O demoníaco na Bíblia Hebraica.
Na academia, é quase consenso entre especialistas não haver no Antigo
Testamento uma demonologia propriamente dita, como ocorre no Oriente Próximo
(Schiavo, 2000), todavia, na literatura apocalíptica do judaísmo tardio existe
uma proliferação de demônios bem esquematizada e organizada. Não há na Bíblia
Hebraica a presença e a personificação do mal ou um termo para designar um
demônio com autonomia. Conforme Schiavo (2000, p.133) “a figura independente do
mal, é difícil de identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma mistura
cultural, com influências da magia, da religiosidade popular do ritualismo
apotropáico oficial, do simbolismo poético”.
Lazarini Neto em seu artigo à Revista Theos diz que é possível verificar
nos textos mais antigos, anteriores ao exílio babilônico, que o conceito de
diabo ainda era inexistente, sendo que o único autor do bem e do mal era
proveniente do Deus Iahweh, se tivesse alguma manifestação do mal somente poderia
vir dele, pois só havia ele. Em Isaías 45,6 lemos “Para que se saiba, até a nascente do sol e até o poente, que além
de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro”. Maggi (2003, p.18) entende que Deus era “tido como único
responsável pelos males existentes no mundo, era apresentado com traços mais
diabólicos do que divinos [ou, pelo menos, tão diabólicos quanto divinos]. Pois
conforme Dt 28,63 dentre as ameaças nefastas de maldição, Ele “se alegrará em
vos fazer perecer e vos destruir”. Em Lm 3,38, encontramos “acaso não procede
do Altíssimo assim o mal como o bem? ”. Essa visão de Iahweh como o único
responsável pelo bem e pelo mal começa a ser corroída no Livro de Jó, segundo
concepção de Stanford (2003, p.31), ou “porque nele foram proclamados os
dilemas e as dúvidas que sempre afligiram a humanidade, ou por ele ter sido um
documento subsequente”
Fohrer (1992, p. 467) lembra que “no começo do período pós-exílio
encontramos as primeiras menções de Satã, porém como parte do mundo de Iahweh,
um membro da corte celestial, uma espécie de promotor, apontando os erros dos
homens (Zc 3,1s; Jó 1,6s; 2,1) É consenso entre os especialistas que os judeus
não possuíam uma demonologia definida. Para eles, os espíritos malignos – rûah raha, eram enviados por Deus como
punição. Esses espíritos não tinham existência própria, na cultura judaica, a
ideia de um Deus único, todo-poderoso, senhor do bem e do mal.
O cativeiro na Babilônia, determinam mudanças significativas no modo de
ver o mal no Antigo Testamento. A primeira, é a influência decisiva na formação
de uma demonologia mais definida. Os caldeus desenvolveram uma riquíssima
demonologia – legiões de entidades semidivinas em cinco classes, cada classe
com “sete demônios” e com atributos distintos. Na opinião de Stanford (2003,
p.27), “o exilio foi um momento crucial na formação da identidade judaica”,
eles precisaram repensar seus conceitos, principalmente o de povo escolhido. Um
segundo fato, ocorre na tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega, a
chamada Septuaginta (LXX), época que floresce o demoníaco. Para Link (1988, p.24), “mais de trezentos anos antes de Cristo, um
fator de resultados imprevisíveis fora introduzido pelos judeus alexandrinos:
ao verterem o Antigo Testamento para o grego, traduziram o “satan” para o grego
“diabolôs””.
A partir dos séculos II a.C. e I d.C., aparece uma mudança na perspectiva
acerca do mal com o surgimento de uma rica literatura acerca do demoníaco.
Essas literaturas consideradas apócrifas supõem revelações sobrenaturais acerca
dos mistérios divinos, conhecidas hoje como apocalípticas. Nessas literaturas,
a imaginação rompe as barreiras canônicas e estão repletas de citações
relativas aos espíritos malignos que “se assanham em contrariar as obras e os
desígnios do criador do Universo”, explica Nogueira (2000, p. 20)
I Enoque é o imo de uma antiga e autônoma vertente do judaísmo do segundo
templo, o judaísmo enoquita. Em 1990, Sacchi (1990, cap. 3) faz a primeira
tentativa de escrever a história desse movimento enóquico. Segundo ele,
conceito do mal seria a sua principal particularidade.
A partir de agora, caminharemos em textos da tradição judaica do segundo
templo, em especial os apócrifos e pseudoepígrafos e os vinculados aos
Manuscritos do Mar Morto (MMM), para analisarmos indícios literários da
tradição de Enoque em especial do Mito dos Vigilantes, e a origem da presença
do mal.
Terra (2014, p.76) afirma que o mito dos Vigilantes é comentado em vários
textos judaicos do segundo templo, especialmente nas literaturas apocalípticas.
Época em que já se desenvolvia uma demonologia, fruto da influência de outras
culturas. Segundo o autor, um conjunto de ideias e seu desenvolvimento do
conceito de espíritos imundos, podem ser facilmente localizadas pelos rastros
deixados na história da literatura. Jonas Machado, mostra uma metáfora para
explicar essa mudança no imaginário judaico, ele explica que quando dois carros
se chocam, ambos saem deformados. “Ocorre, de fato, um choque na relação de culturas
e cada uma continua seu percurso, mas agora deformada, ainda que geralmente de
modo desproporcional”. Isso é possível por causa da relação de troca entre as
culturas. Assim como o Mito dos Vigilantes recebeu contornos demoníacos em sua
narrativa. Esta, por sua vez, gerou imagem no imaginário do segundo tempo,
explica Kenner.
Encontramos citações do Mito dos Vigilantes nas seguintes literaturas
judaicas do século II a.C.: Livro dos Jubileus; Testamento dos Doze Patriarcas;
Os Oráculos Sibilinos; vários textos de Qumran; O Documento de Damasco; Período
da Criação; Livro dos Gigantes; 2 Baruc; 2 Enoque; Filo de Alexandria e Flávio
Josefo.
É necessário comentar a importância da literatura de Qumran e seu grande
número de textos que falam a respeito de seres malignos. Na imagética qumranita
o mundo está infestado de anjos e demônios, e eles influem na vida interior do
ser humano e do cosmo. Assumindo uma guerra cósmica e dualista entre o bem e o
mal, segundo Garcia Martinez.