terça-feira, 9 de agosto de 2016

O SIMBOLISMO SOCIAL DO VÉU, NAS SOCIEDADES MEDITERRÂNEAS ANTIGAS. (parte do estudo de 1 Co 11,10)

No intuito de dirimir algumas distorções do entendimento de 1 Co 11, quanto ao uso do véu e seu simbolismo cúltico, convido a todos a leitura do artigo publicado na Revista Orácula(*) da UMESP, “Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas” de Anderson Dias Araujo. 

Convém, neste estudo, darmos atenção ao simbolismo social do uso do véu e do cabelo, para homens e mulheres, nas sociedades mediterrâneas antigas. Diversos estudos indicam que o uso do véu e estilo de penteado possuíam uma simbologia própria no que tange a diferenciação dos sexos e comportamento social.

O uso do véu tem uma história muito antiga. Os primeiros indícios de uso do véu remontam a Suméria. Os sumérios foram um povo extremamente inovador. Legaram a posteridade a escrita, a irrigação, a roda, a astronomia, a literatura e, também, o uso do véu no contexto religioso, como veremos a seguir.

Heródoto relata que na cidade onde havia o templo da deusa Mylitta, toda mulher era solicitada, uma vez em sua vida, a visitar aquele templo, e provavelmente na maioria dos outros templos ao longo da Suméria e lá deveria permanece até que um estranho arremessasse uma moeda de prata sobre seu colo e a levava embora com ele, para então receber a benção da deusa do templo. As mulheres se sentavam em um recinto santo do templo, cada uma coberta por um véu sobre a cabeça. Os homens deveriam passar por aquele local e escolher uma mulher com a qual teria relações sexuais. A mulher, uma vez que tivesse tomado assento, não poderia retornar para sua casa, até que um estranho a tivesse escolhido. Ao ser escolhida, não poderia recusar em ir com o indivíduo que a escolheu, pois isto era determinado pelas leis e a escolha era considerada sagrada.

O homem ao laçar a moeda dizia as seguintes palavras. Que a deusa Mylitta te faça próspera. Ao aceitar a escolha e ir com o homem a mulher teria cumprido sua obrigação para com a deusa, só então poderia retornar para sua casa. Cria-se que, à mulher, após cumprir sua obrigação, nenhuma dádiva lhe seria recusada. Algumas mulheres, por seu porte e beleza, logo eram escolhidas, outras, contudo, permaneciam no recinto do templo por longos períodos até que pudessem cumprir a lei. A partir deste início tímido, o legado sumério do uso do véu extrapolou as fronteiras do contexto religioso da prostituição sagrada e se estendeu para o cotidiano das mulheres das diversas sociedades semitas e indo-europeias, adquirindo simbologia e sentidos próprios no que tange a diferenciação de gênero e comportamento social.

A seguir, serão vistas com mais detalhes algumas práticas concernentes ao uso do véu e penteado de cabelo e se finalizará com uma análise de como a mulher era vista no contexto literário judaico do período intertestamentário.

Uso do véu e estilo de penteado para mulheres e homens

Com base em estudo filológico e na cultura material (iconografia) do mundo mediterrâneo, é possível a conclusão de que era comum às mulheres do mundo mediterrâneo, incluindo as de origem judia, o uso de cabelos longos; contudo, deviam atá-los de alguma forma, de modo que não ficassem soltos. Comumente utilizavam-se tranças enroladas ao redor da cabeça. O uso do véu também era recomendado e até mesmo obrigatório.

Na Antiguidade, os cabelos soltos de uma mulher (e o ato de soltá-los) frequentemente tinham conotações sexuais. Sair em público com cabelos soltos e desvelados eram motivos de divórcio. Corrington cita um exemplo onde o escritor romano Valerius Maximus congratula o cônsul Gallus por sua severidade ao flagrar a esposa em público com a cabeça desvelada. O cônsul se divorcia dela, pois a cabeça desvelada poderia atrair o olhar e, consequentemente, a cobiça e o interesse sexual de outro homem. A práxis da época é que as mulheres deviam na medida do possível ficar dentro de casa, pois elas são repositório da honra masculina. Elas precisavam ser protegidas de contatos com homens de outras economias domésticas, que poderiam maculá-las.

