A tradição de Enoque e os
anjos caídos
Quem foi
Enoque?
Antes de analisarmos a influência enoquita no mundo judaico, precisamos
entender sobre esse personagem mitológico e enigmático que deu origem a
inspiração dessa literatura. Enoque aparece em duas genealogias no livro de
Genesis. Em Gn 4. 17-18, de fonte Javista, Enoque é o terceiro na genealogia.
Adão gera Cain que gera Enoque. Porém, no capítulo seguinte Gn 5, 18-24, de
fonte Sacerdotal, Enoque passa a ser o sétimo após Adão. Lemos que Enoque era
filho de Jarede e pai de Matusalém. E que “Todos os dias de Enoque foram de
trezentos e sessenta e cinco anos. Andou Enoque com Deus e já não era, porque
Deus o tomou para si”. Dois fatos importantes se destacam nesse texto de Gênesis,
o primeiro é que Enoque viveu pouco em relação a todos os outros citados, e o
segundo é que Enoque é o único que não morre, mas é tomado por Deus. Para Collins (2010, p.77), a breve menção
sobre Enoque “é a semente da qual as especulações posteriores nasceram”, o fato
da menção sacerdotal de que Enoque é o sétimo após Adão e que vive 365 anos,
está em paralelo com a lista dos Reis Sumérios, onde o sétimo rei é Enmeduranki
ou Enmenduranna rei de Sippar, centro do culto de Shamash, cultuavam o deus
sol, cujo calendário solar era de 364 dias.
Collins (2010, p.79) entende que há paralelos entre Enoque e as figuras
lendárias mesopotâmicas sugere que Enoque foi desenvolvido como uma contraparte
judaica de heróis tais como Enmeduranki – nenhum pouco inferior a estes em
antiguidade e status, ou acesso ao conhecimento divino. Para o autor, a figura
de Enoque pode ser percebida por um lado como uma resposta aos heróis dos quais
os babilônicos reivindicavam grande sabedoria e poderes revelatórios. Na
comunidade judaica da diáspora ocidental, Enoque passa a ter grande
importância, pois fora misteriosamente “tomado” por Deus, por isso, estava apto
a ser o revelador dos mistérios celestiais da história primordial de toda a
humanidade. Para Reed, Enoque torna-se com o passar dos tempos um escriba,
sábio, cientista, visionário que é tomado para o céu e atravessa com os anjos a
terras até seus confins. Como profeta e testemunha ele exorta contra o pecado,
prevê a história e até intercede pelos anjos pecadores.
Os anjos caídos
O Mito dos Vigilantes (mito dos anjos que
caíram do céu) está preservado no Livro dos Vigilantes, “pode servir de
introdução à literatura de Enoque, uma vez que é uma das obras mais antigas,
pré-macabeia, e fornece a elaboração mais explicita da história de Enoque”
(COLLINS, 2010, p. 80). Este livro, somente foi preservado na versão etíope (no
idioma Ge’ez), daí o nome de I Enoque ou Enoque etíope. Após sua descoberta no
sec. XVIII, sua primeira publicação iniciou-se no séc. XIX, realizada por R.
Laurence em 1839. A partir de então tem impulsionado muitos pesquisadores a
levarem a sério sua importância.
É consenso entre
os pesquisadores que I Enoque de que o livro tenha origem compósita, uma coleção
de cinco livros que não estão em ordem cronológica, pertencentes a um longo período
do judaísmo desde o segundo templo até a era crista. A divisão dos livros de I
Enoque Etíope é a seguinte:
Livro dos
Vigilantes (6-36);
Parábolas
de Enoque (37-71);
Livro
Astronômico (72-82);
Livro
dos Sonhos {com o apocalipse dos Animais] (83-90);
Epístola
de Enoque (91-105).
Para Collins
(p.81), o livro pode ser dividido em três seções principais: capítulos 1-5
constituem uma introdução, caracterizada como as “palavras da benção de Enoque, segundo as
quais ele abençoou os escolhidos e justos que estarão presentes no dia da
aflição”; os capítulos 6- 16 são uma reelaboração
da história dos “filhos de Deus” em Gênesis 6; e os capítulos 17-36 descrevem
início e fim de sua viagem celestial e a conclusão do Livros dos Vigilantes.
