sexta-feira, 26 de agosto de 2016

FOI, OU NÃO FOI, MOISÉS?

Passados quase dois milênios desde o cânon da Bíblia hebraica (Concílio de Jâmnia em 100 d.C.), conhecida como Tanakh para os judeus e como Antigo Testamento por nós, os cristãos, ainda persiste em nosso meio algumas dúvidas e tabús, e um deles é, quem realmente escreveu os primeiros livros do Antigo Testamento. Foi, ou não foi, Moisés?

Filkenstein e Silberman em seu livro a Bíblia desenterrada (p.14) diz que durante séculos, os leitores da Bíblia consideraram que as escrituras eram igualmente revelação divina e uma história exata transmitida por Deus para uma ampla variedade de sábios, profetas e sacerdotes israelitas. Autoridades religiosas constituídas, judaicas e cristãs, assumiram que os livros de Moisés haviam sido escritos pelo próprio Moisés antes de sua morte no monte Nebo, como narrado no livro do Deuteronômio. Os livros de Josué, dos Juízes e 1 e 2 Samuel eram, do mesmo modo, considerados registros sagrados pelo venerável profeta Samuel em Siló, e os livros de 1 e 2 Reis eram vistos como produto da pena o profeta Jeremias. Da mesma maneira, acreditava-se que o rei Davi era o autor de Salmos, e o rei Salomão, dos Provérbios e o livro de Cânticos dos Cânticos. Todavia, no despertar da era moderna, no século XVII, os eruditos que se dedicavam ao estudo literário e linguístico detalhado da Bíblia descobriram que não era assim tão simples; o poder da lógica e da razão, aplicado ao texto das sagradas escrituras, levantou questões muito problemáticas sobre a credibilidade histórica da Bíblia.

Com o passar do tempo e a quebra do paradigma do monopólio bíblico por parte da igreja, durante quinze séculos, vários estudiosos a partir do século XVII até o século XIX, intensificaram estudos críticos da Bíblia e começaram a se questionar sobre a autenticidade desses autógrafos e de várias incongruências dos textos bíblicos. A análise da evidência arqueológica atestou que não existe nenhum sinal de extensa alfabetização em Judá – e em particular em Jerusalém – até mais de dois séculos e meio mais tarde, no final do século VIII a.C. Como sabemos que a saga de Moisés dá-se no século XII a.C. e o reinado davídico e salomônico no século X a.C., ou seja, a escrita chega em Judá/Jerusalém quase 250 anos depois de Davi e 400 a 450 anos depois de Moisés.
Filkenstein comenta que “poderia Moisés realmente ter sido o autor dos cinco livros, já que o último deles, o Deuteronômio, descrevia em detalhes a hora precisa e as circunstancia de sua própria morte.” Logo, essa e outras incongruências começaram a ficar aparentes: o texto bíblico era repleto de apartes literários, explicando os antigos nomes de certos lugares e, frequentemente, observando que as evidências de célebres acontecimentos bíblicos ainda eram visíveis “até hoje”. Esses fatores convenceram alguns eruditos do século XVIII de que os primeiros cinco livros da Bíblia, pelo menos, haviam sido modelados, desenvolvidos e ornamentados por antigos editores anônimos e por revisores, através dos séculos.

No final do século XVIII, e mais ainda no século XIX, muitos estudiosos críticos da Bíblia passaram a duvidar de que Moisés tivesse escrito qualquer texto das escrituras; começaram a acreditar que a Bíblia era exclusivamente obra de escritores extemporâneos. Esses estudiosos observaram que o que pareciam ser as diferentes versões das mesmas histórias dentro dos livros do Pentateuco, sugerindo que o texto bíblico era produto de muitas mãos reconhecíveis. Uma leitura cuidadosa do Genesis, por exemplo, revelou duas versões conflitantes da criação (1, 1-2,3; 2,4-25), duas genealogias bem diferentes dos descendentes de Adão (4,17-26; 5, 1-28), e duas histórias emendadas e reagrupadas sobre o dilúvio (6,5; 9,17). Além disso, havia dúzias de duplicatas, ou mesmo triplicatas, dos mesmos eventos nas narrativas da peregrinação dos patriarcas, do êxodo do Egito e da entrega das tábuas da lei. (Filkenstein, p24)

Richard Elliod Friedman, observou no seu livro Who wrote the Bible (Quem escreveu a Bíblia) editado no século XIX, que as duplicações que ocorreram originalmente no Gênesis, Êxodo e nos Números não eram variações arbitrárias ou reprodução das mesmas histórias. Elas mantinham certas características identificáveis, de imediato, no que se refere à terminologia e ao foco geográfico.  

Desta maneira, um conjunto de histórias usou consistentemente o tetragrama – o nome de quatro letras YHVH (Yahweh) – no curso da sua narração, é o que aconteceu no território e na tribo do Judá.  O outro conjunto de histórias, dos territórios do norte do país – Efrain, Manasés e Benjamim principalmente – usou o nome de Elohim ou El para Deus.
Com o passar do tempo, os especialistas começaram a concluir que diversas fontes distintas, de características geográficas escreveram os primeiros cinco livros da Bíblia, tal como agora são conhecidos, eram o resultado de um complexo processo editorial, no qual os documentos das quatro fontes principais – J (javista), E (elohista), P (sacerdotal [priesty, em inglês]) e D (deuteronomista) -  foram compilados com habilidade e editados por escribas compiladores.

Todavia nas últimas décadas, com a leitura histórico-crítica e avanços notáveis na arqueologia das terras bíblicas, muitos insistem que os primeiros livros do Antigo Testamento (Gn, Ex, Nm, Lv, Dt, Js, Jz, 1 e 2 Sm e 1 e 2 Rs) são composições tardias, coletadas e editadas por sacerdotes e escribas durante o exílio na Babilônia e a restauração (nos séculos VI eV a.C.), ou mais tarde, durante o período helenístico (século IV e II a.C.). Ainda assim, todos concordam que o Pentateuco não é composição única e sem costuras, mas uma colcha de retalhos de fontes variadas, cada uma escrita sob diferente circunstância históricas, para expressar diferentes pontos de vista religioso e político.



Fonte:

FILKENSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Ascher, The Bible Unearthed: Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. Free Press, 2001.


FRIEDMAN, Richard Elliod, Who wrote the Bible. Summit Books, 1987.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O POLITEÍSMO DE ISRAEL E JUDÁ

Judá pré exílico nunca abandonou a prática politeísta. Quanto ao Deus cultuado nesse período, é uma questão um tanto complexa. De modo geral, não havia culto a um único Deus. As escavações arqueológicas têm mostrado que, no cotidiano o povo de Israel, se prestava culto a vários deuses e deusas, com preferência aos deuses da fertilidade, como Baal e suas consortes Aserá e Astarte. Aliás, na raiz do nome Israel se encontra a forma El, o Deus supremo do panteão ugarítico (Sl 82) que tinha como maior atributo ser o Deus criador. 

O culto a El era muito forte em Canaã, tanto que Israel herdou o seu nome. Ou seja, no princípio o Deus de Israel era El e só mais tarde passou a ser Javé. Se Israel fosse javista desde o princípio, provalmente o seu nome teria como raiz o vocábulo JAH ou YAH, assim como muitos nomes em Israel: Isaias, Jeremias, Ezequias, etc. Mesmo quando Israel se tornou javista, o culto a El continuava vivo no interior do território israelita, assim como o culto a Baal, Aserá, Astarte, etc., tanto que aparece constantemente nos relatos bíblicos. Nossas Bíblias costumam traduzir El por “Deus”, por isso não nos damos conta do constante uso desse nome. No entanto, basta prestar atenção a todas as vezes que em nossas Bíblias aparece a palavra “Deus”; é quase certo que se trata de El; da mesma forma, quando aparece o nome “Senhor”, é seguro que se refira a Javé.

Enfim, o que se pode concluir é que Israel, por volta do século X a.C., Javé era um Deus entre outros. No entanto, é bem provável que por volta do início do século IX a.C., o culto a Javé já era predominante em Israel. Uma prova contundente, como se verá mais adiante, é o testemunho da estela de Mesa, também conhecida como estela moabita, que foi edificada pelo rei Mesa de Moab, por volta de 840 a.C. Nela Javé é mencionado como o Deus nacional de Israel, que impõe seu domínio sobre os moabitas. Porém, Javé não é cultuado como Deus único, teologia que será imposta somente mais tarde em Judá. Nesse período, Javé é cultuado junto com outros deuses, e isso não apenas em Israel, mas também em Judá. Temos alguns exemplos, como o templo de Javé no século VIII escavado em Arad, no sul de Judá, junto a Nahal Beersheba. Nesse templo, construído em continuidade com os lugares altos, com as eiras ou bamot, onde aconteciam os ritos de fertilidade, foram encontradas duas estelas (massebot). As estelas estavam fixadas no santo dos santos. A maior, que representava a divindade masculina (não se sabe se era Javé ou Baal), media 90 cm. A outra era um pouco menor e certamente representava uma divindade feminina (talvez Asherá). A maior era falida, tinha a parte superior arredondada e estava pintada de vermelho. À frente de cada estela havia um pequeno altar de insenso. O nicho de Arad com as estelas se encontra atualmente no museu de Jerusalém; portanto, uma prova contundente da forte presença, em tempos tardios, de cultos da fertilidade no interior de Judá e da influência que estes exerceram sobre o javismo.

Outro exemplo de culto primitivo a Javé foi encontrada no sítio arqueológico de Kuntillet ‘Ajrud, ao noroeste da península do Sinai, a 50 km de Cades Barnea, junto à rota que leva a Gaza. Ali foram escavados vários fragmentos de cerâmica com inscrições e desenhos que fazem referência a Samaria e que datam da primeira metade do século VIII – portanto, do reinado de Jeroboão II (788-747). Em um dos fragmentos encontrados está escrito em hebraico antigo uma benção que diz; “[..] a benção de Javé de Samaria e sua Aserá”. Javé está representado num desenho em forma de touro com a genitália em destaque. Ao lado está outro desenho representando Aserá. Portanto, além do culto a Javé ao lado de outros deuses, há nessa inscrição um testemunho da extensão do domínio de Israel, com sua capital Samaria, até o sul de Judá. Complementa essa informação um desenho, no muro da entrada da construção principal do sítio, que aparenta tratar-se de um rei sentado no trono real. Uma vez confirmado e reconfirmado que essas construções são da primeira metade do século VIII, pode-se concluir que se trata do reinado de Jeroboão II (788-747).

O mais impressionante dos achados de Kuntillet ‘Arjud, que ainda não foram totalmente decifrados, é que temos aqui uma forma primitiva do culto a Javé. Primeiramente, Javé é identificado com Samaria, ou seja, é possível que em Samaria houvesse uma forma própria de culto a Javé. Temos um caso semelhante em outra inscrição que identifica javé com Temã, assim como temos, em algumas passagens bíblicas, o Javé de Farã ou de Edon (Dt 33,2; Hb 3,3; Jz 5,4), numa provável referência ao Javé da região desértica, do sul de Judá e Edon. Os textos mencionados parecem se referir a Javé como um Deus em movimento, similar ao Sol, de leste a oeste.
Em segundo lugar, Javé é representado em forma de touro, forma que algumas vezes também é atribuída a Baal, caracterizando a força e a fertilidade, e que em algumas passagens “obscuras” aparece como uma forte condenação do culto praticado em Samaria.

