domingo, 15 de julho de 2018

A INFLUÊNCIA DO LIVRO DE ENOQUE NO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO - Parte 2


O demoníaco na Bíblia Hebraica.
Na academia, é quase consenso entre especialistas não haver no Antigo Testamento uma demonologia propriamente dita, como ocorre no Oriente Próximo (Schiavo, 2000), todavia, na literatura apocalíptica do judaísmo tardio existe uma proliferação de demônios bem esquematizada e organizada. Não há na Bíblia Hebraica a presença e a personificação do mal ou um termo para designar um demônio com autonomia. Conforme Schiavo (2000, p.133) “a figura independente do mal, é difícil de identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma mistura cultural, com influências da magia, da religiosidade popular do ritualismo apotropáico oficial, do simbolismo poético”.
Lazarini Neto em seu artigo à Revista Theos diz que é possível verificar nos textos mais antigos, anteriores ao exílio babilônico, que o conceito de diabo ainda era inexistente, sendo que o único autor do bem e do mal era proveniente do Deus Iahweh, se tivesse alguma manifestação do mal somente poderia vir dele, pois só havia ele. Em Isaías 45,6 lemos Para que se saiba, até a nascente do sol e até o poente, que além de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro”. Maggi (2003, p.18) entende que Deus era “tido como único responsável pelos males existentes no mundo, era apresentado com traços mais diabólicos do que divinos [ou, pelo menos, tão diabólicos quanto divinos]. Pois conforme Dt 28,63 dentre as ameaças nefastas de maldição, Ele “se alegrará em vos fazer perecer e vos destruir”. Em Lm 3,38, encontramos “acaso não procede do Altíssimo assim o mal como o bem? ”. Essa visão de Iahweh como o único responsável pelo bem e pelo mal começa a ser corroída no Livro de Jó, segundo concepção de Stanford (2003, p.31), ou “porque nele foram proclamados os dilemas e as dúvidas que sempre afligiram a humanidade, ou por ele ter sido um documento subsequente”
Fohrer (1992, p. 467) lembra que “no começo do período pós-exílio encontramos as primeiras menções de Satã, porém como parte do mundo de Iahweh, um membro da corte celestial, uma espécie de promotor, apontando os erros dos homens (Zc 3,1s; Jó 1,6s; 2,1) É consenso entre os especialistas que os judeus não possuíam uma demonologia definida. Para eles, os espíritos malignos – rûah raha, eram enviados por Deus como punição. Esses espíritos não tinham existência própria, na cultura judaica, a ideia de um Deus único, todo-poderoso, senhor do bem e do mal.
O cativeiro na Babilônia, determinam mudanças significativas no modo de ver o mal no Antigo Testamento. A primeira, é a influência decisiva na formação de uma demonologia mais definida. Os caldeus desenvolveram uma riquíssima demonologia – legiões de entidades semidivinas em cinco classes, cada classe com “sete demônios” e com atributos distintos. Na opinião de Stanford (2003, p.27), “o exilio foi um momento crucial na formação da identidade judaica”, eles precisaram repensar seus conceitos, principalmente o de povo escolhido. Um segundo fato, ocorre na tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega, a chamada Septuaginta (LXX), época que floresce o demoníaco. Para Link (1988, p.24), “mais de trezentos anos antes de Cristo, um fator de resultados imprevisíveis fora introduzido pelos judeus alexandrinos: ao verterem o Antigo Testamento para o grego, traduziram o “satan” para o grego “diabolôs””.
A partir dos séculos II a.C. e I d.C., aparece uma mudança na perspectiva acerca do mal com o surgimento de uma rica literatura acerca do demoníaco. Essas literaturas consideradas apócrifas supõem revelações sobrenaturais acerca dos mistérios divinos, conhecidas hoje como apocalípticas. Nessas literaturas, a imaginação rompe as barreiras canônicas e estão repletas de citações relativas aos espíritos malignos que “se assanham em contrariar as obras e os desígnios do criador do Universo”, explica Nogueira (2000, p. 20)
I Enoque é o imo de uma antiga e autônoma vertente do judaísmo do segundo templo, o judaísmo enoquita. Em 1990, Sacchi (1990, cap. 3) faz a primeira tentativa de escrever a história desse movimento enóquico. Segundo ele, conceito do mal seria a sua principal particularidade.
A partir de agora, caminharemos em textos da tradição judaica do segundo templo, em especial os apócrifos e pseudoepígrafos e os vinculados aos Manuscritos do Mar Morto (MMM), para analisarmos indícios literários da tradição de Enoque em especial do Mito dos Vigilantes, e a origem da presença do mal.
Terra (2014, p.76) afirma que o mito dos Vigilantes é comentado em vários textos judaicos do segundo templo, especialmente nas literaturas apocalípticas. Época em que já se desenvolvia uma demonologia, fruto da influência de outras culturas. Segundo o autor, um conjunto de ideias e seu desenvolvimento do conceito de espíritos imundos, podem ser facilmente localizadas pelos rastros deixados na história da literatura. Jonas Machado, mostra uma metáfora para explicar essa mudança no imaginário judaico, ele explica que quando dois carros se chocam, ambos saem deformados. “Ocorre, de fato, um choque na relação de culturas e cada uma continua seu percurso, mas agora deformada, ainda que geralmente de modo desproporcional”. Isso é possível por causa da relação de troca entre as culturas. Assim como o Mito dos Vigilantes recebeu contornos demoníacos em sua narrativa. Esta, por sua vez, gerou imagem no imaginário do segundo tempo, explica Kenner.
Encontramos citações do Mito dos Vigilantes nas seguintes literaturas judaicas do século II a.C.: Livro dos Jubileus; Testamento dos Doze Patriarcas; Os Oráculos Sibilinos; vários textos de Qumran; O Documento de Damasco; Período da Criação; Livro dos Gigantes; 2 Baruc; 2 Enoque; Filo de Alexandria e Flávio Josefo.
É necessário comentar a importância da literatura de Qumran e seu grande número de textos que falam a respeito de seres malignos. Na imagética qumranita o mundo está infestado de anjos e demônios, e eles influem na vida interior do ser humano e do cosmo. Assumindo uma guerra cósmica e dualista entre o bem e o mal, segundo Garcia Martinez.