quarta-feira, 1 de maio de 2019

MOISÉS HISTÓRICO


Por W.Neves

 

Nós conhecemos os cinco primeiros livros da Bíblia, denominado de Pentateuco (ou os cinco livros de Moisés) segundo o Cânon da Septuaginta cristianizada. São eles: Gênesis, Êxodo, Levíticos, Números e Deuteronômio. Também conhecidos na Bíblia Hebraica como Torah (Lei), conforme o Cânon massorético.

 

Em uma breve exegese do Pentateuco, poderíamos dizer que, se considerarmos Gênesis como um prólogo, os demais livros Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio narram a história da vida de Moisés do seu nascimento (Ex 2) até a sua morte (Dt 34). Tão logo se encerra a narrativa da vida dos patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó), o livro do Gênesis termina com o “Romance de José”, sua morte e embalsamamento no Egito. 

 

O livro seguinte é o Êxodo, que narra a saída dos israelitas da terra do Egito e será um tema central para o pensamento teológico veterotestamentário. O título “Êxodo”  (saída) provém dos tradutores gregos do AT, na Bíblia Hebraica esse livro é denominado de “Shemot” (os nomes), mantendo o costume que um livro seja designado por algumas das primeiras palavras que nele figuram. 

 

Enquanto no livro de Gênesis a relação com Deus é feita por indivíduos (Noé, Abraão, Jacó), no Êxodo o relacionamento é principalmente com um povo. Pode se dizer que o livro de Êxodo marca o nascimento e a “Declaração de Independência” do povo de Israel. Esse processo será conduzido pelo carismático Moisés, vocacionado e comissionado por YHVH. Moisés será o protagonista principal dos quatro últimos livros do Pentateuco, assumirá inúmeras funções no decorrer da saga, será fundador, libertador, chefe, organizador do povo (Ex. 18), mediador entre Deus e os homens (Ex. 20, 18-21), legislador (24,3.12), profeta, rei e deus (E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus. Ex. 4.16).

 

Nosso objetivo nesse breve estudo é analisar a figura emblemática desse Moisés histórico e responder as seguintes perguntas: Por que escolher Moisés como fundador e legislador de Israel? E quem foi Moisés?

 

Com toda a probabilidade, a tradição de Israel conhecia um personagem denominado Moisés. A Torah não fornece muitas informações a respeito de Moisés sob o ponto de vista histórico.  Para Jean-Louis Ska e outros pesquisadores, eles definem esse personagem com uma única imagem, o Moisés bíblico é um gigante que esconde para sempre o Moisés da história. (p.55, 2015).

 

Partindo de uma exegese histórico-critica, vejamos o que a Bíblia nos ensina sobre Moisés, do ponto de vista histórico.

 

E foi um homem da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu e deu à luz um filho; e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a revestiu com barro e betume; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à margem do rio”. Ex. 2, 1-3

 

Segundo a narrativa, Moisés é filho de pais pertencentes à tribo de Levi. O texto afirma explicitamente que Moisés é o primogênito, uma afirmação que não condiz com a referência de uma irmã velha. “De longe, uma irmã do menino observava o que iria acontecer” (v.4).

 

Na sequência, o menino é descoberto pela filha de Faraó que se enche de compaixão pelo menino hebreu “E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam, pela margem do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos, e enviou a sua criada, que a tomou. E abrindo-a, viu ao menino e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele, e disse: Dos meninos dos hebreus é este. (v. 5 e 6). Na sequência, a irmã volta à cena “Então a sua irmã disse à filha de Faraó... (v.7).

 

Vamos ler novamente o texto na integra:

E foi um homem da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu e deu à luz um filho; e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a revestiu com barro e betume; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à margem do rio. E sua irmã postou-se de longe, para saber o que lhe havia de acontecer (v4)E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam, pela margem do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos, e enviou a sua criada, que a tomou. E abrindo-a, viu ao menino e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele, e disse: Dos meninos dos hebreus é este. Então disse sua irmã à filha de Faraó: Irei chamar uma ama das hebreias, que crie este menino para ti (v7)? Ex. 2:1-7.

 

Leia novamente o mesmo texto sem os versículos 4 e 7 que estão em negrito.

 

Percebemos que os versículos 4 e 7 introduzem uma irmã mais velha de Moisés. Por isso, grande parte de exegetas entendem que a introdução da referência de uma irmã mais velha de Moisés poderia ser um acréscimo de um escriba posterior que quisesse destacar que Moisés não foi completamente abandonado por sua família. Notem que no início da narrativa a “irmã” é anônima e permanecerá anônima até o capítulo 6, somente então, serão apresentados Miriam e Aarão como irmãos mais velhos de Moisés (Ex. 6, 20,26-27; 7,6; 15,20). Embora ambos não tenham sido mencionados no relato do seu nascimento.

