A cada dia que passa, a mulher conquista espaços que durante muito
tempo foram dominados pelos homens. Hoje, ela é chefe, líder, executiva,
comandante e… pastora.
Para uns, é
natural e aceitável que elas estejam em posição de destaque, no mercado de
trabalho, dentro das igrejas. Para outros, não.
Kemer[1]
(p.104) explica que; a literatura judaico-cristã, como produto de seu tempo, apresentou
uma diferenciação de gêneros como estabelecidos pela própria natureza ou por
Deus, que acabaram relegando às mulheres limitadas atuações, ou, uma misoginia
que perpassou a antiguidade, esteve presente no mundo medievo e até hoje
permeia o imaginário de diversas culturas. Muitas vezes influenciadas por
sociedades patriarcais misóginas que viam no corpo feminino um perigo indomesticável.
Parte desse ódio contra o feminino, acompanhou as culturas patriarcais
para subordinar as mulheres e limitar-lhes o poder e autonomia. Além disso, a
tradição judaica do segundo templo e as obras cristãs posteriores mostram como
a mulher foi alvo de gratuito preconceito, chegando, em alguns momentos, a ser
vista como uma aliada das forças malignas.
Um texto extra bíblico e veterotestamentários de tradição apocalíptica
pode nos ajudar a entender essa questão. Chamado de Mito dos Vigilantes e atribuído
ao I Henoc (ou Henoc Etiope) admitido ser do séc. III a.C., está preservado o
Livro dos Vigilantes, nesse livro um grupo de seres angelicais nomeados como
Vigilantes se atraiu pela beleza das filhas dos homens e conspirou entre si sob
a liderança de Shemihazah, com o propósito de possuir as belas mulheres, o que
resultou em catástrofes imensuráveis e irremediáveis desordem cósmica.
Um outro texto é Jubileus (sec. II a.C.), que reconta a história
do Gênesis, e novamente aparecem os anjos suduzidos pela beleza das mulheres e
como resultado de relações sexuais o nascimento de gigantes. Por isso,
aumentando a maldade sobre a Terra e Deus mandou o diluvio na época de Noé.
A importância dada à narrativa dos vigilantes e de Jubileus, se
percebe na presença desses mitos em grande parte da tradição judaica e,
posteriormente, cristã. Seguindo seus rastros, alguns textos podem ser mapeados
para percebemos como as imagens desse mito influenciaram para o medo e ódio contra
a mulher.
Vejamos essa influência no Novo Testamento, usaremos como exemplo
o versículo 1 Co 11,10 em seu texto original no grego.
δια τουτο οφειλει η γυνη εξουσιαν εχειν
επι της κεφαλης δια τους αγγελους
Por isso deve a mulher autoridade ter
sobre a cabeça por causa dos anjos (tradução literal).
A palavra autoridade no
grego “exousia” (grifada acima) tem o sentido de autoridade, habilidade.
Agora vejamos o que diz a tradução da Bíblia Almeida
Revisada,
“Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal
de submissão, por
causa dos anjos” 1Co 11.10.
Nesta tradução a palavra no grego εξουσιαν
(exousia) é traduzida por “submissão”, ou
seja, a mulher tinha habilidade, autoridade e licença para governar a igreja em
pé de igualdade com os homens, agora segundo essa tradução, ela está submissa.
Os “anjos” citados por Paulo faz menção ao mito dos Vigilantes de I Henoc.
Mas não para por aqui, vejamos o mesmo versículo
na tradução da Bíblia Almeida Revista e Atualizada.
“Por tanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como
sinal de autoridade”.
Percebemos que nesta tradução a submissão passa a
ser visível, a Bíblia ARA acrescenta inoportunamente no texto original a
palavra véu. No imaginário
judaico-cristão, mostrar os cabelos era uma forma de sensualidade feminina. Neste
caso, segundo o tradutor, usar véu é uma maneira de submissão.
Na Bíblia NTLH (Nova Tradução da Linguagem de
Hoje), a situação da mulher piora de vez, vejamos
“Portanto, por causa dos anjos, a mulher deve por um véu na cabeça para
mostrar que está debaixo da
autoridade do marido” 1 Co 11,10.
Nesta tradução, além do jugo do véu, ela
ainda precisa estar debaixo da autoridade do marido (mais um acréscimo inexistente
no original). Entre outras palavras, aquela que não colocar o véu e não
obedecer ao seu respectivo marido está em desacordo com a palavra de Deus.
Essa inabilidade na tradução desse versículo, ocasionou inúmeras interpretações equivocadas
da palavra de Deus. A Bíblia é o sagrado e não cabe a nós discutirmos sobre o
sagrado, mas neste caso precisamos reparar essa injustiça. Quantas vidas
nasceram, viveram e morreram debaixo dessa submissão? E não foi esse o plano de
Deus, para o criador não há separação entre homens e mulheres.
“Pois todos quantos em Cristo
fostes batizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, escravo ou livre,
homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Gálatas 3:27-28.
“É para que sejamos livres que
Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao
jugo da escravidão”. Gálatas 5:1
[1] TERRA,
Kenner R. C. Misoginia cósmica na literatura judaico-cristã. In: Revista do Jesus Histórico, VIII: 15. Rio de
Janeiro, 2015, p.103-109.