quarta-feira, 1 de maio de 2019

MOISÉS HISTÓRICO


Por W.Neves

 

Nós conhecemos os cinco primeiros livros da Bíblia, denominado de Pentateuco (ou os cinco livros de Moisés) segundo o Cânon da Septuaginta cristianizada. São eles: Gênesis, Êxodo, Levíticos, Números e Deuteronômio. Também conhecidos na Bíblia Hebraica como Torah (Lei), conforme o Cânon massorético.

 

Em uma breve exegese do Pentateuco, poderíamos dizer que, se considerarmos Gênesis como um prólogo, os demais livros Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio narram a história da vida de Moisés do seu nascimento (Ex 2) até a sua morte (Dt 34). Tão logo se encerra a narrativa da vida dos patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó), o livro do Gênesis termina com o “Romance de José”, sua morte e embalsamamento no Egito. 

 

O livro seguinte é o Êxodo, que narra a saída dos israelitas da terra do Egito e será um tema central para o pensamento teológico veterotestamentário. O título “Êxodo”  (saída) provém dos tradutores gregos do AT, na Bíblia Hebraica esse livro é denominado de “Shemot” (os nomes), mantendo o costume que um livro seja designado por algumas das primeiras palavras que nele figuram. 

 

Enquanto no livro de Gênesis a relação com Deus é feita por indivíduos (Noé, Abraão, Jacó), no Êxodo o relacionamento é principalmente com um povo. Pode se dizer que o livro de Êxodo marca o nascimento e a “Declaração de Independência” do povo de Israel. Esse processo será conduzido pelo carismático Moisés, vocacionado e comissionado por YHVH. Moisés será o protagonista principal dos quatro últimos livros do Pentateuco, assumirá inúmeras funções no decorrer da saga, será fundador, libertador, chefe, organizador do povo (Ex. 18), mediador entre Deus e os homens (Ex. 20, 18-21), legislador (24,3.12), profeta, rei e deus (E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus. Ex. 4.16).

 

Nosso objetivo nesse breve estudo é analisar a figura emblemática desse Moisés histórico e responder as seguintes perguntas: Por que escolher Moisés como fundador e legislador de Israel? E quem foi Moisés?

 

Com toda a probabilidade, a tradição de Israel conhecia um personagem denominado Moisés. A Torah não fornece muitas informações a respeito de Moisés sob o ponto de vista histórico.  Para Jean-Louis Ska e outros pesquisadores, eles definem esse personagem com uma única imagem, o Moisés bíblico é um gigante que esconde para sempre o Moisés da história. (p.55, 2015).

 

Partindo de uma exegese histórico-critica, vejamos o que a Bíblia nos ensina sobre Moisés, do ponto de vista histórico.

 

E foi um homem da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu e deu à luz um filho; e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a revestiu com barro e betume; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à margem do rio”. Ex. 2, 1-3

 

Segundo a narrativa, Moisés é filho de pais pertencentes à tribo de Levi. O texto afirma explicitamente que Moisés é o primogênito, uma afirmação que não condiz com a referência de uma irmã velha. “De longe, uma irmã do menino observava o que iria acontecer” (v.4).

 

Na sequência, o menino é descoberto pela filha de Faraó que se enche de compaixão pelo menino hebreu “E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam, pela margem do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos, e enviou a sua criada, que a tomou. E abrindo-a, viu ao menino e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele, e disse: Dos meninos dos hebreus é este. (v. 5 e 6). Na sequência, a irmã volta à cena “Então a sua irmã disse à filha de Faraó... (v.7).

 

Vamos ler novamente o texto na integra:

E foi um homem da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu e deu à luz um filho; e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a revestiu com barro e betume; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à margem do rio. E sua irmã postou-se de longe, para saber o que lhe havia de acontecer (v4)E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam, pela margem do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos, e enviou a sua criada, que a tomou. E abrindo-a, viu ao menino e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele, e disse: Dos meninos dos hebreus é este. Então disse sua irmã à filha de Faraó: Irei chamar uma ama das hebreias, que crie este menino para ti (v7)? Ex. 2:1-7.