Para maiores informações sobre o politeísmo em Israel leia neste blog: http://prwneves.blogspot.com.br/2015/05/do-politeismo-ao-monoteismo-saga-de-um.html, publicado em Maio/2015.

Pr Waldemar Neves – Pastor e Teólogo

Bibliografia:
KAEFER, José Ademar, A BÍBLIA, A ARQUEOLOGIA E A HISTORIA DE ISRAEL E JUDÁ, Paulus, 2015, p. 61-63.


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O CONFLITO ENTRE A IMORALIDADE X IGREJA, 1 Co 5, 1-5

O conflito entre a imoralidade x Igreja, repercute em nossas vidas e é palco de discussão na mídia televisiva. O apóstolo Paulo em sua carta aos Coríntios, sob a ação do Espírito Santo, nos orienta como proceder quando tal fato bater em nossas comunidades. Vejamos:

Em 1 Coríntios 5, Paulo afirma uma política de tolerância zero sobre a imoralidade na igreja. Para ele, não há razão para uma pessoa que está cometendo abertamente a imoralidade em continuar na comunhão com os crentes. Neste caso, a igreja se vangloriava sobre sua própria espiritualidade, embora esse homem imoral fizesse parte dela.

Este episódio é um muito sério: Paulo invoca a autoridade de Jesus Cristo (tanto o nome e com o poder), bem como sua própria autoridade (duas vezes), e ele descreve o pecado como semelhante ao fermento que cresce na massa do pão. O perigo é tão grande que Paulo recomenda a igreja o afastamento do homem pecador!

O pecado comemorado pela igreja de Corinto foi chocante (5: 1-2). Este comportamento sexual era uma ofensa punível até pela lei romana. Mas, as leis romanas não foram administradas com imparcialidade. Aqueles que eram ricos e poderosos foram capazes de evitar a pena. Este é um caso em curso, que é conhecido pela igreja e pela comunidade de Coríntios. 

Os romanos teriam ignorado se uma mulher mais velha tivesse um caso extraconjugal com um homem mais jovem. Apesar de ser contra a lei, em alguns círculos era esperado. Mas um relacionamento com sua madrasta era ilegal tanto na lei romana e como no judaísmo (Levítico 18: 7-8, 20:11; Dt 22:30). Na Mishná, há uma lista de várias categorias de crime sexual que é mérito de apedrejamento: Aquele que tem relações sexuais com (1) a sua mãe, (2) com a mulher de seu pai, (3) com sua filha-de-lei, (4) com um macho, e (5) com uma vaca; e a mulher que traz um boi em cima de si mesma.
Institutos de Gaius data de meados do século segundo, cerca de 100 anos depois que Paulo escreve. Em 1,63 Caio afirma: "Além disso, eu não posso casar com a minha ex-mãe-de-lei ou filha-de-lei, ou a minha enteada ou madrasta. Fazemos uso da palavra 'ex', porque se o casamento pelo qual a afinidade desse tipo foi estabelecida ainda existe, há uma outra razão pela qual eu não posso me casar com ela, uma mulher não pode casar-se com dois homens, nem pode um homem ter duas esposas. "à combinação particular de coisas nessa situação era um adultério e incesto, há provavelmente teria sido nenhuma clemência ao abrigo da lei, tanto o homem e a mulher teria enfrentado exilado e desistência de todos os bens.

Vejamos a perícope, 1 Co 5, 1-5.

Por toda parte se ouve que há imoralidade entre vocês, imoralidade que não ocorre nem entre os pagãos, a ponto de alguém de vocês possuir a mulher de seu pai.
E vocês estão orgulhosos! Não deviam, porém, estar cheios de tristeza e expulsar da comunhão aquele que fez isso? Apesar de eu não estar presente fisicamente, estou com vocês em espírito. E já condenei aquele que fez isso, como se estivesse presente.
Quando vocês estiverem reunidos em nome de nosso Senhor Jesus, estando eu com vocês em espírito, estando presente também o poder de nosso Senhor Jesus Cristo, entreguem esse homem a Satanás, para que o corpo seja destruído, e seu espírito seja salvo no dia do Senhor
”.  Versão NVI.

Nesta perícope o apóstolo Paulo, usa a palavra “πορνεία” (gr) porneia, imoralidade sexual, termo que se refere a todos os tipos de atividade sexual extraconjugal, incluindo fornicação, prostituição, aberrações, homossexualidade, especialmente as relações sexuais com um parceiro proibido.

Neste capítulo, Paulo lidou com um pecado em Corinto que realmente o chocou. A imoralidade sexual tinha ocorrido na igreja e eles não estavam arrependidos e se mostravam orgulhosos no fato de que o incesto estava ocorrendo entre eles.

Vs. 1 “Por toda parte se ouve que há imoralidade entre vocês, imoralidade que não ocorre nem entre os pagãos, a ponto de alguém de vocês possuir a mulher de seu pai”.

Paulo demonstra seu espanto pela situação que ele estava prestes a abordar. O escândalo havia extrapolado as paredes da igreja de Coríntios, era motivo de comentários entre os crentes e de escárnios entre os descrentes. O idioma original desta passagem transmite a ideia de que a notícia o havia chocado e horrorizado. Ele ficou chocado ao ouvir que a igreja tolerara a imoralidade sexual, fato que até para os padrões dos pagãos eram moralmente repulsivos, ou seja, um homem ter a mulher de seu pai. No contexto de imoralidade sexual, o verbo “possuir” no sentido de "ter" (ἔχειν (gr) eichem) que é um eufemismo, que não se referia a relações sexuais ocasionais, mas para um relacionamento sexual continuo, duradouro. O homem pode realmente ter vivido com a mulher de seu pai como se fosse sua própria esposa.  Paulo descreveu a mulher não como “mãe” desse homem, mas como mulher de seu pai. Esta terminologia “mulher de seu pai” provavelmente identifica como madrasta do homem ao invés de sua mãe biológica. Paulo não indica se o pai desse homem ainda vivia, mas se o pai estivesse vivo a imoralidade se tornaria mais grave. Por isso, o uso da palavra “porneia” em vez de “moicheia” (adultério), portanto, não se tratava de adultério. (ver Lev. 18: 8; 20:11; Dt.22:30; 27:20).

Vs. 2 “E vocês estão orgulhosos! Não deviam, porém, estar cheios de tristeza e expulsar da comunhão aquele que fez isso?”

O espanto de Paulo se traduz nas suas palavras “E vocês estão orgulhosos” demostra que a atitude dos membros da Igreja de Coríntios sobre essa situação foi ainda pior do que o próprio pecado, ao invés de disciplinar o infrator eles se orgulhavam dele. Talvez a liderança, por omissão ou acomodação, achasse que essa imoralidade estava dentro dos limites da liberdade cristã, tornando deste modo a imoralidade sem importância. Mas Paulo os repreende dizendo “Não deviam, porém, estar cheios de tristeza”, pois o pecado e a transgressão aos preceitos divinos devem gerar no crente a indignação e a vergonha.

Todavia, a demonstração de tolerância dos corintos, que provavelmente diziam para sí mesmos, “olha como somos amorosos, aceitamos este irmão assim como ele é, vejam como temos nossa mente aberta” ou, ainda, “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” apresentava uma liderança frouxa e descompromissada com Deus e os seus mandamentos. Desta maneira, os corintos se orgulhavam da sua complacência e achavam que estavam praticando o bem para com este homem.

Mas o apóstolo Paulo os reprova e abomina essa tolerância e insiste em “expulsar da comunhão aquele que fez isso”, afastar da comunhão, pois tal abominação pode contaminar toda a comunidade e nivelar a igreja a níveis mundanos, e ele, Paulo diz no vers. 6 “O orgulho de vocês não é bom. Vocês não sabem que um pouco de fermento faz toda a massa ficar fermentada?”,ou seja, na analogia paulina, o fermento símbolo do pecado pode contaminar todo a emergente igreja de Coríntios. Lembre-se que Coríntios era uma cidade notória por imoralidade sexual, e as religiões pagãs não valorizam a pureza sexual. Tal ato poderia ser interpretado pelos pagãos como normal nos seus instintos religiosos e sociais e uma continuidade nas suas imoralidades.
Paulo desejava que seus leitores experimentassem a indignação sobre o pecado de seus companheiros, porque a imoralidade era destrutiva, tanto para o pecador como para a igreja. Paulo também exigiu que a ação corretiva adequada, a excomunhão foi a resposta única e adequada para tal pecado grave (no AT tal pecado era punível com a morte dos pecadores [Lev. 20:11] e o exílio de toda a nação da terra [Lev. 18:28]).

Ver.3 “Apesar de eu não estar presente fisicamente, estou com vocês em espírito. E já condenei aquele que fez isso, como se estivesse presente”.

Paulo tinha falado mais cedo sobre não julgar os outros (1 Co 4:5).  Esse tipo de julgamento tinha a ver com o grau de fidelidade ao Senhor. Aqui, a questão foi imoralidade flagrante. O caso era tão claro que ele não precisava estar presente para conhecer que o homem era culpado de um delito grave que necessitou de tratamento forte.

As palavras de Paulo podem soar duro aos nossos ouvidos modernos (todavia compare 2 Ts 3, 6, 14-15; 1 Tm 5,20), eles estão na mesma linha com os ensinamentos de Jesus (Mt 18, 15-17).  Além disso, Paulo demonstrou uma visão equilibrada em outras epístolas (2 Co 2: 6-8; Gl 6: 1; Ef 4:32; Cl 3:13; 2 Ts. 3:15). Em 2 Co 2: 6-8, por exemplo, ele corrige fortemente a recusa implacável da igreja para restaurar um irmão arrependido. Não sabemos qual distancia naquele momento o apóstolo estava de Coríntios, mas seja qual for a distância, o verdadeiro cristão, compromissado com Deus e com a sua palavra, deve sempre reagir contra o mal e o pecado, mesmo cortando em sua própria carne.

Vers. 4- Quando vocês estiverem reunidos em nome de nosso Senhor Jesus, estando eu com vocês em espírito, estando presente também o poder de nosso Senhor Jesus Cristo,

O apóstolo queria que os crentes vissem a sua decisão como a vontade do Senhor. Ele assegurou-lhes que Deus iria guardá-los com o Seu poder após eles impostor a disciplina. A frase "em nome do Senhor Jesus" provavelmente modifica "Eu decidi entregar esse homem a Satanás para destruição da carne" (1 Co 5: 5). [Nota: Ver Fee, The First, p206-8, para apoiar argumentos.] Na passagem seguinte julgamento Paulo estava agindo em nome de Jesus e com a sua autoridade.

Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, por Sua autoridade e como representação de Sua pessoa e vontade (2Co 2:10). Junte-se a isso com "para entregar um a Satanás" (1Co 5: 5). A cláusula: "Quando vos foram reunidos e meu espírito (em que eu sou 'presente', embora 'ausente no corpo," 1 Coríntios 5: 3), com o poder de nosso Senhor Jesus ", está em um entre parêntese. Paulo fala de si mesmo usa a palavra "espírito"; de Cristo. O poder de Cristo foi prometido para estar presente com a Sua Igreja “reunidos em seu nome” (Mt 18: 18-20; e aqui Paulo por inspiração dá uma promessa especial de seu espirito apostólico, que em tais casos foi guiado pelo Espirito Santo, ratificando seu decreto aprovado de acordo com o seu julgamento (“Eu tenho julgado”, 1 Co 5,3), como se ele estivesse presente em pessoa (Jo 20:21-23; 2Co 13, 3-10). Este poder de julgamento infalível foi limitado aos apóstolos; pois só eles tinham o poder de fazer milagres como suas credenciais para atestar a sua infalibilidade. Seus sucessores, para estabelecer sua reivindicação a este último. Mesmo os apóstolos em casos comuns, e onde não especificamente e conscientemente inspirado, foram falíveis (TGl 2: 11-14).