 

Voltando a Êxodo 2 verso 10, diz que: sendo o menino já criado, é lhe dado um nome “E, quando o menino já era grande, ela o trouxe à filha de Faraó, a qual o adotou; e chamou-lhe Moisés, e disse: Porque das águas o tenho tirado” ( v.10).

A filha de Faraó é quem dá o nome à criança, um nome egípcio e não semita.  O nome Moisés, ao contrário o que diz o versículo 10 não significa “tirado das águas”. O nome egípcio MoiSéS é provavelmente um nome abreviado, formado a partir da raiz MSS, e significa “filho de” ou “gerado por”. A mesma raiz é encontrada nos nomes próprios de Ra-MSéS (filho/gerado do deus ), de Tut-MoSiS (filho/gerado do deus Tut), de Ath-MoSiS (filho/gerado do deus Ath) conforme Gn 47,11; Ex 1,11; 12,37; Nm 33,3-5. Todavia, para Jean-Louis Ska se Israel tivesse inventado o seu fundador, teria certamente reservado para ele um nome semítico e não egípcio (2015, p.56).

 

Seus pais são Amram e Jocabed (conf. Ex. 6.16-25). O pai, curiosamente, está ausente da narrativa do nascimento e do abandono. O texto diz que a mãe (Jocabed) era tia do pai (Anram), conf. Ex 6,20 “E Anram tomou por mulher a Joquebed, sua tia”. Esse fato do ponto de vista legislativo, colocará Moisés como filho de uma união proibida pelas leis levíticas. “Não descobrirás a nudez da irmã de teu pai". (Lv 18.12-13). É interessante notar que o fato de Moisés ser um levita, e a lei do incesto está contida, exatamente, no livro do Levítico (FERNANDES, 2016, p. 181).

 

Após o relato do nascimento, o início da vida de Moisés é muito conturbado, como conturbada será a sua missão. Ele já nasce condenado a morte e viverá ameaçado de morte tanto pelos egípcios como pelo seu próprio povo. A narrativa da ordem de Faraó de matar os neonatos do sexo masculino significava reduzir e condenar a mão de obra escrava ao envelhecimento. O que é pouco condizente com a determinação de Faraó em manter essa mão de obra barata. Todavia, para Jean-Louis Ska negar esse feito, tem sérias implicações teológicas, pois a aparição de Moisés se dá exatamente no momento do infanticídio.

 

A narrativa de Êxodo, após ele ter sido milagrosamente salvo, nada mais diz sobre a infância e a juventude de Moisés. O nascimento de Moisés e sua milagrosa salvação, representam uma forma de contestação a um decreto injusto. Essas histórias de abandono e salvação milagrosa faz parte de esquemas conhecidos no passado e usados com frequência, na antiguidade. É o caso de Sargão I, rei acádio; Ciro II, rei persa; os fundadores de Roma, Rômulo e Remo; e José, filho de Jacó que foi para o Egito e se tornou o segundo homem mais importante, e Jesus Cristo, que também foi salvo, milagrosamente, por outro “José”, dito “seu pai” e conseguiu ir para o Egito, escapando do massacre de Herodes. Em todos os casos, existe o evento milagroso de crianças que abençoará os futuros acontecimentos do seu povo.

 

Fernandes (2016, p.184) comenta que segundo a lenda, Sargão foi um menino que também nasceu no segredo e foi salvo pela mãe, uma sacerdotisa (Jocabed, mãe de Moisés, era da tribo de Levi). Sargão foi encontrado por um carregador de água (ou jardineiro) que o tirou das águas, Moisés também foi retirado das águas. Sargão foi amado por Ishtar (deusa acadiana, era a mais célebre das deusas do panteão mesopotâmico), Moisés foi encontrado e adotado pela filha de Faraó, filha de um deus. 

Vejamos o texto:

Sargão, rei forte, rei de Akkad (Acádia, eu sou. A minha mãe era uma sacerdotisa, o meu pai, não sei. A minha família paterna habita a região da montanha. A minha cidade (de nascimento) é Azupiranu, que fica na margem do rio Eufrates. A minha mãe, uma sacerdotisa, concebeu-me, em segredo. Ela colocou-me numa cesta de junco, com betume ela calafetou a minha escotilha. Ela abandonou-me no rio do qual eu não podia escapar. O rio levou-me até Aqqi. Aqqi, o carregador de água ergueu-me quando mergulhou o balde. Aqqi, o carregador de água, criou-me como sendo seu filho adotivo. Aqqi, o carregador de água, colocou-me a trabalhar no seu jardim. Durante o meu trabalho no jardim, Ishtar amou-me de modo que durante 55 anos governei como um rei” (citação resumida de A lenda de Sargão, de Brain Lewis).