 

Leia novamente o mesmo texto sem os versículos 4 e 7 que estão em negrito.

 

Percebemos que os versículos 4 e 7 introduzem uma irmã mais velha de Moisés. Por isso, grande parte de exegetas entendem que a introdução da referência de uma irmã mais velha de Moisés poderia ser um acréscimo de um escriba posterior que quisesse destacar que Moisés não foi completamente abandonado por sua família. Notem que no início da narrativa a “irmã” é anônima e permanecerá anônima até o capítulo 6, somente então, serão apresentados Miriam e Aarão como irmãos mais velhos de Moisés (Ex. 6, 20,26-27; 7,6; 15,20). Embora ambos não tenham sido mencionados no relato do seu nascimento.

 

Voltando a Êxodo 2 verso 10, diz que: sendo o menino já criado, é lhe dado um nome “E, quando o menino já era grande, ela o trouxe à filha de Faraó, a qual o adotou; e chamou-lhe Moisés, e disse: Porque das águas o tenho tirado” ( v.10).

A filha de Faraó é quem dá o nome à criança, um nome egípcio e não semita.  O nome Moisés, ao contrário o que diz o versículo 10 não significa “tirado das águas”. O nome egípcio MoiSéS é provavelmente um nome abreviado, formado a partir da raiz MSS, e significa “filho de” ou “gerado por”. A mesma raiz é encontrada nos nomes próprios de Ra-MSéS (filho/gerado do deus ), de Tut-MoSiS (filho/gerado do deus Tut), de Ath-MoSiS (filho/gerado do deus Ath) conforme Gn 47,11; Ex 1,11; 12,37; Nm 33,3-5. Todavia, para Jean-Louis Ska se Israel tivesse inventado o seu fundador, teria certamente reservado para ele um nome semítico e não egípcio (2015, p.56).

 

Seus pais são Amram e Jocabed (conf. Ex. 6.16-25). O pai, curiosamente, está ausente da narrativa do nascimento e do abandono. O texto diz que a mãe (Jocabed) era tia do pai (Anram), conf. Ex 6,20 “E Anram tomou por mulher a Joquebed, sua tia”. Esse fato do ponto de vista legislativo, colocará Moisés como filho de uma união proibida pelas leis levíticas. “Não descobrirás a nudez da irmã de teu pai". (Lv 18.12-13). É interessante notar que o fato de Moisés ser um levita, e a lei do incesto está contida, exatamente, no livro do Levítico (FERNANDES, 2016, p. 181).

 

Após o relato do nascimento, o início da vida de Moisés é muito conturbado, como conturbada será a sua missão. Ele já nasce condenado a morte e viverá ameaçado de morte tanto pelos egípcios como pelo seu próprio povo. A narrativa da ordem de Faraó de matar os neonatos do sexo masculino significava reduzir e condenar a mão de obra escrava ao envelhecimento. O que é pouco condizente com a determinação de Faraó em manter essa mão de obra barata. Todavia, para Jean-Louis Ska negar esse feito, tem sérias implicações teológicas, pois a aparição de Moisés se dá exatamente no momento do infanticídio.

 

A narrativa de Êxodo, após ele ter sido milagrosamente salvo, nada mais diz sobre a infância e a juventude de Moisés. O nascimento de Moisés e sua milagrosa salvação, representam uma forma de contestação a um decreto injusto. Essas histórias de abandono e salvação milagrosa faz parte de esquemas conhecidos no passado e usados com frequência, na antiguidade. É o caso de Sargão I, rei acádio; Ciro II, rei persa; os fundadores de Roma, Rômulo e Remo; e José, filho de Jacó que foi para o Egito e se tornou o segundo homem mais importante, e Jesus Cristo, que também foi salvo, milagrosamente, por outro “José”, dito “seu pai” e conseguiu ir para o Egito, escapando do massacre de Herodes. Em todos os casos, existe o evento milagroso de crianças que abençoará os futuros acontecimentos do seu povo.