Vers. 5 “entreguem esse homem a Satanás, para que o corpo seja destruído, e seu espírito seja salvo no dia do Senhor

Paulo havia determinado para entregar o homem a Satanás para (ὄλεθρον (gr) olethron) destruição da (σαρκός (gr) sarkos) carne/corpo. Provavelmente, Paulo recomendava que ele tinha que ser entregue para o mundo, controlado por Satanás, com a permissão de Deus, para seu castigo corporal que pode até resultar em sua morte prematura. [Nota: H. Conzelmann, 1 Coríntios: um comentário sobre Primeira Epístola aos Coríntios, p97; SM Gilmour,"Pastoral na Igreja do Novo Testamento," Novo Testamento estudos10 (1963-1964): 395; JC Hurd Jeremiah, a Origem de I Coríntios, P137, P286, n5; GWH Lampe, "Igreja Disciplina e a interpretação das Epístolas aos Coríntios," em História e Interpretação cristã: os estudos apresentados ao John Knox, pp349, 353; Morris, pp88-89; Johnson, p1237, e Bruce, pp54-55]. Este foi o resultado da relação de Pedro com Ananias e Safira, embora o texto não diz ele os entregou a Satanás para a destruição de sua carne. Deus estava trazendo a morte prematura. Não temos nenhum registro de que este homem morreu prematuramente

Uma variação deste ponto de vista é que a entrega a Satanás, resultaria em uma doença física, mas não a morte. [Nota: William Barclay, com que autoridade? p118; M. Dods, A Primeira Epístola aos Coríntios, p118; H. Olshausen, Comentário Bíblico em St. Paul "s Primeira e Segunda Epístolas aos Coríntios, p90; H. Ridderbos, Paul: Um esboço de sua teologia, P471; WGH Simon, A Primeira Epístola aos Coríntios: introdução e comentários, p78;. e ME Thrall, a Primeira e a Segunda Carta de Paulo aos Coríntios, p40] no entanto, o termo "a destruição da carne" parece implicar a morte ao invés de simplesmente doença.

A terceira interpretação entende o termo "carne" metaforicamente como referindo-se à destruição do homem da natureza pecaminosa. [Nota: FW Grosheide, Commentary no primeiro Epístolas aos Coríntios, P123; RCH Lenski, A Interpretação dos St. Paul" s Primeira e segunda Epístolas aos Coríntios, P217; JJ Lias, A Primeira Epístola aos Coríntios, p67; e G. Campbell Morgan, cartas aos Coríntios de Paulo, P83.] A destruição da carne, neste caso, refere-se à mortificação dos desejos da carne. No entanto, parece incomum que Paulo iria entregar o homem a Satanás para esta finalidade. É difícil ver como entregar uma pessoa a Satanás seria purificá-lo.

Em 1 Coríntios 5.1-13, o apóstolo Paulo pede que a congregação de Corinto expulse de seu meio um pecador manifesto e impenitente e recomenda que ele seja entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia de Senhor. Não será esta uma disciplina diferente da que é prescrita em Mateus 18.15-17?

No texto em questão, o apóstolo Paulo está tratando do caso especifico de um homem que, na congregação de Corinto, se “atrevia a possuir a mulher do seu próprio pai”, ou seja, a sua madrasta. Tal imoralidade, também mencionada em Deuteronômio 22.30, não vinha sendo castigada pela congregação de Corinto. Isso é alvo da crítica por parte do apóstolo Paulo, ao mesmo tempo em que ele sentencia que “o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus” e “com o poder de Jesus”, “entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor” (versículos 3, 4 e 5). Veja-se bem: não obstante a infâmia cometida na congregação de Corinto e a drasticidade da medida sentenciada pelo apóstolo Paulo, não se perde de vista a salvação da alma do pecador, o que mostra ser esta moralidade igual à de Mateus 18. Mas, como entender as palavras “seja entregue a Satanás para destruição da carne”? 

A primeira idéia que se tem é que o corpo do pecador morra nas mãos de Satanás para que a sua alma seja salva. Mas não é isso, pois não pode haver salvação da alma, sem que o corpo também seja salvo. Ou, como seria na ressurreição? Sua alma estaria no céu, e o corpo no inferno? Não pode haver salvação para quem morre nas mãos do diabo. Por isso, não é a morte do corpo do pecador que está sendo desejado com essa expressão, mas de sua carne, da pecaminosidade que o domina. Paulo deseja que esse pecador seja retirado de sob o poder de Cristo para que exerça o seu poder sobre ele e o aflija no corpo, fazendo-o sentir, já nesta vida, um prelúdio do inferno, a fim de que isso o leve ao arrependimento e à vida. Vemos, assim, que esta não é uma disciplina diferente da de Mateus 18. A excepcionalidade do pecado referido no texto de 1 Coríntios levou o apóstolo Paulo à expressão de uma linguagem excepcional que não aparece novamente em nenhum outro texto bíblico. Mas o sentido da disciplina eclesiástica normalmente praticada é preservado por Paulo nesse texto: atingir a salvação do pecador.

Conclusão:

Como cristãos pensamos na responsabilidade de excluir uma pessoa da comunhão da igreja, e até nos perguntamos; como eles poderiam entregar esse homem a Satanás? Colocando-o fora da igreja, para o mundo, que é domínio do diabo. Todavia, a punição é a remoção da proteção e conforto espiritual social, e não uma imposição do mal. O comando de Paulo também serviu o propósito de remover a falsa sensação de segurança do pecador em permanecer na comunhão dos santos. Eles não podiam simplesmente ignorar seu pecado e permanecer na imoralidade. A resposta da Igreja é de enfrentamento do mal, neste caso o homem, foi neste momento entregue aos pecados da carne. Paulo diz que ele será entregue as consequências pecaminosas de sua carne, e a esperança é que ao mergulhar nos resultados de seu pecado, o impulso pecaminoso da carne seja especificamente destruído. Alguns chamam isso de "excomunhão" ou "desassociação" de uma pessoa. A instrução paulina é o afastamento da comunhão até o arrependimento e a conversão, ou no caso de um obreiro, o afastamento completo dos trabalhos até a total correção e conserto.

Apesar que, na cultura da igreja de hoje, isso raramente traz um pecador ao arrependimento, porque eles podem facilmente ir para outra igreja e fingir que nada aconteceu na antiga. Ou, é fácil para eles se julgar a si mesmo de vítima, e agir como se a sua antiga igreja foi cruel para com eles. Embora seja verdade que algumas igrejas têm sido cruéis para com os seus membros, isso não significa que a igreja nunca deve praticar os princípios bíblicos que Paulo ensina aqui. O que dever ser feito, tanto para o bem da Igreja e para o bem do pecador.

Precisamos ter em mente que a Igreja é a noiva de Cristo e não pode ser maculada, fica como ensino a parábola de Jesus que o fermento em pequena quantidade pode levedar toda a massa (Mt 13.33). George Whitefield escreve “Lembrem-se do pobre publicano, de como ele achou favor em Deus, ao passo que o fariseu orgulhoso e presunçoso, inchado com sua própria justiça, foi rejeitado. E se vocês forem a Jesus como o pobre publicano fez, com um sentimento da indignidade própria, vocês acharão favor como ele achou; há bastante virtude no sangue de Jesus para perdoar os maiores pecadores. Então não fiquem desa­nimados, mas busquem a Jesus, e vocês o acharão pronto a ajudar em toda a sua aflição, para conduzi-los em toda a verdade, para trazê-los da escuridão para a luz e do poder de Satanás a Deus.”

Mas não temamos, pois é frequente Deus receber o maior peca­dor à misericórdia pelos méritos de Cristo Jesus. Isto faz parte da sua graça generosa; e deveria ser um incentivo a nós, que somos grandes e notórios pecadores, para que nos arrependamos, pois Ele terá misericórdia de nós, se nos voltarmos para Ele por Cristo.

Que isto nos desperte para os nossos pecados, levando-nos a implorar o perdão de Deus, e deste modo encontrar a miseri­córdia do Senhor.


Waldemar Neves – Pastor e Teólogo.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A NOVELA DE JOSÉ E O ADVENTO DOS PRIMEIROS MONARCAS (GN 37-50)

Quem não conhece a novela bíblica do jovem José. O sonhador que queria ser rei. Esse é o significado da túnica principesca que recebe de seu pai Jacó (Gn 37,3) e dos sonhos em que vê seus irmãos e seus pais se inclinando diante dele (Gn 37,5-11). Nesta antiga saga vétero-testamentária o jovem José é sequestrado, aprisionado, vendido, escravizado, injustiçado, esquecido, até que interpreta o sonho de faraó.

Esse texto (Gn 37-50) de composição deuteronomista do século VII a.C., ilustra bem a questão da administração do excedente agrícola, durante os momentos de fartura (as vacas gordas) e os momentos de penúria (as vacas magras). Portanto, vale ressaltar, que esse texto foi bem sugestivo na época para que os reis de Judá justificassem suas atitudes e os seus interesses políticos. É muito difícil calcular o quanto essa tradição oral, da novela de José, saiu da memória popular e foi ganhando corpo, sendo relida, reescrita e ampliada, até se tornar história sagrada, que conhecemos hoje no livro de Gênesis.

Ao interpretar os sonhos de faraó, José o aconselha que durante os sete anos de boa colheita ele tome a quinta parte dos produtos da terra do Egito e a armazene. Esses viveres servirão de reserva à terra para os sete anos de fome que se abaterão sobre o Egito. Assim a terra não será exterminada pela fome (Gn 41,33-36). Vemos aqui, portanto, que José ensina ao faraó e a todo Egito como proceder, guardando o excedente dos anos de boa colheita para quando o tempo de vacas magras chegar. Essa é exatamente a justificativa para a existência da monarquia em Israel. Ou seja, a função ideológica da novela de José é fundamentar a monarquia. José representa o projeto monárquico e os irmãos, o projeto tribal. Kaefer, p 34.

A justificativa do projeto monárquico existiu devido a necessidade da armazenagem do excedente agrícola visando o tempo da penúria, de forma que nunca faltasse alimento para o povo. Todavia, é que na pratica, quando o tempo das vacas magras chegava, os reis nunca partilharam com o povo os alimentos que armazenaram, mas os venderam ou trocaram pelas terras dos camponeses ou pela sua liberdade. É exatamente o que faz José quando o povo vem lhe pedir alimentos (Gn 47, 13-26). Primeiro ele vende os alimentos. Quando eles não têm mais dinheiro, José se apossa dos rebanhos. Quando não tem mais rebanho, José troca alimentos pela terra. Quando o povo não tem mais dinheiro, nem animais, nem terra, é obrigado a se vender como escravo para não morrer de fome, e José escraviza a todos, de uma extremidade a outra do Egito. Dessa forma, tudo passa para as mãos do faraó ou do rei. Uma vez de posse de tudo, José entrega sementes aos camponeses para que plantem as terras do rei e lhe entreguem a quinta parte das colheitas. “Esta é uma regra que vale até hoje”, diz o texto, justificando a cobrança de tributo por parte do rei. Os únicos que ficam isentos do tributo e da venda da terra são os sacerdotes (Gn 47, 22-26b). Essa nota revela quem são os redatores do texto, afirma Kaefer em seu livro.

