domingo, 12 de novembro de 2017

Misoginia Cósmica

A cada dia que passa, a mulher conquista espaços que durante muito tempo foram dominados pelos homens. Hoje, ela é chefe, líder, executiva, comandante e… pastora. Para uns, é natural e aceitável que elas estejam em posição de destaque, no mercado de trabalho, dentro das igrejas. Para outros, não.

Kemer[1] (p.104) explica que; a literatura judaico-cristã, como produto de seu tempo, apresentou uma diferenciação de gêneros como estabelecidos pela própria natureza ou por Deus, que acabaram relegando às mulheres limitadas atuações, ou, uma misoginia que perpassou a antiguidade, esteve presente no mundo medievo e até hoje permeia o imaginário de diversas culturas. Muitas vezes influenciadas por sociedades patriarcais misóginas que viam no corpo feminino um perigo indomesticável.

Parte desse ódio contra o feminino, acompanhou as culturas patriarcais para subordinar as mulheres e limitar-lhes o poder e autonomia. Além disso, a tradição judaica do segundo templo e as obras cristãs posteriores mostram como a mulher foi alvo de gratuito preconceito, chegando, em alguns momentos, a ser vista como uma aliada das forças malignas.

Um texto extra bíblico e veterotestamentários de tradição apocalíptica pode nos ajudar a entender essa questão. Chamado de Mito dos Vigilantes e atribuído ao I Henoc (ou Henoc Etiope) admitido ser do séc. III a.C., está preservado o Livro dos Vigilantes, nesse livro um grupo de seres angelicais nomeados como Vigilantes se atraiu pela beleza das filhas dos homens e conspirou entre si sob a liderança de Shemihazah, com o propósito de possuir as belas mulheres, o que resultou em catástrofes imensuráveis e irremediáveis desordem cósmica.

Um outro texto é Jubileus (sec. II a.C.), que reconta a história do Gênesis, e novamente aparecem os anjos suduzidos pela beleza das mulheres e como resultado de relações sexuais o nascimento de gigantes. Por isso, aumentando a maldade sobre a Terra e Deus mandou o diluvio na época de Noé.

A importância dada à narrativa dos vigilantes e de Jubileus, se percebe na presença desses mitos em grande parte da tradição judaica e, posteriormente, cristã. Seguindo seus rastros, alguns textos podem ser mapeados para percebemos como as imagens desse mito influenciaram para o medo e ódio contra a mulher.

Vejamos essa influência no Novo Testamento, usaremos como exemplo o versículo 1 Co 11,10 em seu texto original no grego.

δια τουτο οφειλει η γυνη εξουσιαν εχειν επι της κεφαλης δια τους αγγελους

Por isso deve a mulher autoridade ter sobre a cabeça por causa dos anjos (tradução literal).

A palavra autoridade no grego “exousia” (grifada acima) tem o sentido de autoridade, habilidade.

Agora vejamos o que diz a tradução da Bíblia Almeida Revisada, 

Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por causa dos anjos” 1Co 11.10.

Nesta tradução a palavra no grego εξουσιαν (exousia) é traduzida por “submissão”, ou seja, a mulher tinha habilidade, autoridade e licença para governar a igreja em pé de igualdade com os homens, agora segundo essa tradução, ela está submissa. Os “anjos” citados por Paulo faz menção ao mito dos Vigilantes de I Henoc.

Mas não para por aqui, vejamos o mesmo versículo na tradução da Bíblia Almeida Revista e Atualizada. 

“Por tanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade”. 

Percebemos que nesta tradução a submissão passa a ser visível, a Bíblia ARA acrescenta inoportunamente no texto original a palavra véu. No imaginário judaico-cristão, mostrar os cabelos era uma forma de sensualidade feminina. Neste caso, segundo o tradutor, usar véu é uma maneira de submissão.

Na Bíblia NTLH (Nova Tradução da Linguagem de Hoje), a situação da mulher piora de vez, vejamos 

Portanto, por causa dos anjos, a mulher deve por um véu na cabeça para mostrar que está debaixo da autoridade do marido” 1 Co 11,10. 

Nesta tradução, além do jugo do véu, ela ainda precisa estar debaixo da autoridade do marido (mais um acréscimo inexistente no original).  Entre outras palavras, aquela que não colocar o véu e não obedecer ao seu respectivo marido está em desacordo com a palavra de Deus.

Essa inabilidade na tradução desse versículo, ocasionou inúmeras interpretações equivocadas da palavra de Deus. A Bíblia é o sagrado e não cabe a nós discutirmos sobre o sagrado, mas neste caso precisamos reparar essa injustiça. Quantas vidas nasceram, viveram e morreram debaixo dessa submissão? E não foi esse o plano de Deus, para o criador não há separação entre homens e mulheres.

“Pois todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes.  Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Gálatas 3:27-28.

“É para que sejamos livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão”Gálatas 5:1





[1] TERRA, Kenner R. C. Misoginia cósmica na literatura judaico-cristã. In: Revista do Jesus Histórico, VIII: 15. Rio de Janeiro, 2015, p.103-109.