de Corinto
fizera de seus ensinamentos anteriores sobre a unidade de homem e mulher (Gal.
,28), a liberdade em Cristo e corrigir a prática que aquela igreja adotara ao
abandonar a diferenciação dos sexos no que se refere ao tratamento em relação
aos cabelos e ao uso do véu no ato litúrgico. O que nos chama a atenção nessa
perícope é a recomendação que Paulo faz no v. 10 para a mulher cobrir a cabeça
como sinal de autoridade, por causa dos anjos. A alusão aos anjos somada ao dever
de cobrir a cabeça da mulher como sinal de autoridade ecoam imagens similares
presentes na tradição judaica que floresceu no período intertestamentário
concernentes ao papel dos anjos na criação. Este ensaio discute de maneira
breve, as possíveis influências do Mito dos Anjos Vigilantes, desenvolvida a
partir do livro pseudoepígrafo 1 Enoque, com o objetivo de verificar se o autor
de 1 Coríntios 11,2-16 lançou mão do imaginário apocalíptico da tradição do
Mito dos Anjos Vigilantes em sua argumentação a favor do uso do véu descrita em
1 Coríntios 11,10.
Nas próximas
publicações falaremos sobre o “Mito dos Anjos Vigilantes” e a sua influência no
desenvolvimento teologia cultual/religioso do Antigo e do Novo Testamento.
Acompanhem....
ANJOS
VIGILANTES E MULHERES DESVELADAS. Uma relação possível em
1
Coríntios 11,10? Araujo, Anderson
Dias.
Fonte: Revista
Oracula 4.8 (2008) 151-156
No dia 07/7/2015, postei no meu blog o estudo “ A MULHER, A SUBMISSÃO, A IGREJA E A SOCIEDADE DO SÉC XXI”, que pode ser localizado no endereço http://prwneves.blogspot.com.br/2015/06/a-mulher-submissao-igreja-e-sociedade.html.
(*) Revista Oracula foi
criada no ano de 2005 como meio de divulgação dos projetos e produções do
Grupo Oracula de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo. Articulando professores, doutorandos e
mestrandos da área da literatura bíblica, bem como da história da antiguidade
para o estudo da apocalíptica judaica e cristã primitiva, com métodos da
história da religião e da exegese bíblica, o propósito foi, durante muito
tempo, publicar artigos sobre apocalíptica, profecia e fenômenos
visionários dos pesquisadores do grupo e de seus interlocutores no Brasil e no
exterior.
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