 

Fernandes (2016, p.184) comenta que segundo a lenda, Sargão foi um menino que também nasceu no segredo e foi salvo pela mãe, uma sacerdotisa (Jocabed, mãe de Moisés, era da tribo de Levi). Sargão foi encontrado por um carregador de água (ou jardineiro) que o tirou das águas, Moisés também foi retirado das águas. Sargão foi amado por Ishtar (deusa acadiana, era a mais célebre das deusas do panteão mesopotâmico), Moisés foi encontrado e adotado pela filha de Faraó, filha de um deus. 

Vejamos o texto:

Sargão, rei forte, rei de Akkad (Acádia, eu sou. A minha mãe era uma sacerdotisa, o meu pai, não sei. A minha família paterna habita a região da montanha. A minha cidade (de nascimento) é Azupiranu, que fica na margem do rio Eufrates. A minha mãe, uma sacerdotisa, concebeu-me, em segredo. Ela colocou-me numa cesta de junco, com betume ela calafetou a minha escotilha. Ela abandonou-me no rio do qual eu não podia escapar. O rio levou-me até Aqqi. Aqqi, o carregador de água ergueu-me quando mergulhou o balde. Aqqi, o carregador de água, criou-me como sendo seu filho adotivo. Aqqi, o carregador de água, colocou-me a trabalhar no seu jardim. Durante o meu trabalho no jardim, Ishtar amou-me de modo que durante 55 anos governei como um rei” (citação resumida de A lenda de Sargão, de Brain Lewis).

 

Isso soa muito parecido com a narrativa sobre Moisés em Êxodo 2. Então a história de Moisés foi plagiada da história de Sargão? Para Romer, a vita Mosis do relato do nascimento de Moisés é construído da mesma maneira que a lenda do grande rei Sargão de Akkad, traindo talvez a vontade de pôr em pé de igualdade a figura ancestral à qual se refere o Israel real e o soberano unificador da antiga Mesopotâmia. (2010, p.224). Se essa suposição for correta o fechamento do texto de Êxodo, deve ter acontecido após o retorno da Babilônia.

 

Já Ciro II, fundador do reino dos persas, era filho de Madane. Diz a lenda, que ele foi subtraído dos braços de seus pais, e condenado à morte por Astiage, rei dos Medos. Foi salvo por uma mulher chamada Cina (cão, animal sagrado Irã).  Até se tornar o grande Ciro rei dos persas. Vários exegetas consideram a aproximação literária e cronológica persa com a formação das tradições sobre Moisés pertinente. Lembrando que esse tipo de narrativa era comum na antiguidade. Existem mais de trinta casos documentados, afirma Fernandes.

 

Um outro fato complicado, está no relacionamento de Moisés com os midianitas. Ver Ex 2,15-21, após a fuga de Moisés do Egito e sua chegada em Madiã (ou Midiã). Moisés casa-se com uma mulher estrangeira (Zípora) ao passo que a lei – que ele mesmo promulgou – proíbe o casamento com estrangeiras:

Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do Senhor se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria” (Dt 7,3-4).

 

Moisés permanece com os midianitas e está em relação com eles (Ex 2,15-16; 3,1; 18,1). Embora, em outros textos, eles são cotados entre os mais detestáveis inimigos de Israel.

 “Porém os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do SENHOR; e o SENHOR os deu nas mãos dos midianitas por sete anos. E, prevalecendo a mão dos midianitas sobre Israel, fizeram os filhos de Israel para si, por causa dos midianitas, as covas que estão nos montes, as cavernas e as fortificações. Porque sucedia que, semeando Israel, os midianitas e os amalequitas, e também os do oriente, contra ele subiam. E punham-se contra ele em campo, e destruíam os frutos da terra, até chegarem a Gaza; e não deixavam mantimento em Israel, nem ovelhas, nem bois, nem jumentos. Porque subiam com os seus gados e tendas; vinham como gafanhotos, em grande multidão que não se podia contar, nem a eles nem aos seus camelos; e entravam na terra, para a destruir. Assim Israel empobreceu muito pela presença dos midianitas; então os filhos de Israel clamaram ao Senhor” (cf. Jz 6,1-6) “

 

Para finalizar sua história, Moisés é proibido de entrar na terra prometida, e morre fora dela (Dt 34,5). Diversos textos tentam explicar o motivo, mas nenhum deles consegue de maneira satisfatória (Nm 20,1-13; Dt 1, 37-38; 3, 23-28; 4,21-22).  Para Jean-Louis Ska, teria sido mais simples se a história permitisse que Moisés colocasse os pés na terra prometida (2015, p.56). Segundo a visão do historiador, Moisés histórico é uma figura que pertence ao deserto, e não a terra prometida.