Isto ficará evidente durante toda a monarquia, que privilegiará apenas um grupo, àquele que é ligado a corte e à cidade. O povo que vive nas aldeias, que não tem ligação com o templo terá que trabalhar e sustentar os monarcas das cidades, o clero e o templo, e ainda será a classe sacrificada quando as vacas magras chegarem, pois será a primeira vítima da penúria.
Uma outra justificativa para a existência da monarquia é a proteção do povo e do campo. Isto porque, o excedente, bem como a terra fértil da planície, despertava o interesse de outros povos. Principalmente quando a fome assola um povo e ele sabedor que o povoado vizinho tem alimentos estocados, não pensava duas vezes em saquear seus armazéns.  Por isso, é preciso a proteção de um exército que, para os monarcas, só a monarquia pode oferecer. Temos o caso, entre tantos da Bíblia, dos filisteus. Os filisteus eram remanescentes dos povos do mar que se estabeleceram na costa do Mediterrâneo ao norte de Gaza, no sul de Canaã, por volta de 1500 a.C. Tinham superioridade tecnológica, como o domínico do ferro (1 Sm 13,19-22), e, possivelmente, conforme desenhos e inscrições encontradas no Egito, também eram maiores fisicamente que os cananeus e os futuros israelitas. Os filisteus combateram os egípcios e dificultaram o seu domínio na região.  Conquistaram as melhores terras e com o tempo tornaram-se o arqui-inimigo da Israel emergente (Jz 13-16). No contexto internacional, eram, pois, os filisteus que ditavam as ordens na terra de Canaã nesses dias. Evidentemente é preciso distinguir os filisteus de quando se instalaram em Canaã dos filisteus mencionados na Bíblia.
Kaefer em seu livro A Bíblia, a Arqueologia e a História de Israel e Judá, diz que, “podemos delinear que a partir de 1200 a.C. (período do ferro I), começa a expansão das aldeias para a planície, ocupando o espaço deixado pelas antigas e poderosas cidades-estado. Os camponeses, protoisraelitas, descem as montanhas e, num movimento ascendente, vão tomando as planícies. A terra fértil e plana possibilita ampliar em muito a produção agrícola, principalmente de cevada e trigo. O incremento de grãos faz aumentar a produção de alimentos, o que, por sua vez, permite o crescimento da população. O excedente faz surgir a concentração de poder nas mãos de alguns clãs que se permitem investir no comercio. Surgem, então, os administradores profissionais, a pequena indústria e os pequenos monarcas. O excedente agrícola, quando em menor quantidade, era conservado em vasos de cerâmica que eram enterrados no fundo da casa do clã. Quando em maior quantidade, eram estocados em silos bem protegidos da chuva. Uma parte dos grãos guardados era para o plantio do ano seguinte; outra, para o consumo; e, eventualmente, uma terceira parte para o comercio. A estocagem do excedente foi, portanto, um passo gigantesco para a sobrevivência da tribo em tempos de calamidades. Uma sociedade que não guarda tem dificuldades para sobreviver quando chega a seca ou quando as pragas invadem a lavoura, ou, ainda, quando o povo é acometido por doenças”.


Fonte:

KAEFER, José Ademar. A Bíblia, a Arqueologia e a História de Israel e Judá. PAULUS, São Paulo, p. 33-35, 2015.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

O SIMBOLISMO SOCIAL DO VÉU, NAS SOCIEDADES MEDITERRÂNEAS ANTIGAS. (parte do estudo de 1 Co 11,10)

No intuito de dirimir algumas distorções do entendimento de 1 Co 11, quanto ao uso do véu e seu simbolismo cúltico, convido a todos a leitura do artigo publicado na Revista Orácula(*) da UMESP, “Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas” de Anderson Dias Araujo. 

Convém, neste estudo, darmos atenção ao simbolismo social do uso do véu e do cabelo, para homens e mulheres, nas sociedades mediterrâneas antigas. Diversos estudos indicam que o uso do véu e estilo de penteado possuíam uma simbologia própria no que tange a diferenciação dos sexos e comportamento social.

O uso do véu tem uma história muito antiga. Os primeiros indícios de uso do véu remontam a Suméria. Os sumérios foram um povo extremamente inovador. Legaram a posteridade a escrita, a irrigação, a roda, a astronomia, a literatura e, também, o uso do véu no contexto religioso, como veremos a seguir.

Heródoto relata que na cidade onde havia o templo da deusa Mylitta, toda mulher era solicitada, uma vez em sua vida, a visitar aquele templo, e provavelmente na maioria dos outros templos ao longo da Suméria e lá deveria permanece até que um estranho arremessasse uma moeda de prata sobre seu colo e a levava embora com ele, para então receber a benção da deusa do templo. As mulheres se sentavam em um recinto santo do templo, cada uma coberta por um véu sobre a cabeça. Os homens deveriam passar por aquele local e escolher uma mulher com a qual teria relações sexuais. A mulher, uma vez que tivesse tomado assento, não poderia retornar para sua casa, até que um estranho a tivesse escolhido. Ao ser escolhida, não poderia recusar em ir com o indivíduo que a escolheu, pois isto era determinado pelas leis e a escolha era considerada sagrada.

O homem ao laçar a moeda dizia as seguintes palavras. Que a deusa Mylitta te faça próspera. Ao aceitar a escolha e ir com o homem a mulher teria cumprido sua obrigação para com a deusa, só então poderia retornar para sua casa. Cria-se que, à mulher, após cumprir sua obrigação, nenhuma dádiva lhe seria recusada. Algumas mulheres, por seu porte e beleza, logo eram escolhidas, outras, contudo, permaneciam no recinto do templo por longos períodos até que pudessem cumprir a lei. A partir deste início tímido, o legado sumério do uso do véu extrapolou as fronteiras do contexto religioso da prostituição sagrada e se estendeu para o cotidiano das mulheres das diversas sociedades semitas e indo-europeias, adquirindo simbologia e sentidos próprios no que tange a diferenciação de gênero e comportamento social.

A seguir, serão vistas com mais detalhes algumas práticas concernentes ao uso do véu e penteado de cabelo e se finalizará com uma análise de como a mulher era vista no contexto literário judaico do período intertestamentário.

Uso do véu e estilo de penteado para mulheres e homens

Com base em estudo filológico e na cultura material (iconografia) do mundo mediterrâneo, é possível a conclusão de que era comum às mulheres do mundo mediterrâneo, incluindo as de origem judia, o uso de cabelos longos; contudo, deviam atá-los de alguma forma, de modo que não ficassem soltos. Comumente utilizavam-se tranças enroladas ao redor da cabeça. O uso do véu também era recomendado e até mesmo obrigatório.

Na Antiguidade, os cabelos soltos de uma mulher (e o ato de soltá-los) frequentemente tinham conotações sexuais. Sair em público com cabelos soltos e desvelados eram motivos de divórcio. Corrington cita um exemplo onde o escritor romano Valerius Maximus congratula o cônsul Gallus por sua severidade ao flagrar a esposa em público com a cabeça desvelada. O cônsul se divorcia dela, pois a cabeça desvelada poderia atrair o olhar e, consequentemente, a cobiça e o interesse sexual de outro homem. A práxis da época é que as mulheres deviam na medida do possível ficar dentro de casa, pois elas são repositório da honra masculina. Elas precisavam ser protegidas de contatos com homens de outras economias domésticas, que poderiam maculá-las.

No texto de Pastor de Hermas encontra-se um exemplo bastante ilustrativo sobre o uso dos cabelos soltos, onde se relata que alguns se perderam (pedras rejeitadas) seduzidos pela beleza de mulheres vestidas de preto, com os ombros descobertos, cabelos soltos e belos. Hermas e seus leitores, obviamente, reconhecem os cabelos soltos como um símbolo de atração sexual ilícita.

Assim, a honra do homem poderia ser ferida pela mulher. Por outro lado, os cabelos soltos ou o ato de soltá-los e a ausência do véu poderiam conotar outros tipos de situações, conforme nos relata Gosgrove. Nos cultos ao deus Adonis, mulheres soltavam seus cabelos como sinal de devoção. Neste caso, o ato de soltar os cabelos simbolizava o desvencilhamento do aparato cultural; assim a devota entraria no rito em um estado puro e natural. Desta forma, mulher com cabelos soltos, diante de um deus, poderia ser considerado como ato de humilhação e reverência. A mudança de estado civil de uma mulher também requeria uma mudança em seu estilo de penteado. Mulheres casadas ornamentavam seus penteados com faixas algo próximo a uma tiara, porém de tecido, simbolizando indisponibilidade sexual da mulher aos demais homens, exceto seu marido. Consequentemente, seria vergonhoso e desonroso para uma mulher casada parecer em público com seus cabelos soltos, exceto em algumas circunstâncias que serão vistas a seguir.

Em caso de adultério, no contexto judaico, recomendava-se (Num 5,18-31) que os cabelos da mulher deveriam ser soltos e, em alguns casos, expor seus seios de modo a constrangê-la e causar vergonha. Outros exemplos em que as mulheres podiam soltar seus cabelos são os rituais fúnebres. A expressão profunda de tristeza e dor era acompanhada da soltura dos cabelos e, às vezes, da exposição dos seios. Há, também, em um período mais tardio século terceiro d.C. o caso de batismos de pagãos que desejavam aderir ao cristianismo. Neste caso, recomendava-se às mulheres que removessem as bijuterias e soltassem seus cabelos no momento do mergulho batismal, tirando possíveis objetos que poderiam prender os cabelos (alfinetes, pentes, tiaras). Uma possível interpretação desta recomendação é que no mundo antigo pensava-se que os demônios poderiam residir nestas bijuterias.

Elisabeth Fiorenza nos relata que

cabelos desvelados e cabeças voltadas para baixo eram gestos típicos do culto de Dionísio, de Cibele, da Pítia de Delfos, da Sibila, e os cabelos soltos eram necessários para a mulher produzir encantamento mágico eficaz. [...] Cabelo esvoaçantes e soltos podiam ser vistos também no culto de Ísis, que possuía importante centro em Corinto.

Cabelos curtos também apresentavam conotações diferentes daquelas supracitadas. Um dos aspectos centrais do culto a Dionísio era a troca dos papéis e dos valores sociais. Para os homens, a devoção a Dionísio era expressa pelo uso do véu e por cabelos compridos, enquanto as mulheres apresentavam-se desveladas e algumas mantinham seus cabelos curtos. Mulheres com cabelos curtos ou raspados eram tidas como mulheres masculinizadas e lésbicas. Assim, quando mulheres mostravam certos tipos de comportamento presumivelmente próprios dos homens por natureza, eram consideradas masculinas. Cabelos curtos também podiam ser vistos como sinal de adultério. O autor romano Dio Chrisostomo, do primeiro século, faz menção a uma mulher da ilha de Ciprus, que seus cabelos haviam sido raspados pelas autoridades por motivo de adultério, com a finalidade de identificá-la como uma adúltera (prostituta). No caso dos homens, cabelos compridos ou estilos de penteados extremamente rebuscados sugeriam homossexualidade. Murphy O Connor encontrou vários exemplos judaicos e não-judaicos de situações em que cabelos compridos em homens transmitiam a ideia de homossexualidade. Também cita os filósofos estóicos Musonius Rufus e Epíteto, que consideravam cabelos compridos em um homem como sinal de ambiguidade sexual e uma tentativa de diminuir a diferenciação sexual entre homens e mulheres (androgenia).
Também era costume entre os romanos, seja em suas terras nativas ou em suas colônias, cobrirem a cabeça durante cultos religiosos, privados ou públicos. Também é atestado que, ao oferecerem sacrifícios ou no momento de orar, os romanos cobriam a cabeça, utilizando para isso a toga.