No texto de Pastor de Hermas encontra-se um exemplo bastante ilustrativo sobre o uso dos cabelos soltos, onde se relata que alguns se perderam (pedras rejeitadas) seduzidos pela beleza de mulheres vestidas de preto, com os ombros descobertos, cabelos soltos e belos. Hermas e seus leitores, obviamente, reconhecem os cabelos soltos como um símbolo de atração sexual ilícita.

Assim, a honra do homem poderia ser ferida pela mulher. Por outro lado, os cabelos soltos ou o ato de soltá-los e a ausência do véu poderiam conotar outros tipos de situações, conforme nos relata Gosgrove. Nos cultos ao deus Adonis, mulheres soltavam seus cabelos como sinal de devoção. Neste caso, o ato de soltar os cabelos simbolizava o desvencilhamento do aparato cultural; assim a devota entraria no rito em um estado puro e natural. Desta forma, mulher com cabelos soltos, diante de um deus, poderia ser considerado como ato de humilhação e reverência. A mudança de estado civil de uma mulher também requeria uma mudança em seu estilo de penteado. Mulheres casadas ornamentavam seus penteados com faixas algo próximo a uma tiara, porém de tecido, simbolizando indisponibilidade sexual da mulher aos demais homens, exceto seu marido. Consequentemente, seria vergonhoso e desonroso para uma mulher casada parecer em público com seus cabelos soltos, exceto em algumas circunstâncias que serão vistas a seguir.

Em caso de adultério, no contexto judaico, recomendava-se (Num 5,18-31) que os cabelos da mulher deveriam ser soltos e, em alguns casos, expor seus seios de modo a constrangê-la e causar vergonha. Outros exemplos em que as mulheres podiam soltar seus cabelos são os rituais fúnebres. A expressão profunda de tristeza e dor era acompanhada da soltura dos cabelos e, às vezes, da exposição dos seios. Há, também, em um período mais tardio século terceiro d.C. o caso de batismos de pagãos que desejavam aderir ao cristianismo. Neste caso, recomendava-se às mulheres que removessem as bijuterias e soltassem seus cabelos no momento do mergulho batismal, tirando possíveis objetos que poderiam prender os cabelos (alfinetes, pentes, tiaras). Uma possível interpretação desta recomendação é que no mundo antigo pensava-se que os demônios poderiam residir nestas bijuterias.

Elisabeth Fiorenza nos relata que

cabelos desvelados e cabeças voltadas para baixo eram gestos típicos do culto de Dionísio, de Cibele, da Pítia de Delfos, da Sibila, e os cabelos soltos eram necessários para a mulher produzir encantamento mágico eficaz. [...] Cabelo esvoaçantes e soltos podiam ser vistos também no culto de Ísis, que possuía importante centro em Corinto.

Cabelos curtos também apresentavam conotações diferentes daquelas supracitadas. Um dos aspectos centrais do culto a Dionísio era a troca dos papéis e dos valores sociais. Para os homens, a devoção a Dionísio era expressa pelo uso do véu e por cabelos compridos, enquanto as mulheres apresentavam-se desveladas e algumas mantinham seus cabelos curtos. Mulheres com cabelos curtos ou raspados eram tidas como mulheres masculinizadas e lésbicas. Assim, quando mulheres mostravam certos tipos de comportamento presumivelmente próprios dos homens por natureza, eram consideradas masculinas. Cabelos curtos também podiam ser vistos como sinal de adultério. O autor romano Dio Chrisostomo, do primeiro século, faz menção a uma mulher da ilha de Ciprus, que seus cabelos haviam sido raspados pelas autoridades por motivo de adultério, com a finalidade de identificá-la como uma adúltera (prostituta). No caso dos homens, cabelos compridos ou estilos de penteados extremamente rebuscados sugeriam homossexualidade. Murphy O Connor encontrou vários exemplos judaicos e não-judaicos de situações em que cabelos compridos em homens transmitiam a ideia de homossexualidade. Também cita os filósofos estóicos Musonius Rufus e Epíteto, que consideravam cabelos compridos em um homem como sinal de ambiguidade sexual e uma tentativa de diminuir a diferenciação sexual entre homens e mulheres (androgenia).
Também era costume entre os romanos, seja em suas terras nativas ou em suas colônias, cobrirem a cabeça durante cultos religiosos, privados ou públicos. Também é atestado que, ao oferecerem sacrifícios ou no momento de orar, os romanos cobriam a cabeça, utilizando para isso a toga.