Notamos que ao narrar a vida do Moisés histórico, todas as tradições foram reunidas em um único relato. A questão da historicidade desses acontecimentos suscitou e ainda suscita um amplo debate. Uma dificuldade considerável provém do fato de que a redação de nossa principal fonte de informação, se desenvolveu vários séculos depois dos acontecimentos. De fato, as fontes que serviram de base para a redação da história de Moisés, foram provavelmente múltiplas, de modo que a narrativa tal como está descrita poderia muito bem refletir um longo processo de transmissão.

 

Para Fernandes, a busca do “Moisés histórico” é uma tarefa privada de evidências. As teorias a respeito devem, no fim, se render a um fato: não há compatibilidade entre elas e a importância que o texto bíblico atribui a Moisés, que coincide com os indícios do judaísmo e não com o Moisés que se deseja encontrar nas teorias.

 

 

Referências bibliográficas

 

 

CARNEIRO, Marcelo; OTTERMANN, Monica e FIGUEIREDO, Telmo. Pentateuco – da Formação a Recepção. Paulinas, 2016.

SKA, Jean-Louis. O Antigo Testamento – Explicado aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. Paulus, 2015.

RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel e NIHAN Christophe. Antigo Testamento – História, Escritura e Teologia. Loyola, 2010.

 


terça-feira, 14 de agosto de 2018

A INFLUÊNCIA DO LIVRO DE ENOQUE NO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO - Parte 3


A imagética do Mito dos Vigilantes no Evangelho de Marcos.


O cristianismo primitivo tem as suas origens no judaísmo do segundo templo, nosso objetivo nessa última parte é demonstrar toda a carga imagética do judaísmo enoquita e a sua influência na imaginação e na literatura das primeiras comunidades cristãs.
Lazarini Neto explica em seu artigo, que “uma mudança teológica acerca do mal houve entre os séculos II a.C. e I d.C. com o surgimento de uma rica literatura acerca do demoníaco” (2006, p.6). O autor comentava acerca da literatura considerada apócrifa por ser uma literatura composta por revelações sobrenaturais acerca do futuro, cuja imaginação rompia as barreiras canônicas e estavam repletas de citações relativas aos espíritos malignos que “se assanham em contrariar as obras e os designíos do criador do Universo”.
A dependência dos textos do Novo Testamento à tradição de Enoque, em especial ao Mito dos Vigilantes, é aceita por muitos pesquisadores. Terra afirma que houve um senso comum de que a tradição enoquita teve grande apreço nas comunidades cristãs, a ponto do primeiro livro de Enoque estar na lista dos canônicos na Igreja de língua etíope (2014, p.117-118).
São várias as influências desse mito no imaginário cristão, sendo que um dos mais relevantes é o imaginário dos demônios, mas temos outras influências enoquita em diversos textos neotestamentários, tais como: Epístola de Judas 6; 14-15; Epístolas Petrinas - 1 Pe 3, 3-4 (adorno) 18-21 (espíritos em prisão), 2 Pe 2,4; Epístolas Paulinas e Pseudopaulinas- 1 Co 11.10, 1 Tm 2,9-11;Encontramos esses ensinamentos também em literaturas extra canônicas de autores dos primeiros quatro séculos, como por exemplo: Epístola de Barnabé. Justino Mártir (Primeira Apologia 5, 1-4; Segunda Apologia 5); Atenágoras (Súplica pelos Cristãos 24-26); Irineu (Contra Heresias 1.10.1; 1.15.6; 4.16.2; 4.36.4); Clemente de Alexandria (O Instrutor 3,2.14; Eclogae Propheticae53,5; Stromata III 7,59)[1]; Tertuliano (Apologeticum 22, 3-4; De cultufeminarum i 2,1; ii 10, 2-3); Cipriano de Cartago (De habituvirginum14); Pseudo Clementinas (Homilias 8, 12-18; Reconhecimento 4,26); Lactantius ( DivineInstitute 2,15). Outros textos gnósticos, tais como: Pistis Sofia, Tratado sobre a origem do mundo e Apócrifo de João[2] (1984, p.19-34).
Terra afirma (2010, p.125) que com essa amostragem da influência de temas, imagens e ideias da narrativa dos Vigilantes na literatura neotestamentária e nos posteriores textos cristãos, podemos partir para a questão do demoníaco nos sinóticos, especialmente na questão de espíritos imundos. Boccaccini também concorda com a ideia de que a presença de um movimento enoquita na palestina, comprova a hipótese de uma possível relação de Jesus com essa tradição entre as ideias do(s) Cristianismo(os) da(s) origem(ns) e o enoquismo. Segundo Nickelsburg (2001, p. 65), pode ser garantida, pois o próprio texto de 1 Enoque 6-16, por causa de suas informações geográficas, mostra que pelo menos essa parte pertencia à região setentrional da Galiléia.  Conforme o autor, muitas tradições nos sinóticos relacionam Jesus à Galiléia e provavelmente à fonte Q teria sua origem e naquelas regiões (TERRA, 2014, p.125).