Contexto social da mulher no mundo judaico-helenista.

A diferenciação dos papéis sociais de homens e mulheres era bastante estrita nas sociedades mediterrâneas da Antiguidade. Os papéis sociais eram considerados como fundados na natureza ou estabelecidos por Deus. De modo correspondente, a expectativa de um comportamento de acordo com o gênero era extremamente grande e a confusão dos papéis ou competência masculinos e femininos era muitíssimo desaprovada. Por exemplo, na esfera política romana, poderia haver participação das mulheres de homens do primeiro estrato social. Atuavam como conselheiras de seus maridos ou filhos, exerciam influência sobre eles, permaneciam publicamente ao lado deles, mas elas não passaram jamais de um mero poder nos bastidores do trono, o qual elas próprias nunca podiam ocupar, e sua ingerência na política sempre foi recebida com ressentimento. Já a participação de mulheres em discursos públicos era considerada um escândalo.

No contexto judaico, a mulher era tida como ameaça à virtude masculina por causa de sua alegada voracidade sexual e moralidade precária, sendo, portanto, responsável pela lascívia masculina. Um exemplo clássico desta posição é o texto do Testamento de Rúben, contido no livro pseudoepígrafo Testamento dos Doze Patriarcas, onde se lê:

As mulheres são maldosas, meus filhos; se não possuem força nem poder sobre o homem, procuram atraí-lo por meio de encantamentos, e se não conseguem dobrá-los por esse meio, pressionam-no com astúcias. Sobre elas falou-me um Anjo do Senhor, ensinando-me que as mulheres são mais sujeitas ao espírito da luxúria que os homens. Armam intrigas em seu coração contra eles. Primeiro transformam sua mente por meio da maquiagem, e injetam neles o veneno através do seu olhar; depois o apanham pelo ato. De outra forma, nunca uma mulher poderia subjugar um homem. Fugi da prostituta, meus filhos! Proibi vossas mulheres e vossas filhas de enfeitarem a cabeça e o rosto! Pois toda a mulher que recorre a esses ardis atrai sobre si o castigo eterno. Foi desta maneira que elas também enfeitiçaram os Guardiões [Anjos Vigilantes] antes do dilúvio. Eles olhavam-nas constantemente, e assim conceberam o desejo por elas [...].

Outros textos do Testamento dos Doze Patriarcas também oferecem proveitosos exemplos. No Testamento de Judá, por exemplo, o patriarca lamenta sua relação com Tamar, mas esguelha-se colocando a culpa na bebida e na mulher:

.[...] É costume entre os amorreus que uma recém-casada se coloque por sete dias às portas da cidade, para fins de fornicação. Dado que eu tinha bebido muito vinho, não a reconheci. Iludiu-me a sua beleza, com o adorno das suas vestes. (T. Judá 12,2-4).

E em outra parte do testamento, Judá recomenda: “não amem o dinheiro e não olhem para a beleza das mulheres”. (T. Judá 17,1). Exemplo semelhante encontra-se no livro de Bem Sira Eclesiástico que oferece o seguinte conselho: “desvia teu olho de mulher formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perderam por causa da beleza de mulher, por sua causa o amor inflama como o fogo”.

Em outro texto pseudoepígrafo, Salmos de Salomão, datado de cerca 125 a.C.  70 d.C., lemos: “Livra-me, oh Senhor, do pecado sórdido, e de toda mulher maldosa que seduz o tolo. E que a beleza da mulher criminosa não me seduza e não me engane, e que ninguém se sujeite a tal pecado”. (S. Salomão 16,7-8). Por último temos um eloquente exemplo no texto deuterocanônico de Judite onde ela ora a Deus e pede: “Dá-me uma linguagem sedutora, para ferir e matar”. (Judite 9,13) para em seguida ornamentar-se com o propósito de seduzir e matar o general do exército inimigo:

“Quando cessou de clamar a Deus de Israel e terminou todas as suas palavras, ela se levantou da sua prostração, chamou sua serva e desceu para a casa que ficava nos dias de sábado e de festa. Tirou o pano de saco que vestira, despojou-se do manto de sua viuvez, lavou-se, ungiu-se com ótimo perfume, penteou os cabelos, colocou na cabeça o turbante e vestiu a roupa de festa que usava enquanto vivia seu marido Manasses. Calçou sandálias nos pés, colocou colares, braceletes, anéis, brincos, todas as joias, embelezando-se a fim de seduzir os homens que a vissem”. (Judite 10,1-5)

E após concluir sua tarefa de forma bem-sucedida, Judite, com a cabeça de Holofernes em suas mãos, exclama: “Viva o Senhor que me guardou no caminho por onde andei, pois o meu rosto o seduziu, para sua perdição” [...]. (Judite 13,16).

RESUMO

Em 1 Coríntios 11,2-16 Paulo está interessado em retificar a interpretação que a igreja de Corinto fizera de seus ensinamentos anteriores sobre a unidade de homem e mulher (Gal. ,28), a liberdade em Cristo e corrigir a prática que aquela igreja adotara ao abandonar a diferenciação dos sexos no que se refere ao tratamento em relação aos cabelos e ao uso do véu no ato litúrgico. O que nos chama a atenção nessa perícope é a recomendação que Paulo faz no v. 10 para a mulher cobrir a cabeça como sinal de autoridade, por causa dos anjos. A alusão aos anjos somada ao dever de cobrir a cabeça da mulher como sinal de autoridade ecoam imagens similares presentes na tradição judaica que floresceu no período intertestamentário concernentes ao papel dos anjos na criação. Este ensaio discute de maneira breve, as possíveis influências do Mito dos Anjos Vigilantes, desenvolvida a partir do livro pseudoepígrafo 1 Enoque, com o objetivo de verificar se o autor de 1 Coríntios 11,2-16 lançou mão do imaginário apocalíptico da tradição do Mito dos Anjos Vigilantes em sua argumentação a favor do uso do véu descrita em 1 Coríntios 11,10.

Nas próximas publicações falaremos sobre o “Mito dos Anjos Vigilantes” e a sua influência no desenvolvimento teologia cultual/religioso do Antigo e do Novo Testamento. Acompanhem....



ANJOS VIGILANTES E MULHERES DESVELADAS. Uma relação possível em
1 Coríntios 11,10? Araujo, Anderson Dias.
Fonte: Revista Oracula 4.8 (2008) 151-156

 


No dia 07/7/2015, postei no meu blog o estudo “ A MULHER, A SUBMISSÃO, A IGREJA E A SOCIEDADE DO SÉC XXI”, que pode ser localizado no endereço http://prwneves.blogspot.com.br/2015/06/a-mulher-submissao-igreja-e-sociedade.html. 

(*) Revista Oracula foi criada no ano de 2005 como meio de divulgação dos projetos e produções do Grupo Oracula de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Articulando professores, doutorandos e mestrandos da área da literatura bíblica, bem como da história da antiguidade para o estudo da apocalíptica judaica e cristã primitiva, com métodos da história da religião e da exegese bíblica, o propósito foi, durante muito tempo, publicar artigos sobre apocalíptica, profecia e fenômenos visionários dos pesquisadores do grupo e de seus interlocutores no Brasil e no exterior.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

A CRISE DA ESPIRITUALIDADE NO MOVIMENTO NEOPENTECOSTAL BRASILEIRO.


                                                          
Carlos Eduardo Stracci *

Stanley Barbosa da Rocha*

Waldemar Augusto Neves Junior*

 

 Resumo

Este artigo tem por objetivo mostrar as distorções que tem proliferado no meio evangélico chamado de Neopentecostalismo. O despreparo e a insipiência bíblica de seus líderes ocasionam o esvaziamento da prédica nos púlpitos, com isso o movimento neopentecostal cresce exportando doutrinas e hermenêuticas estranhas à Bíblia e à tradição cristã. Com sua limitada visão do Reino de Deus, aliada a um crescente judaização do cristianismo, vende-se a ideia da prosperidade, saúde e realizações pessoais, baseadas em revelações e profecias de forma que se prioriza a busca pelo prazer humano, por uma horizontalização das conquistas terrenas. Nossa pesquisa pretende analisar tais crenças e mostrar que em alguns casos, a tênue linha entre o sagrado e o profano já foram ultrapassadas. Diante deste quadro, devemos refletir acerca de qual atitude tomar.

 

Palavras-chave: Neopentecostalismo, ressignificações teológicas, IURD.

 

Introdução 

 

Quando assistimos nas televisões e ouvimos nas rádios de todo Brasil as religiões propagando um cristianismo distante de Cristo, o que podemos esperar?

Usando a Bíblia como referência, podemos comparar tais igrejas com a Igreja de Laodicéia citada no livro de Apocalipse que se preocupava com as conquistas financeiras e materiais; diferente da Igreja de Filadélfia que buscava os frutos do espírito.

A Igreja de Laodicéia nos faz lembrar muitas igrejas neopentecostais dos dias atuais, ou talvez, as igrejas neopentecostais dos dias atuais nos faça lembrar da Igreja de Laodicéia. São igrejas que erguem grandes templos, lindas colunas, pisos de mármore, púlpitos de ouro, mas mesmo em toda sua pompa e riqueza são mundanas, populares e egocêntricas. Investem em marketing modernizando o evangelho para atrair multidões, manipulando quem busca a Cristo. Criam campanhas cobradas (pagas), inserem rituais e simbologias que contradizem ao pregarem contra a idolatria. Com este investimento maciço levantam recursos para seu bel-prazer; o dinheiro do dízimo é revertido para o conforto pessoal como na aquisição de carros zero, mansões, etc. Prega-se, ao invés da prosperidade do evangelho, o “evangelho da prosperidade”, e com isso a igreja física torna-se rica, mas, no entanto, pobre diante dos olhos de Deus. Pouco se investe em missões, evangelizações e assistência social, não pregam santidade nem o compromisso com a palavra Deus, somente propagam o compromisso com o próprio estatuto da entidade.

Tornaram-se uma igreja morna onde o “joio” é amigo do “trigo”, onde o homem não tem valor pelo seu caráter e disposição para a obra, mas sim pelos bens materiais que possui. Homens, pregadores e cantores que se proclamam “de deus”, mas não aprenderam o que significa “negar-se a si mesmo”. Cobram cachê para ensinarem o que não lhes pertencem e o que de graça receberam. Igreja que não serve, mas quer ser servida pelos céus, por pura vaidade. Esta igreja está misturada com o mundo e a sua referência é a riqueza material. Por isso é criticada pelo dono da Igreja. É a igreja que produz “virgens imprudentes” - desvia os olhos de seus membros para as coisas terrenas; se ocupam e se distraem com as coisas do mundo. Esta igreja, que se achava rica e forte, foi criticada por seu orgulho e autossuficiência. Exaltou-se, ao invés de se humilhar diante do Senhor dos senhores.

A igreja de Laodicéia, ou a igreja que vende ilusões, acaba se tornando um “Tanque de Betesda” Jo 5, 1-15. No tanque de Betesda os enfermos se reuniam para esperar o movimento das águas que um anjo, vez em quando, as moviam. Quem descesse primeiro às águas quando isso acontecesse era curado de suas enfermidades. Muitos vão à procura de igrejas que promovem curas, libertações, promessas de bênçãos materiais, entretanto, estão ali como se estivessem esperando somente o movimento das águas.