Contexto social da mulher no mundo judaico-helenista.

A diferenciação dos papéis sociais de homens e mulheres era bastante estrita nas sociedades mediterrâneas da Antiguidade. Os papéis sociais eram considerados como fundados na natureza ou estabelecidos por Deus. De modo correspondente, a expectativa de um comportamento de acordo com o gênero era extremamente grande e a confusão dos papéis ou competência masculinos e femininos era muitíssimo desaprovada. Por exemplo, na esfera política romana, poderia haver participação das mulheres de homens do primeiro estrato social. Atuavam como conselheiras de seus maridos ou filhos, exerciam influência sobre eles, permaneciam publicamente ao lado deles, mas elas não passaram jamais de um mero poder nos bastidores do trono, o qual elas próprias nunca podiam ocupar, e sua ingerência na política sempre foi recebida com ressentimento. Já a participação de mulheres em discursos públicos era considerada um escândalo.

No contexto judaico, a mulher era tida como ameaça à virtude masculina por causa de sua alegada voracidade sexual e moralidade precária, sendo, portanto, responsável pela lascívia masculina. Um exemplo clássico desta posição é o texto do Testamento de Rúben, contido no livro pseudoepígrafo Testamento dos Doze Patriarcas, onde se lê:

As mulheres são maldosas, meus filhos; se não possuem força nem poder sobre o homem, procuram atraí-lo por meio de encantamentos, e se não conseguem dobrá-los por esse meio, pressionam-no com astúcias. Sobre elas falou-me um Anjo do Senhor, ensinando-me que as mulheres são mais sujeitas ao espírito da luxúria que os homens. Armam intrigas em seu coração contra eles. Primeiro transformam sua mente por meio da maquiagem, e injetam neles o veneno através do seu olhar; depois o apanham pelo ato. De outra forma, nunca uma mulher poderia subjugar um homem. Fugi da prostituta, meus filhos! Proibi vossas mulheres e vossas filhas de enfeitarem a cabeça e o rosto! Pois toda a mulher que recorre a esses ardis atrai sobre si o castigo eterno. Foi desta maneira que elas também enfeitiçaram os Guardiões [Anjos Vigilantes] antes do dilúvio. Eles olhavam-nas constantemente, e assim conceberam o desejo por elas [...].

Outros textos do Testamento dos Doze Patriarcas também oferecem proveitosos exemplos. No Testamento de Judá, por exemplo, o patriarca lamenta sua relação com Tamar, mas esguelha-se colocando a culpa na bebida e na mulher:

.[...] É costume entre os amorreus que uma recém-casada se coloque por sete dias às portas da cidade, para fins de fornicação. Dado que eu tinha bebido muito vinho, não a reconheci. Iludiu-me a sua beleza, com o adorno das suas vestes. (T. Judá 12,2-4).

E em outra parte do testamento, Judá recomenda: “não amem o dinheiro e não olhem para a beleza das mulheres”. (T. Judá 17,1). Exemplo semelhante encontra-se no livro de Bem Sira Eclesiástico que oferece o seguinte conselho: “desvia teu olho de mulher formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perderam por causa da beleza de mulher, por sua causa o amor inflama como o fogo”.