O Demoníaco nos Sinóticos como Espíritos Imundos

A presença do imaginário do demoníaco nos sinóticos é muito intensa. Jesus e seus discípulos lutam com a presença de um inimigo implacável – Satã, “tramando incessantemente a ruptura da fidelidade do Senhor e pondo a perder os seus corpos e almas” (NOGUEIRA, 2000, p.26). Segundo Pagels “os autores dos evangelhos compreenderam que a história que tinham que contar pouco sentido faria sem Satanás” (1996, p.34).  Segundo os autores a ideia era que a traição e a morte de Jesus faziam parte de um vasto conflito cósmico, em que a batalha final ainda não fora travada, muito menos vencida.
Em seu artigo, Lazarini Neto informa que segundo os sinóticos, na Palestina, ao tempo de Jesus, havia uma proliferação demoníaca sem precedentes (2006, p. 8). Nesse cenário, que evoca uma guerra cósmica, Jesus é apresentado como “um tipo de fazedor de milagres que age com a autoridade de origem divina, mas sem a mediação das formas, rituais e instituições através das quais esse poder divino costuma se manifestar” (CROSSAN, 1994, p.192).
O Evangelho de Marcos, entre os sinóticos, chama a atenção pelo volume de material referente às atividades exorcistas de Jesus. Ao analisar tais narrativas verificamos as expressões “espíritos imundos” e “demônios”.  Precisamos tentar entender a diferença entre elas.  Para ajudar a dirimir essa dúvida, Terra apresenta os termos usados nos sinóticos para designar a presença dos seres malignos que causam danos aos homens, são estes:

a.  Daímon: masculino singular (demônios). A única passagem a usar o termo é a de Mt 8,31, no plural masculino (daímones). A expressão grega daímoné derivada de daímonai, que é substantivizado formando daimónion. Como as divindades no período clássico poderiam ser boas ou más, nos evangelhos e nos cristianismos sempre terá a conotação negativa.
b. Daímonion: adjetivo neutro, seu plural é daimónia: demônios. É usado pelo menos 63 vezes no NT. Esse termo é usado no NT no lugar de daímon por sua impessoalidade: “a mentalidade popular havia criado este vocábulo para designar poderes impessoais, potencias espitituais ou forças maléficas” (ALVAREZ, 1995, p.61)
c.    Daimonízomai: ser endemoniado, ser possesso por um demônio.
d.   Pneuma: espírito. Com os seguintes complementos: álalon (mudo), álalonkaíkofón(mudo e surdo), asthenéias (enfermidade), akátharton (imundo), daimonionakárthaton (de um demônio impuro) e ponerón (maligno/mau) (2014, p.126-128).