 

Isso soa muito parecido com a narrativa sobre Moisés em Êxodo 2. Então a história de Moisés foi plagiada da história de Sargão? Para Romer, a vita Mosis do relato do nascimento de Moisés é construído da mesma maneira que a lenda do grande rei Sargão de Akkad, traindo talvez a vontade de pôr em pé de igualdade a figura ancestral à qual se refere o Israel real e o soberano unificador da antiga Mesopotâmia. (2010, p.224). Se essa suposição for correta o fechamento do texto de Êxodo, deve ter acontecido após o retorno da Babilônia.

 

Já Ciro II, fundador do reino dos persas, era filho de Madane. Diz a lenda, que ele foi subtraído dos braços de seus pais, e condenado à morte por Astiage, rei dos Medos. Foi salvo por uma mulher chamada Cina (cão, animal sagrado Irã).  Até se tornar o grande Ciro rei dos persas. Vários exegetas consideram a aproximação literária e cronológica persa com a formação das tradições sobre Moisés pertinente. Lembrando que esse tipo de narrativa era comum na antiguidade. Existem mais de trinta casos documentados, afirma Fernandes.

 

Um outro fato complicado, está no relacionamento de Moisés com os midianitas. Ver Ex 2,15-21, após a fuga de Moisés do Egito e sua chegada em Madiã (ou Midiã). Moisés casa-se com uma mulher estrangeira (Zípora) ao passo que a lei – que ele mesmo promulgou – proíbe o casamento com estrangeiras:

Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do Senhor se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria” (Dt 7,3-4).

 

Moisés permanece com os midianitas e está em relação com eles (Ex 2,15-16; 3,1; 18,1). Embora, em outros textos, eles são cotados entre os mais detestáveis inimigos de Israel.

 “Porém os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do SENHOR; e o SENHOR os deu nas mãos dos midianitas por sete anos. E, prevalecendo a mão dos midianitas sobre Israel, fizeram os filhos de Israel para si, por causa dos midianitas, as covas que estão nos montes, as cavernas e as fortificações. Porque sucedia que, semeando Israel, os midianitas e os amalequitas, e também os do oriente, contra ele subiam. E punham-se contra ele em campo, e destruíam os frutos da terra, até chegarem a Gaza; e não deixavam mantimento em Israel, nem ovelhas, nem bois, nem jumentos. Porque subiam com os seus gados e tendas; vinham como gafanhotos, em grande multidão que não se podia contar, nem a eles nem aos seus camelos; e entravam na terra, para a destruir. Assim Israel empobreceu muito pela presença dos midianitas; então os filhos de Israel clamaram ao Senhor” (cf. Jz 6,1-6) “

 

Para finalizar sua história, Moisés é proibido de entrar na terra prometida, e morre fora dela (Dt 34,5). Diversos textos tentam explicar o motivo, mas nenhum deles consegue de maneira satisfatória (Nm 20,1-13; Dt 1, 37-38; 3, 23-28; 4,21-22).  Para Jean-Louis Ska, teria sido mais simples se a história permitisse que Moisés colocasse os pés na terra prometida (2015, p.56). Segundo a visão do historiador, Moisés histórico é uma figura que pertence ao deserto, e não a terra prometida.

Notamos que ao narrar a vida do Moisés histórico, todas as tradições foram reunidas em um único relato. A questão da historicidade desses acontecimentos suscitou e ainda suscita um amplo debate. Uma dificuldade considerável provém do fato de que a redação de nossa principal fonte de informação, se desenvolveu vários séculos depois dos acontecimentos. De fato, as fontes que serviram de base para a redação da história de Moisés, foram provavelmente múltiplas, de modo que a narrativa tal como está descrita poderia muito bem refletir um longo processo de transmissão.

 

Para Fernandes, a busca do “Moisés histórico” é uma tarefa privada de evidências. As teorias a respeito devem, no fim, se render a um fato: não há compatibilidade entre elas e a importância que o texto bíblico atribui a Moisés, que coincide com os indícios do judaísmo e não com o Moisés que se deseja encontrar nas teorias.

 

 

Referências bibliográficas

 

 

CARNEIRO, Marcelo; OTTERMANN, Monica e FIGUEIREDO, Telmo. Pentateuco – da Formação a Recepção. Paulinas, 2016.

SKA, Jean-Louis. O Antigo Testamento – Explicado aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. Paulus, 2015.

RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel e NIHAN Christophe. Antigo Testamento – História, Escritura e Teologia. Loyola, 2010.