Este artigo vai mostrar os caminhos da igreja para que chegasse aonde chegou; os períodos ou ondas do pentecostalismo brasileiro; as principais denominações e seus líderes, e, suas práticas litúrgicas. Análise que vai do pentecostalismo clássico até o neopentecostalismo atual - o profano no púlpito tomando o lugar daquilo que é sagrado. O abandono da graça, que dá lugar a obras ou práticas religiosas; a judaização do cristianismo, quando práticas ou objetos do Antigo Testamento ganham seus valores místicos. A forte influência da Igreja Universal do Reino de Deus e sua liturgia tão distante da realidade bíblica.

 

1. As ondas do Pentecostalismo no Brasil

Ao se falar no movimento pentecostal brasileiro devemos falar sobre o começo desse movimento nos Estados Unidos, uma vez que nossas igrejas pentecostais tiveram início por lá, ou, de missionários de lá oriundos. O que se sabe do movimento pentecostal americano é que houve várias manifestações de pequena expressão ou de maneira individual, porém com destaque temos o avivamento, em 1895, em Dakota no Norte e o da Carolina do Norte onde 130 pessoas foram batizadas no Espírito Santo; outro em 1901 na cidade de Topeka, estado do Kansas, quando ali ocorreu um seminário – Seminário Bíblico Betel – que alcançou e se alastrou no ano de 1906 para Los Angeles, o famoso avivamento chamado de “Avivamento da Rua Azusa”.

Muitos dizem que a Missão da Rua Azusa é “a mãe do pentecostalismo mundial”; William Seymour era o líder dessa fase inicial e as principais características desse movimento (pentecostal) era o chamado "batismo com o Espírito Santo", considerado um dom do Espirito de Deus conhecido como glossolalia (variedade de línguas), também, curas sobrenaturais, profecias, interpretações de línguas e discernimento de espíritos, dentre outros. Durante o decorrer do tempo o movimento pentecostal foi sofrendo constantes mudanças na medida em que ia interagindo com outros pentecostais e suas diferentes experiências. Essas divisões na história do pentecostalismo, Paul Freston (MARIANO, 2005, p. 28-33) classifica em três fases ou, como ele chama, de “ondas”.


1.1 A Primeira Onda

No Brasil a primeira “onda” acontece entre os períodos de 1910 a aproximadamente 1950. Esse primeiro período é o chamado “período clássico” e as igrejas que se destacam são Assembleia de Deus e Congregação Cristã no Brasil.

Daniel Berg e Gunnar Vingren, de origem sueca, vieram para o Brasil, desceram na cidade de Belém, no Estado do Pará no ano de 1910. Ao chegarem receberam assistência de um pastor Batista, mas logo que começaram a dominar a língua portuguesa, prontamente, colocaram-se a divulgar a mensagem pentecostal. Com a separação entre eles e a Igreja Batista, começam um trabalho chamado Missão de Fé Apostólica, nome mudado para Assembleia de Deus no ano de 1914. Já a CCB foi fundada em 1910 por um italiano oriundo dos Estados Unidos chamado Louis Francescon que já havia sido batizado no Espírito Santo e experimentado a força do “pentecoste” (BLEDSOE, 2002).

 

1.2 Pentecostalismo Pós-Clássico ou Segunda Onda do Pentecostalismo 

São os termos que designam a segunda onda do movimento Pentecostal que surgiu na década de 50, quando chegaram a São Paulo dois missionários, o americano  Harold Williams, e o pastor peruano Jesús Hermirio Vásquez Ramos, ali criaram a Cruzada Nacional de Evangelização com ênfase na cura divina, profecias e no exorcismo, o que o distingue da primeira onda. Iniciaram a evangelização das massas, fazendo uso principalmente do rádio. Fundaram depois a Igreja do Evangelho Quadrangular.

O Brasil para CristoIgreja Pentecostal Deus é AmorIgreja UnidaCasa da Bênção, entre outras, são nomes de destaque nesse período e que se encaixam como sendo da segunda onda (BLEDSOE, 2002).

 

1.3 A Terceira Onda

A terceira onda começa no início dos anos 70 o chamado “movimento Neopentecostal” (neo que dizer novo), por serem mais liberais que os outros momentos vividos pelas outras igrejas. Só de apresentarmos a lista de igrejas que surgiram entre 1977 e 1998 você consegue perceber a diferença dos movimentos: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça, Comunidade Paz e Vida, Igreja Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial do Poder de Deus, e, mais atualmente, a Igreja Plenitude. De maneira geral, todos esses fazem um forte uso da mídia eletrônica, fazendo bastante o uso do marketing. Esse movimento está em plena atividade e continua crescendo (BLEDSOE, 2002).

No Brasil esse movimento chama a atenção devido ao seu crescimento e influência, hoje, representam quase metade dos grupos pentecostais, sendo o Brasil o país com o maior número de grupos pentecostais do mundo.

Uma das razões de seu crescimento é o fato de ser um movimento que influencia e envolve várias denominações independentes que comungam dessa ideologia teológica, ou seja, o movimento não é uma denominação com estrutura e líder, mas sim um meio de se cultuar. Isso torna até difícil de definir o movimento sendo que diariamente surgem novos grupos distintos, além de parecer que o movimento apenas adota coisas que dão certo, e tem-se a impressão que vivem apenas uma religião sem Deus, com liberdade de crença e doutrina.

O Neopentecostalismo está bem distante do pentecostalismo clássico, embora este tenha sido contaminado por aquele. Mas os berços paradigmáticos de um e de outro são os mesmos. Sua ênfase teológica não é mais cristológica e sim pneumatológica. (MARIANO, 2005, p.55).

 

Foi ano de 1975 que Edir Macedo, R.R. Soares Roberto, Augusto Lopes e os irmãos Samuel e Fidélis Coutinho fundaram a Igreja Cruzada do Caminho Eterno. Dois anos depois Macedo e seu cunhado Soares se separam e fundam a Igreja Universal do Reino de Deus, mas, também, por discordâncias, R.R. Soares em 1980 fundou sua própria igreja, a Internacional da Graça de Deus.

Tanto Edir Macedo quanto Soares eram e haviam saídos da Igreja Nova Vida, fundada pelo canadense Robert McAlister, que já apresentava características bem diferentes das igrejas pentecostais (MARIANO, 2005, p. 55). Perceba que no Brasil a linha que separa as igrejas da chamada segunda onda, conhecidas hoje como pentecostais e as da terceira é muito imperceptível. Podemos dizer que a terceira onda começa a se firmar na cidade do Rio de Janeiro que nos anos 70 se encontrava economicamente decadente. O novo pentecostalismo, também denominado “pentecostalismo autônomo” (CAMPOS, 1999, p. 18) por alguns estudiosos, encontrou solo fértil nessa cultura urbana influenciada pela televisão.

O movimento caminha fazendo uso inteligente dos meios de comunicação de massa, para “nacionalizar” o neopentecostalismo dos Estados Unidos, afinal, se dava certo lá, daria mais certo por aqui.

Como dito antes a Igreja Nova Vida de onde saíra o bispo Macedo e o missionário Soares foi um grande celeiro, pois vários nomes do meio neopentecostal brasileiro saíram de lá, foi de fato um “estágio” para esses futuros líderes. A Igreja Nova Vida foi fundada em 1960, por um canadense chamado Robert McAlister que havia servido à Assembleia de Deus. A Nova Vida investiu muito na mídia e foi a primeira igreja pentecostal a adotar o episcopado no Brasil. A Igreja ensinava o que de mais forte se vê hoje no meio neopentecostal: batalha espiritual e prosperidade.  Quando se diz que a Igreja Vida Nova foi um celeiro pode-se acreditar, pois ali nasceram: a IURD – Igreja Universal do Reino de Deus fundada por Edir Macedo, a Igreja Internacional da Graça de Deus fundada por Romildo R. Soares, e a Igreja Cristo Vive fundada por Miguel Ângelo (ROMEIRO, 2005, p. 50).

Não há nada homogêneo e pelo que se vê também não há interesse nesse meio que algo desse tipo aconteça, ao contrário disso o que se vê é a forte tendência em diversificar e continuar cada um no seu território. Na verdade, o neopentecostalismo é uma nova forma do pentecostal na qual deixou-se de lado a ênfase de se falar em línguas, os dogmas, a segunda vinda do senhor Jesus e até mesmo na salvação eterna, dando lugar ao curandeirismo, exorcismo, batalha espiritual e a prosperidade. É através da fé que o crente tem direito a saúde e sucesso quebrando as barreiras que o diabo quer colocar na vida das pessoas. Por isso, no Brasil, o espiritismo e as religiões afro-brasileiras acabam se tornando os principais inimigos.

As principais igrejas neopentecostais são:

A Igreja Universal Do Reino De Deus - Em 1975 Edir Macedo e já seu cunhado, R.R. Soares juntamente com Roberto Augusto Lopes, e os irmãos Coutinho fundaram a igreja Cruzada do Caminho Eterno, no entanto algumas desavenças fizeram com que Macedo e Soares saíssem e formassem no ano de 1977, o que seria a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Nenhuma igreja neopentecostal tem a grandeza de influência e se destaca tanto como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), possivelmente a atual responsável em enviar missionários a partir de uma nação do Terceiro Mundo. Há de se destacar que não há IURD sem bispo Macedo, uma das figuras mais polêmicas da história da religião no Brasil.

A igreja é reconhecida como uma igreja urbana com alta concentração no eixo Rio-São Paulo. Por muitas vezes se intitula como “pronto-socorro” espiritual para os que procuram por um milagre. Em salões alugados ou próprios, em centros de grandes bairros ou em suas catedrais nos centros das grandes cidades, são ministradas de 3 a 5 reuniões diárias, sete dias por semana, todas no estilo quase que idêntico do líder, o bispo Edir Macedo. Verdade é que o sucesso administrativo de Macedo é imitado por outras denominações pentecostais, não pentecostais e até por católicos do meio renovado, chamados carismáticos que combinam o método da benção física, espiritual e financeira, e tudo que está fora do sucesso é atribuído ao diabo.

A Igreja Internacional Da Graça De Deus - Conforme já dito IIGD nasce do mesmo berço que a IURD, começou em 1980, na Rua Lauro Neiva, no Município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Assemelha-se em parte com a IURD, porém não tem o mesmo dinamismo e, esta, não usa de tanta criatividade quanto aquela. Seu líder, R.R. Soares, acredita que o verdadeiro evangelho é manifestado através de milagres, de curas e libertação de demônios.

A Igreja Apostólica Renascer Em Cristo - Fundada em 1985 pelo “apóstolo” Estevam Hernandes e sua esposa, a bispa Sônia Hernandes. “Desde sua origem a igreja voltou sua atenção para os jovens, usando o rock gospel como meio de atraí-los” (DOLGUIE apud ROMEIRO, 2005, p. 56).

A Igreja Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra - Fundada pelos bispos Robson e Maria Lucia Rodovalho, no ano de 1992, em Brasília. Também como as demais igrejas de linha neopentecostal, a CSNT tem como base a Teologia da Prosperidade, dando também grande importância à quebra de maldições hereditárias.

 Igreja Mundial Do Poder De Deus (IMPD) - Fundada em 1998, em Sorocaba, interior de São Paulo, pelo “apóstolo” Valdemiro Santiago, ex-líder da IURD, onde esteve por 18 anos. A denominação afirma que cresceu mais de 200% só no ano de 2007 e hoje afirma possuir mais de 4.500 templos espalhados pelo território nacional. A igreja enfatiza a cura e os milagres, e, assim como as demais do ramo neopentecostal, investe pesado na mídia através do rádio e TV.