Dos evangelhos sinóticos, Marcos tem um bom material preservado sobre possessão maligna e ação demoníaca, Terra chama nossa atenção ao informar que em todos os quatro exorcismos preservados em Marcos (1, 23-28; 5, 1-20; 7, 24-30 e 9, 14-27), assim como nas perícopes (3, 10-12 e 20-30) encontramos a presença do (s) espirito (s) imundo (s) (2010, p.106). Segundo Schiavo “dado o número considerável de exorcismo na atividade de Jesus, eles fogem do gênero literário mais amplo de milagres, para constituir um gênero próprio, que chamamos relatos de exorcismo” (2000, p.62).
Mc 1, 21-28 – episódio na sinagoga de Cafarnaum –Marcos inicia o ministério de Jesus com um relato esquematizado da autoridade que caracteriza o seu ensino. Essa autoridade, a aureola sobrenatural de sua pessoa, sua reação ante o mal, a ordem eficaz e a culminação da expulsão são pontos que chamam a atenção do leitor. O texto é conhecido como exorcismo inaugural, Jesus encontra alguém com um espírito imundo (v.23), não há variação terminológica para a identificação do ser que foi expulso, pois no v. 26 sai um espirito imundo e no v.27 Marcos informa que Jesus tinha autoridade sobre espíritos imundos. Nesta perícope, alguns fatos importantes: a) o espirito imundo parece conhecer bem quem era Jesus; b) eles possuem conhecimentos cósmico e c) de alguma forma a presença de Jesus o incomoda. (TERRA, 2010. p,129)
Mc 3, 10-23 – sumário demonológico – o contexto é de cura, os espíritos imundos ao verem Jesus se prostravam e gritavam “tu és o filho de Deus”. Aqui os espíritos imundos querem revelar algo, e Jesus deseja que seja silenciado. O autor informa que o sumario de Mc 1.34 e também Mc 1.39 o autor diz que Jesus expulsou demônios (daimônia), a impressão é que chamar de espíritos imundos ou demônios, a luz do paralelo desses sumários não há diferença. (TERRA, 2010. p,130)
Mc 3, 20-30 – controvérsia e Belzebul – nessa controvérsia, Jesus é acusado de ter autoridade de exorcizar (Meyrs, 1992) pelo poder de Belzebul (v.22), líder dos demônios. Jesus responde que Satã não pode expulsar Satã (v.23). O v.30 é conclusivo na perícope diz “isso, porque dizem: ‘Ele tem um espirito impuro’”. Para o autor, Satã (Belzebul) é um pneûmaakátharton. (TERRA, 2010. p,131)
Mc 5, 1-20 – episódio de Gerasa – Jesus se encontra com um homem possuído de espírito imundo (v. 2,8, [singular]). Segundo Terra, seria uma região perfeita para o aparecimento de um espirito imundo, pois era considerada impura. Conteúdo, tudo se harmoniza quando os espíritos imundos entram em porcos, que também são impuros. Todavia, nos versos 15, 16 e 18, Marcos informa que o homem estava possuído (endemoninhado), possuído pelo (s) demônio (s). Concluindo, estar com espírito (s) imundo (s) é o mesmo que possuir demônios. O autor conclui que, na ordem e lógica presente no texto, independente de suas questões diacrônicas, o demônio era um espírito imundo, com um adjetivo ou algo que revelava a sua característica: ser imundo. (2010, p. 132)
Mc 7, 24-30 – episódio na região de Tiro – Há um encontro de uma mulher siro-fenícia com Jesus, sua filha tem um pneuma akárthaton (v.25), e imediatamente no v.26 de Marcos, aparece o demônio. O problema a ser resolvido era a possessão. Nesse texto, segundo Terra, fica mais clara a relação entre espírito imundo e demônio. O primeiro é uma espécie de característica ou um adjetivo para o segundo. Assim, o demônio é para Marcos, um espírito imundo. (TERRA, 2010. p,133)
Mc 9, 14-271- episódio pós-transfiguração – trata-se do último exorcismo preservado em Marcos. O espírito é identificado como mudo (v.17), imundo (v.25) e mudo e surdo (v.25). Na perícope há uma ênfase na palavra espirito (6x), além dos adjetivos: mudo, imundo e surdo. (TERRA, 2010. p,134)
Nos versículos apresentados, notamos que para a comunidade marcana não há uma diferenciação clara entre demônio, espírito mudo e surdo e espírito imundo.
Para Terra, como resultado de sua pesquisa sobre a relação entre espíritos imundos e demônios nos sinóticos, ele diz “na análise sinótica e [Q] das expressões espíritos imundos e demônios, percebemos que as duas se confundem”. Segundo o autor, o que Marcos chama de espíritos imundos, Mateus e Lucas chamam de demônios.