Terra (2014, p.27)
explica, que existem outras propostas de divisão do livro, Vanderkam (1984) faz
uma divisão ainda mais complexa. Ele divide os capítulos do Livro dos
Vigilantes da seguinte maneira:
1-5:
Uma repreensão escatológica
6-11: História sobre a descida dos anjos e pecado
12-16: Enoque e a petição dos Vigilantes
17-19: Primeira jornada de Enoque
20-36: Segunda jornada de Enoque
Iremos focar
neste trabalho, os capítulos 6-11 que narram a história da descida dos anjos
denominados “Vigilantes”, o pecado e a consequente queda. De acordo com o texto
dos capítulos 6-11, um grupo de seres angelicais, nomeados de Vigilantes,
sentiram-se atraídos pela beleza das filhas dos homens, mulheres, e conspiraram
entre si sob a liderança de Semiaza, com o propósito de possuírem-nas. Como
afirma I Enoque:
Quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles
dias, nasceram-lhes filhas bonitas e graciosas. E os vigilantes, filhos do céu,
ao verem-nas, as desejaram e disseram entre si: “Venham, escolhamos para serem
as nossas esposas as filhas dos homens, e tenhamos filhos! ” Disse-lhes então o
seu chefe Semiaza: “Eu receio que vós não queirais realizar isso, deixando-me
no dever de pagar sozinho o castigo de um grande pecado”. Eles responderam-lhe
e disseram, “Nós todos estamos dispostos a fazer um juramento,
comprometendo-nos a uma maldição comum, mas não abrir mão do plano, e assim
executá-lo. ” Então eles juraram conjuntamente, obrigando-se a maldição que a
todos atingiriam. Eram ao todo duzentos os que, nos dias de Jared, haviam
descido sobre o cume do monte Hermon. Chamaram-no Hermon porque sobre ele
juraram e se comprometeram a maldições comum. (I Enoque 6,1-5).
A maioria dos pesquisadores modernos, admitem que a dependência da
tradição enoquita, utilizou-se do texto de Genesis 6, ou de uma parte antiga,
para adequar suas propostas teológicas da origem do mal e dos pecados da Terra.
O mito dos Vigilantes, assim como Gênesis, narram a má ação pré-diluviana.
E aconteceu que, como os
homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas.
Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para
si mulheres de todas as que escolheram. Então disse o Senhor: Não contenderá o
meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus
dias serão cento e vinte anos. Havia naqueles dias gigantes na terra; e também
depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram
filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama. (Gn 6,1-4) João
Ferreira de Almeida Revista e Corrigida (JFARC)
Outra consequência do contato dos vigilantes com os seres humanos, foi o
ensino de atividade, tais como: a arte da metalurgia e da confecção de armas,
às mulheres ensinaram a maquiagem, a ornamentação, a adivinhação, a magia, os
encantamentos, a astrologia e o cultivo das raízes, conforme diz o texto:
Azazel ensinou aos homens a arte de fabricar espadas,
facas, escudos, armadura peitoral e técnicas de metais, braceletes e adornos;
como pintar os olhos e embelezar as sobrancelhas. Entre as pedras preciosas,
escolher as mais caras e preciosas, e a metalurgia. Houve grande impiedade e
muita fornicação, e corromperam-se os bons costumes. (8,1-3).
Junta-se a esses ensinamentos, outra relação elaborada por Nogueira (2006,
p.145-155) em seu didático inventário dos ensinamentos dados pelos anjos, e
seus respectivos nomes presentes dados na narrativa, a seguir:
Azazel: a
metalurgia (para fabricar armas) e a cosmética.
Amerazak:
Magia (encantamentos e raízes)
Armaros: como
anular encantamentos
Baraquiel: os
astrólogos
Kokabiel: os
signos
Tamiel: astrologia
Asradel: o
ciclo lunar.