A Igreja Nacional Do Senhor Jesus Cristo - A igreja é presidida por Valnice Milhomens, ex-missionária da Convenção Batista Brasileira na África, lugar onde vai obter seus primeiros contatos com os ensinos da ‘confissão positiva’ através da Escola Bíblica Rhema, braço do ministério de Kenneth Hagin (ROMEIRO, 2005, p.59). Valnice é a fundadora do Ministério Palavra da Fé, seguindo os fundamentos e ideias de Hagin, porém já como pastora funda, em 1994, a Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (ROMEIRO, 2005, p. 61). Valnice prega e ensina que existem batalhas entre o bem e o mal, no mundo espiritual, pelo corpo de pessoas. Ela é, sem dúvida, uma das principais divulgadoras do movimento G-12 (igreja em células) no Brasil, isso porque se tornou discípula do pastor colombiano Cezar Castelano, criador da visão.

Igreja Bola De Neve - Foi no ano 2000 em que Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, o "pastor Rina", fundou a Igreja Evangélica Bola de Neve. Conhecido como o surfista que se tornou pastor, hoje ele é apóstolo. Rinaldo saiu da IARC (Igreja Apostólica Renascer em Cristo), depois de cinco anos de trabalho, e começou essa nova igreja sem formalismos cujo foco é atrair jovens de todas as idades, se despojar de dogmas, usos e costumes. Outra coisa que lhe é peculiar é o uso de todos os ritmos musicais dentro da liturgia do culto.

 Comunidade Cristã Paz E Vida - Rodney, Juanribe, Misael e Hideraldo Pagliarin, quatro irmãos que em 1996 fundaram a igreja Paz e Vida. Esta igreja adota a mesma linha de pregações e cultos das demais igrejas neopentecostais, com muita música, aplausos, sessões de exorcismo, cultos de libertação, prosperidade e cura divina.

Não há como negar que o movimento neopentecostal está vinculado à filosofia ou movimento conhecido como “Confissão Positiva”, com ideias oriundas da “Ciência Cristã”, ou seja, que prega um Deus com uma mente isenta de todo mal, não sendo (Ele) responsável por nada do que acontece em nossa natureza. Para eles “estar com Deus” significa abandonar qualquer tipo de tratamento para apenas nos ligamos ao divino e obtermos saúde e sucesso, somente através dEle. Com isso, “confissão positiva” significa “trazer a existência o que declaramos com nossa boca”, as palavras seriam uma atitude mental positiva responsável por realizar tudo no mundo físico quanto, também, no campo espiritual. Isso se faz com meditação, intuição e hipnose, procurando fazer com que as palavras materializem os pensamentos; se Deus faz tudo através da Palavra, nós como filhos também devemos usar da palavra de fé para alcançarmos nossas necessidades, seja ela uma cura, ou, prosperidade, ou ainda, quebra de uma maldição hereditária, ou simplesmente um trabalho de macumbaria. A ideia é estar livre de qualquer tipo de problema ou aflição, mas, sim, viver o contrário disso.

Willian Kenyon - pastor norte americano da Igreja Batista Nova Aliança,[1] evangelista e escritor e fundador do Movimento Palavra de Fé - se baseia nisso (confissão positiva), para concretizar a ideia da teologia da prosperidade e da saúde perfeita, sendo mais tarde Kenneth Hagin, pastor norte-americano, o nome mais ligado a esse movimento devido a propagação que realizou, tanto que ele é considerado o pai do Movimento de Fé.  R.R. Soares é o principal divulgador do Movimento de Fé (Faith Movement), de Kenneteh Hagin, e seus livros são distribuídos pela Graça Editorial, da Igreja Internacional da Graça de Deus.

 

2.  A força da IURD no cenário Neopentecostal brasileiro: aspectos teológicos e litúrgicos

 

 “Repetitivo, o discurso pregado diariamente pela Universal lida com os mesmos problemas, fornece sempre o mesmo diagnóstico de suas causas e apresenta as mesmas soluções. Para tornar o culto atraente, não enfadonho, algo precisa variar. Variam as formas e a nomenclatura dos rituais ou “correntes” (corrente de Jó, do tapete vermelho, dos 12 apóstolos, do amor, do cheque da abundância, das 91 portas...), assim como o modo de participar deles e o sacrifício (a quantia de dinheiro exigido para o fiel habilitar-se a receber bênçãos. Seu repertório simbólico, além de inusitado nos meios pentecostais que, como o protestantismo reformado, sempre foram avessos ao uso de objetos sagrados (tirante a Bíblia) para não sucumbirem à idolatria, parece ser inesgotável. Indiferente às críticas de outras igrejas evangélicas, a Universal frequentemente distribui aos fiéis objetos benzidos portando poderes mágicos, miraculosos. ” (MARIANO, 1996, p.127-128).

Um grande problema que se nota no meio neopentecostal é uma evidente hermenêutica e teologia própria. As interpretações são individuais, baseadas em emoções ou experiências próprias. Essa prática, segundo Macedo, visa despertar a fé das pessoas. Mas na realidade a verdade é outra, o leigo é influenciado a não quebrar a campanha para não atrair sobre si “males ainda piores” e é envolvido num cerimonial criativo onde o pastor irá consagrar com poder divino alguns objetos para resolver toda espécie de problemas. Por isso, os fieis são estimulados a obterem objetos (rosa, azeite, perfume do amor, saquinho de sal, sal grosso, galho de arruda, aliança, lenço, agua do rio Jordão, xerox da cédula de dinheiro benzida, areia de praia domar da Galiléia, óleo do Monte das Oliveiras, espadas de plástico, cruz, chave, sabonete) que por serem ungidos tornaram-se dotados de qualidades sacrais, poderes terapêuticos e sobrenaturais como explica Mariano.

 

 “Para surtir efeito, porém, os fiéis devem participar das correntes de oração durante determinado período, em geral, sete ou nove dias e, em certos casos, até algumas semanas. A quebra da corrente, ou ausência de algum dos cultos, acarreta o não-recebimento da bênção. A Universal não mede esforços para tirar proveito evangelístico da mentalidade e do simbolismo religiosos brasileiros. Apela deliberadamente para o sincretismo. Para tanto, distribui objetos benzidos, retira “encostos”, desfaz “mau-olhado” e realiza diversos rituais que, ao menos pelo nome, evocam os das religiões inimigas”. (MARIANO, 1996, p.127-128).

 

A visão teológica que a IURD tem desenvolvido no cenário neopentecostal brasileiro fica evidentemente demostrada nas palavras de seu líder “Todas as formas e todos os ramos da teologia são fúteis; não passam de emaranhados de ideias que nada dizem ao inculto, confundem os simples e iludem os sábios. Nada acrescentam à fé e nada fazem pelos homens, a não ser aumentar sua capacidade de discutir e discordar entre si” (MACEDO apud ROMEIRO, 2005, p. 118). O método como a IURD interpreta a bíblia consiste em atualizar as experiências de personagens bíblicos para nossos dias, como se a Bíblia fosse apenas um livro de experiências religiosas, experiências que devem ser revividas, hoje. Na verdade, se alegoriza, mas deixa-se o aspecto histórico de lado. Vamos exemplificar: Se Noé fez uma aliança com Deus, nós também podemos levar nossa necessidade ao Pai e moldar para fazer um acordo que nos caiba. Se Josué derrubou as muralhas de Jericó então podemos rodear sete vezes nossas dificuldades e derrubá-las, ainda que nossa trombeta seja de plástico e a muralha de papelão.

A IURD se distancia do fundamentalismo bíblico ao enfatizar símbolos, ou alegorias em sua liturgia, além do uso excessivo de textos do Antigo Testamento. Veja o nome de algumas campanhas: “fogueira santa de Israel”; “Campanha dos 318 pastores”; “Festa anual da libertação do Egito espiritual” da IURD baseado em Gn 14:14-16; “O ano de Calebe”; Jejum de Gideão”; Campanha das dez bênçãos de Abraão”; Jejum dos salmos de guerra”. Fazem uso de enxofre, óleo ungido, rosa ungida, sal grosso, painéis de foto ungidas, nó em camisas de familiares, copo d’água em cima da TV ou rádio etc. objetos que são ditos como “ungidos”, dando a ideia de objetos dotados de poderes miraculosos, servem para curar, libertar; prosperar, resolver problemas. Deus parece apenas uma força que te dá sorte, e essa sorte se move ao seu favor pela fé, e a fé é demonstrada por práticas, e esse é o objetivo das campanhas, correntes ou pedidos de ofertas e dízimos, fazer com que se pratique a fé.

A Igreja moderna admite as profecias de maldição, mas somente se lembra de ministrar em seus cultos as promessas de benção. É claro que situações negativas são deixadas de lado, como, por exemplo, a tribulação de Jó, ou os sofrimentos de José no Egito. Às vezes, até mesmo textos como Salmo 40 onde Davi diz: “Esperei com paciência pelo Senhor” são alterados de seu sentido, veja o que declara Soares sobre esse texto: “Davi agia assim, pois não era filho de Deus, apenas um servo, nós somos filhos e Deus nosso Pai, não nos deixaria ficar esperando” (SOARES, 1997, p. 27-28). A verdade é que o que era dirigido, antigamente, ao povo hebreu, não é um regulamento para nós nos dias de hoje.

Não somente a IURD, mas boa parte das igrejas Neopentecostais agem de maneira exagerada na questão “prosperidade” e, também, na crença de que toda luta, fracasso ou dificuldades diárias são ataques demoníacos, por isso é proposto o fim do sofrimento com a ajuda divina, e essa ajuda requer um “preço”, um sacrifício; essa entrega, esse dispor é a fé em ação, o que gerará um resultado positivo.

As igrejas usam muito o slogan “pare de sofrer” o que expõe a ideia de uma vida de gozo neste mundo, neste momento, e às vezes enfatiza mais que a própria vida eterna, a ideia é: se somos filhos de Deus, precisamos ter o melhor desta terra.

A verdade que se vê é um investimento do tipo empresarial, só se investe se o retorno for rápido, não se vê uma preocupação com questões como missões, discipulado nem com crescimento espiritual ou doutrina; a preocupação é aumento de patrimônio.  A ideia é sempre a mesma: 1- transmitir a crença de que Deus nunca diz não a seus filhos; 2 - que o sofrimento é sinal de falta de fé, ou pecado; e 3- afirma que pobreza não combina com nossa posição de filhos do Rei, por isso tudo está ligado à oferta, a oferta e o dizimo é a prova de que se creu, é ato de fé. Edir Macedo chega a ter a ousadia de dizer o que escreveu em seu livro “O perfeito sacrifício”, que o dinheiro é o sangue da Igreja, isso por que traz a história das pessoas (seu tempo, suor, inteligência, o esforço de cada um) (MACEDO apud ROMEIRO, 2005, p. 108).

Em um artigo da Folha Universal, Macedo ensina os fiéis a se revoltarem contra coisas ruins. Se uma pessoa não se revoltar contra essa situação ruim, seja ela espiritual, emocional, ou financeira, nunca sairá dela.