Em outro texto pseudoepígrafo, Salmos de Salomão, datado de cerca 125 a.C.  70 d.C., lemos: “Livra-me, oh Senhor, do pecado sórdido, e de toda mulher maldosa que seduz o tolo. E que a beleza da mulher criminosa não me seduza e não me engane, e que ninguém se sujeite a tal pecado”. (S. Salomão 16,7-8). Por último temos um eloquente exemplo no texto deuterocanônico de Judite onde ela ora a Deus e pede: “Dá-me uma linguagem sedutora, para ferir e matar”. (Judite 9,13) para em seguida ornamentar-se com o propósito de seduzir e matar o general do exército inimigo:

“Quando cessou de clamar a Deus de Israel e terminou todas as suas palavras, ela se levantou da sua prostração, chamou sua serva e desceu para a casa que ficava nos dias de sábado e de festa. Tirou o pano de saco que vestira, despojou-se do manto de sua viuvez, lavou-se, ungiu-se com ótimo perfume, penteou os cabelos, colocou na cabeça o turbante e vestiu a roupa de festa que usava enquanto vivia seu marido Manasses. Calçou sandálias nos pés, colocou colares, braceletes, anéis, brincos, todas as joias, embelezando-se a fim de seduzir os homens que a vissem”. (Judite 10,1-5)

E após concluir sua tarefa de forma bem-sucedida, Judite, com a cabeça de Holofernes em suas mãos, exclama: “Viva o Senhor que me guardou no caminho por onde andei, pois o meu rosto o seduziu, para sua perdição” [...]. (Judite 13,16).

RESUMO

Em 1 Coríntios 11,2-16 Paulo está interessado em retificar a interpretação que a igreja de Corinto fizera de seus ensinamentos anteriores sobre a unidade de homem e mulher (Gal. ,28), a liberdade em Cristo e corrigir a prática que aquela igreja adotara ao abandonar a diferenciação dos sexos no que se refere ao tratamento em relação aos cabelos e ao uso do véu no ato litúrgico. O que nos chama a atenção nessa perícope é a recomendação que Paulo faz no v. 10 para a mulher cobrir a cabeça como sinal de autoridade, por causa dos anjos. A alusão aos anjos somada ao dever de cobrir a cabeça da mulher como sinal de autoridade ecoam imagens similares presentes na tradição judaica que floresceu no período intertestamentário concernentes ao papel dos anjos na criação. Este ensaio discute de maneira breve, as possíveis influências do Mito dos Anjos Vigilantes, desenvolvida a partir do livro pseudoepígrafo 1 Enoque, com o objetivo de verificar se o autor de 1 Coríntios 11,2-16 lançou mão do imaginário apocalíptico da tradição do Mito dos Anjos Vigilantes em sua argumentação a favor do uso do véu descrita em 1 Coríntios 11,10.

Nas próximas publicações falaremos sobre o “Mito dos Anjos Vigilantes” e a sua influência no desenvolvimento teologia cultual/religioso do Antigo e do Novo Testamento. Acompanhem....



ANJOS VIGILANTES E MULHERES DESVELADAS. Uma relação possível em
1 Coríntios 11,10? Araujo, Anderson Dias.
Fonte: Revista Oracula 4.8 (2008) 151-156

 


No dia 07/7/2015, postei no meu blog o estudo “ A MULHER, A SUBMISSÃO, A IGREJA E A SOCIEDADE DO SÉC XXI”, que pode ser localizado no endereço http://prwneves.blogspot.com.br/2015/06/a-mulher-submissao-igreja-e-sociedade.html. 

(*) Revista Oracula foi criada no ano de 2005 como meio de divulgação dos projetos e produções do Grupo Oracula de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Articulando professores, doutorandos e mestrandos da área da literatura bíblica, bem como da história da antiguidade para o estudo da apocalíptica judaica e cristã primitiva, com métodos da história da religião e da exegese bíblica, o propósito foi, durante muito tempo, publicar artigos sobre apocalíptica, profecia e fenômenos visionários dos pesquisadores do grupo e de seus interlocutores no Brasil e no exterior.

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