O texto narra a história do relacionamento sexual dos anjos vigilantes
com as mulheres. Dessa união proibida nascem gigantes, seres híbridos
incontroláveis que comem todo o alimento da terra e posteriormente alimentam-se
dos seres humanos (7, 1-6). O derramamento faz com que a humanidade clame a
Deus (8,4). Segundo o texto os anjos Miguel, Sariel, Rafael e Gabriel,
intercedem a Deus a favor da humanidade (I Enoque 9). Após tal episódio, a
narrativa continua com a seguintes ordens divinas: Sariel é enviado por Deus
para avisar Noé do julgamento divino que viria sobre o mundo. Deus envia Rafael
para prender Azazel nas profundezas do deserto, até o julgamento final (10,
4-6); Gabriel é enviado para destruir sem piedade os gigantes (10,4-12);
Para Gabriel disse o Senhor: “vá a eles, os bastardos
[gigantes] à raça mestiça, filhos da fornicação, e aniquila os filhos dos
vigilantes que estão entre os homens. Coloca-os uns contra os outros, para que
se mantem mutuamente. Não se prolongue mais os dias de suas vidas!”
Ao anjo Miguel, Deus ordena que prenda Semiaza e os anjos rebeldes. A narrativa
(10, 11-15) diz que eles devem ser presos por sete gerações nos vales profundos
da terra, até o juízo final. Por fim, os gigantes são condenados à destruição
(14,5). Todavia, seus espíritos são liberados e transformam-se em espíritos
malignos gerando uma vasta proliferação de demônios.
Agora, os gigantes nascidos da união de espirito com
carne serão chamados de espíritos malignos na terra e sobre a terra. Os
espíritos dos gigantes, os Nefilins
oprimem, corrompem, atacam, pelejam, promovem a destruição; comem e não se
fartam; bebem e não matam a sede. Esses espíritos atacam homens e mulheres,
pois desses procederam (...). Aonde quer que haja sido os espíritos de seu
corpo, pereça sua carne até o dia da grande consumação do juízo, com a qual o
universo perecerá com os vigilantes e ímpios. (15, 8-16, 1).
Para Terra (2014, p. 51), o Livro dos Vigilantes tem características
marcantes de uma teodiceia. Segundo o autor, ele responde sobre o mal no mundo,
junto a essa temática aparece a dos ilícitos ensinamentos celestes. É um
consenso geral entre os estudiosos, que I Enoque 6-11 é uma junção de dois
ciclos diferentes de tradições sobre a queda de anjos, cujos Semiaza e Azazel
são identificados como líderes. Para Nickelsburg, essas tradições explicam a
causa do surgimento do mal no mundo, os eventos de desvendar os
segredos da metalurgia, magia, encantamentos, astrologia, trouxeram a impureza,
os ensinamentos impróprios e a violência; bem como o casamento com mulheres –
nascimento de gigantes – devastação da terra pelos gigantes são uma forma de
explicar o mal no plano divino. Para Collins (1982, p.98) o Mito dos Vigilantes
e suas tradições “refletem algum tipo de crise”, além da explicação do mal
sobre o mundo.
Os textos enoquita testemunham que o mal e a impureza no mundo são
resultado de uma rebelião angelical. Nos textos citados, encontramos o tema do
demoníaco ligado ao imaginário dos anjos caídos, a informação de que os
espíritos dos gigantes se tornaram os espíritos maus com características
demoníacas, pois oprimem, corrompem, atacam, etc. Collins (1997b, p.31)
conclui: “desta forma a revolta dos vigilantes tornou-se a maior causadora da
existência dos maus espíritos, por implicação, do pecado na humanidade”.
A história dos Vigilantes é o fundamento de uma tradição maior de Enoque.
Sua forma primaria I Enoque 6-11, foi relida e aumentada na própria tradição
enoquita e posteriormente nas tradições judaicas e cristãs. O tema da origem do
mal é central no mito. Este trabalho, pretende analisar algumas das contribuições
do desenvolvimento imagético dessa tradição na religiosidade judaica e
posteriormente cristã. E como se desenvolveu a figura dos demônios, mais
especificamente dos espíritos imundos.
A referências bibliográficas serão informadas com a parte 3.
A referências bibliográficas serão informadas com a parte 3.