Para a comunidade marcana, todo o Universo é encarado como uma guerra entre dois reinos: o de Cristo e do diabo. Jesus é incumbido da missão divina de destruir o reino das trevas, por outro lado, Satã esforça-se para impedir a expansão do reino de Deus. No meio dessa guerra cósmica está a humanidade que é afligida pelas forças demoníacas com sofrimentos físicos e psicológicos. Nogueira diz que aos olhos de todos “Satã e seus exércitos estavam em uma posição de dependência absoluta frete a Deus e de total impotência no enfrentamento com o Messias” (2000, p. 26-27).  Desta maneira, para o Novo Testamento tudo que afasta os homens de Deus é uma “manifestação do diabo”.
Myers percebe nas narrativas de Marcos, “entre outros elementos por um dualismo apocalíptico radical, no qual a nova ordem com Jesus se opõe a antiga ordem defendida pelas instituições hebraicas. Ligado a esse dualismo, Myers acrescenta uma relação da narrativa com o “Mito do combate” apocalíptico. “Desde o primeiro combate apocalíptico no deserto entre Jesus e seus anjos de um lado e Satanás e suas feras selvagens de outro (1.12s.), é claro que existe mais do que a luta de Jesus com ordem dos escribas do que os olhos vêem” (1992, p.137).
Parece estar claro que, conforme as palavras de Myers, “o exorcismo é o principal veículo para articular o mito do combate apocalíptico entre os poderes (e seus favoritos terrenos) e Jesus (como enviado do reino) (1992, p.183).

Conclusão

Nesse breve ensaio sobre o Mito dos Vigilantes, nosso estudo se deteve especificamente em apresentar a pessoa enigmática de Enoque, mostrar a influência do texto no judaísmo do segundo templo e consequentemente a influência teológica e imagética nos primeiros cristãos.
Não interessaram de modo imediato, as questões profundas acerca da autoria ou o tempo de redação do texto, e sim, como a literatura enoquita e sua narrativa do “Mito dos Vigilantes” (mito dos anjos caídos) logrou muita relevância na tradição judaica, pois serviu de resposta a desconcertante pergunta sobre o mal no mundo.  Para Terra uma parte do judaísmo encontrou não em Deus, mas em ações angelicais a origem de muitas ações inaceitáveis, como a guerra, a magia, o adultério, a sedução e pratica imorais ligadas à mulher (2010, p, 153).
Quando surge o cristianismo, a teia imaginária da presença do demoníaco já estava toda traçada, analisamos essa presença na literatura marcana, na qual ficou bem clara a relação da expressão espíritos malignos e os demônios.
Assim o Mito dos Vigilantes, teve influência não somente no judaísmo, mas também no cristianismo como podemos verificar nos sinóticos, nas tradições petrina, paulina, deuteropaulinas, pseudopaulinas e em Judas. Com isso, podemos resumir que a narrativa dos anjos que caíram do céu foi muito importante nos escritos bíblicos e está presente em nossas comunidades, como diz Terra mesmo que não percebam (2010. p,157).


[1] Para uma exposição resumida e didática da utilização de Clemente de Alexandria, ver a recente dissertação de Anderson Araújo. ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas...p. 55-56. E também o texto de Vanderkam: VANDERKAM, James C. Enoch, a mam... 173-180.
[2] Para maiores referencias da tradição dos Vigilantes no gnosticismo, ver: STROUMSA, G. Another Seed: Studies in Gnostic Mythology (Nag Hammadi Studies 24). Leiden. E.J. Brill, 1984. Pp 19-34.