R. R. Soares declara que como filhos de Deus devemos “assumir a autoridade de filhos e exigir que sejamos abençoados” ensina que “benção não é esmola” mas sim direito nosso (SOARES, 1997, p. 22; 47-48). Veja o que Soares diz em um de seus artigos: “(...) Prefiro que digam que eu prego o evangelho da prosperidade, pois na verdade, esse é o evangelho que eu propago. (...) O cidadão fala que é de Deus mais fica com o aluguel atrasado, com a barriga vazia... Não creio na miséria. Essa história é conversa de derrotados. São tudo (sic) um bando de fracassados, cujas igrejas são um verdadeiro fracasso. Chega lá. Tem meia dúzia de pessoas para o ouvir...” (SOARES apud ROMEIRO, 2005, p. 112).

Onde entra o arrependimento, a regeneração, santificação, salvação em Cristo? O assunto é sempre vitória, a qualquer preço; o que tem valor é a lei da semeadura, o “é dando que se recebe”, mas o que parece é que os adeptos da teologia da prosperidade esquecem-se da soberania divina.

A verdade é que o que se vê é um culto sem adoração, onde campanhas dão a impressão de que se Deus comparecer é para responder e abençoar, não para ser adorado, mas apenas para atender e servir. Não existe um estudo da palavra de Deus, apenas palavras positivas ditas pelos líderes, palavras do tipo: “você vai vencer”, “Deus vai te fazer prosperar”, “Jesus vai te curar, hoje”. Ao invés da adoração e da entrega de vida, a adoração é considerada apenas quando o “fiel” dá algo para Deus, e é claro que isto diz respeito à oferta.

 

3. O uso de símbolos judaizantes na IURD e suas ressignificações teológicas

 

No que diz respeito às igrejas neopentecostais, é cada vez mais comum a apropriação de símbolos, rituais e trechos da liturgia judaica. Entre eles têm destaque a estrela de David (na bandeira do Estado de Israel ou simplesmente como um ornamento dentro das igrejas), a menorá (candelabro de sete braços), o shofar (chifre de carneiro cujo som tem lugar destacado nas comemorações do Ano Novo Judaico e no Dia da Expiação), o talit (acessório em forma de xale usado pelos judeus ortodoxos), réplicas da Arca da Aliança e passagens escritas em hebraico, tanto nos livros litúrgicos como nas paredes dos prédios dessas igrejas. Em algumas denominações evangélicas é comum que se celebre a Páscoa Judaica e a Festa dos Tabernáculos e a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) organizou em 2007 uma campanha nacional de venda de mezuzot (pequeno rolo de pergaminho, que contém trechos sagrados da Torá, protegido por uma caixinha e pregado nos umbrais das portas de lares e estabelecimentos judaicos). Finalmente, quase todas as igrejas evangélicas organizam viagens a Israel nas quais seus membros e simpatizantes visitam, além dos lugares santos cristãos, os lugares sagrados do judaísmo, como o Monte Sião e o Muro das Lamentações. Paralelamente, apesar de serem menos multitudinárias que as igrejas neopentecostais, as igrejas messiânicas têm se multiplicado nos últimos anos, alcançando uma visibilidade cada vez maior. Sua arquitetura particular, a que se somam os nomes escritos em hebraico na entrada dos templos, como Beit Tsar Israel, Beit Tehsuvá, Ar Tzion e Am Israel, faz com que essas igrejas sejam facilmente confundidas com sinagogas, tanto por judeus como por não-judeus (TOPEL, 2011, p. 37).

No meio neopentecostal o que aparentemente dá certo é imitado por outros líderes, por isso a ideia se alastra e se multiplica. No entanto isto tem levado as pessoas a crenças errôneas sobre o evangelho, então correm atrás de um Deus útil ao invés de um Deus indispensável. Religiões criadas à imagem e semelhança de seu fundador, e não alicerçada na verdade bíblica.  Quem não se lembra da inauguração do chamado “Templo de Salomão”, da Igreja Universal, quando a partir de então os bispos passaram a fazer uso do Tallith (manto/xale usado nas orações matinais) e do Kipá (acessório utilizado acima da cabeça pelos judeus homens). Na verdade, há muitas igrejas querendo viver como judeus adotando práticas descritas no Antigo Testamento, comuns no judaísmo e não no cristianismo.

Isto não é coisa de agora, mas iniciou-se já no período da igreja primitiva por parte de alguns judeus convertidos que ensinavam aos demais, inclusive os que não eram judeus, a guardarem também a lei, pois acreditavam que nela se completava a salvação. Parecia que era difícil para os judeus se desligarem e se entregarem por completo a salvação de Cristo. Paulo reage de maneira enérgica: ele repreende a Pedro, lembrando-o que a justificação não é obra da lei, e, sim, fruto da fé em Cristo Jesus (Gl 2:11-14).

E isso aos olhos do leigo, parece não haver nenhum tipo de problema, mas há. Se tais pastores ou dirigentes se preocupassem mais em pregar a palavra de Deus e conhecê-la, tais absurdos nem passariam perto de nossos templos. Todavia, o desconhecimento e a reengenharia de alguns, aliada ao modismo, têm contaminado nossos púlpitos e tem transformado a liturgia cristã em verdadeiros “vale tudo”.

O evangelho pregado pela IURD e outras igrejas neopentecostais, entendem que as bênçãos de Deus não são frutos de sua maravilhosa graça, mais sim, consequência direta de uma relação do toma-lá-dá-cá. Neste contexto, tudo é feito em nome de Deus e para se conseguir a benção é absolutamente necessário pagar alto! Nesta perspectiva tudo se vende, desde o sal grosso até pequenos frascos contendo água do Rio Jordão. Por favor, reflita sinceramente: Qual a diferença da oferta extorquida do povo sofrido nos dias atuais para venda das indulgências da Idade Média? Qual a diferença dos utensílios vendidos no século XVI, para os que são comercializados em templos da IURD?

Precisamos ter em mente que o sacerdotalismo judaico, a antiga aliança, a tentativa de judaização do cristianismo, a venda de indulgências, ficaram no passado, foram rejeitadas pela igreja primitiva e outras, pela Reforma do século XVI.

Cabe lembrar, que no contexto do livro de Hebreus, o autor enfatiza e defende uma serie de temas focalizando a superioridade de Cristo. Sua primazia e divindade são motivos para todas as criaturas lhe darem louvor. Sua eficácia do único sacrifício perfeito pelos pecados, “porque é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados” (10:4). O único sacrifício capaz de remover pecados é o próprio Cristo, que se ofereceu “uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos” (9:28).  Deus manda que os anjos adorem a Jesus, e apresenta seu Filho de um modo que todos devem admirá-lo. Jesus Cristo é Deus. Esta carta enfatiza a posição de Jesus como nosso Sumo Sacerdote. Nesta capacidade, ele entrou a nosso favor na presença do Pai, onde permanece até hoje. Por meio dele, podemos nos aproximar do trono da graça com a confiança e esperança, sabendo que ele vive para nos ajudar na caminhada para a eternidade. 

O autor escreve para dizer que as práticas judaicas da Antiga Aliança não precisam mais ser seguidas pelos cristãos.

 

Considerações finais

Desta maneira, entendemos que a terceira onda do pentecostalismo no Brasil, iniciada nos anos 70 e conhecida como Neopentecostalismo, trata-se de um sincretismo de ressignificações teológicas entre protestantismo, pentecostalismo, catolicismo romano e religiões afro-brasileiras (inclui-se aqui kardecismo e o Umbandismo), produzindo assim o pluralismo religioso.

Sua ótica potencializada num marketing agressivo, com fortes investimentos na mídia (programas na televisão, rádios e etc) avançam com êxito em todas as camadas sociais, atraindo-as pelas propostas de mudanças de uma vida de sofrimentos, dívidas, vícios, doenças etc. Além do fato de que, sua propaganda massiva de uma Teologia da Prosperidade, baseada numa barganha do “toma lá dá cá” com Deus, tem atraído a muitos, com uma proposta de um retorno fácil e garantido, principalmente porque vivemos numa época e num país de endividados. Por esta razão, o neopentecostalismo se mantém e atrai os fiéis oriundos de diversos campos religiosos (católicos, evangélicos, espíritas etc).

Apesar do sincretismo apresentado pela IURD e de outras igrejas neopentecostais, os mesmos se denominam evangélicos, ou protestantes, e de modo estratégico, não explicitam as rupturas que criam em relação aos sistemas do qual se originaram, quando na verdade já promoveram diversas ressignificações de seus sistemas simbólicos. Motivo estes que tem desagradado os grupos com os quais interagem, motivando assim um relacionamento conflituoso, sejam entre os pentecostais, sejam as religiões de matriz africana.

Tratando particularmente da Igreja Universal do Reino de Deus, as influências judaizantes fazem parte do discurso que põe a divindade para trabalhar em favor dos homens; acreditando no poder das palavras; e convicto que tudo depende da fé e, sendo assim, já não é mais Deus, mas a fé que faz a diferença. Numa sociedade voltada para o consumo e preocupada quanto ao futuro, não é difícil que o “Pare de sofrer” da IURD encontre espaço. É bom salientar que o “Pare de sofrer” não deve ser visto apenas como um mero discurso. Para uma grande maioria a frase de efeito traduz-se em libertação de vícios, na construção de uma nova identidade, na determinação de lutar para melhorar o status social e numa série de outros benefícios enfatizados nos testemunhos dos participantes. O sucesso da IURD depende basicamente de dois fatores: a disposição do fiel para seguir crendo que um dia alcançará as bênçãos e a capacidade da igreja de continuar produzindo um sentido e atrair novos membros. A impressão que se tem é que os líderes da Igreja Universal são conscientes disso, daí, usarem todos os recursos possíveis para manter sua força de atração. Tudo é feito conforme foi ensinado pelo seu líder maior.

Nosso artigo não teve a intenção de esgotar as distorções produzidas pelo neopentecostalismo praticado no Brasil, mas mostrar que esse movimento religioso está baseado no culto ao indivíduo, que se alinha com os interesses hedonistas da sociedade moderna capitalista, que busca no espiritual a solução para suas crises materiais e emocionais. O que se encaixa muito bem na cultura, e hábitos da sociedade brasileira e encontrou nela um campo fértil para essa nova religiosidade.

 

Referências bibliográficas

           

BLEDSOE, David Allen. Movimento neopentecostal brasileiro: um estudo de caso. São Paulo: Hagnos, 2002.

ELIADE, Mircea.  O sagrado e o profano: a essência das religiões. Rogerio Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 191.

MARIANO, Ricardo. Igreja Universal do Reino de Deus: A magia institucionalizada. Revista USP, São Paulo, v 31, p. 127-128, set/nov 1996. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26006/27737> acesso em 15 mar. 2016

 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999. 246

ORO, Ari Pedro. O Neopentecostalismo “Macumbeiro”. REVISTA USP, São Paulo, n° 68, p. 319-332, dez/fev., 2005/2006.

PADILHA, Adilmar Luis Martins. A carência e a falência dos púlpitos no movimento evangélico brasileiro: uma visão panorâmica.  Dissertação de mestrado Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2010.

ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a graça: esperanças e frustações no Brasil neopentecostal, São Paulo: Mundo Cristão,2005

TOPEL, Marta Francisca, Revista Brasileira de História das Religiões (ANPUH), ano IV, n. 10, p. 37, mai. 2011. Disponível em:


 

 

 

 

 

 

 




* Graduandos em Teologia pela Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, matrículas: 224.661; 173.758; 134.999. Trabalho de Conclusão de Curso com vistas à obtenção de grau de Bacharel em Teologia, sob a orientação do Profa. Dra. Luana Martins Golin.