Referências bibliográficas


ALVEREZ, A. El Diablo y el demônio son lo mismo?: Aclaraciones para uma correta compresión. In: Selecciones de Teologia. 34, 1995.
ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas: Uma relação possível em I Coríntios 11,10? Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2009.
BOCCACCINI, Gabriele. Além da Hipótese Essênia: A separação dos caminhos entre Qumran e o judaísmo enóquico. São Paulo: Paulus, 2010.
COLLINS, John. A Imaginação Apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010.
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: A vida de um Camponês Judeu no Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994.
FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992
LINK, Luther. O Diabo: a Máscara sem Rosto.  São Paulo: Companhia das Letras, 1988.MACHADO, Jonas. Cultura Popular e Religião: Subsídios para a Leitura de Textos Bíblicos a Partir da História Cultural de Carlo Ginzburg. In: Orácula, 1.1.2005.
MAGGI, Alberto. Jesus e Belzebu, Satanás e Demônios. Aparecida: Editora Santuário, 2003.
MARTINEZ, Florentino Garcia. Textos de Qumrán – 6ª edicción. ColelcciónEstructuras y Procesos: Serie Religión. Madrid: Editorial Trotta, 2009.
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NOGUEIRA, Carlos R.F. O Diabo no Imaginário Cristão. Bauru. EDUSC, 2000
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PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996.
REED, Annette Yoshiro.Fallen Angels and the History of Christianity. The Reception of Enochic Literature Cambridge University Press, 2005.SACCHI, Paolo. História del Judaísmo em laEpocadel Segundo Templo: Israel entre lossiglos VI a.C. y I d.C. Madrid: Editorial Trotta, 2004.
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SCHIAVO, Luigi. Demônios em Decápole. Exegese, história, conflito e interpretação de Mc 5,1-20. Dissertação (mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo, 1999.
STANFORD, Peter. O Diabo: Uma Biografia, Rio de Janeiro, Gryphus, 2003.
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TERRA, Kenner R. C. De Guardiões a Demônios: A história do imaginário do pneumaakatharton e sua relação com o Mito dos Vigilantes. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2011.
TERRA, Kenner R. C. A construção da mulher perigosa: a leitura do Mito dos Vigilantes nas tradições judaicas e cristãs. In: Oracula, v. 8. São Bernardo do Campo, 2008, p. 183-201.
TERRA, Kenner R. C. Anjos aprisionados e pregação aos espíritos: 1 Enoque e o Novo Testamento. In: Âncora, v VI – Ano 6. São Paulo, 2011, p.1-16.
Misoginia cósmica na literatura judaico-cristã. In: Revista do Jesus Histórico, VIII: 15. Rio de Janeiro, 2015, p.103-109.
TERRA, Kenner R. C. Os Anjos que caíram do céu: O livro de Enoque e o demoníaco no mundo judaico-cristão – 2ª edição. São Paulo: Fonte Editorial, 2014
VANDERKAM, James C. Enoch: a man for all generations. Columbia: University of South Carolina Press, 2008. 


domingo, 15 de julho de 2018

A INFLUÊNCIA DO LIVRO DE ENOQUE NO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO - Parte 2


O demoníaco na Bíblia Hebraica.
Na academia, é quase consenso entre especialistas não haver no Antigo Testamento uma demonologia propriamente dita, como ocorre no Oriente Próximo (Schiavo, 2000), todavia, na literatura apocalíptica do judaísmo tardio existe uma proliferação de demônios bem esquematizada e organizada. Não há na Bíblia Hebraica a presença e a personificação do mal ou um termo para designar um demônio com autonomia. Conforme Schiavo (2000, p.133) “a figura independente do mal, é difícil de identificar no Antigo Testamento por ser fruto de uma mistura cultural, com influências da magia, da religiosidade popular do ritualismo apotropáico oficial, do simbolismo poético”.
Lazarini Neto em seu artigo à Revista Theos diz que é possível verificar nos textos mais antigos, anteriores ao exílio babilônico, que o conceito de diabo ainda era inexistente, sendo que o único autor do bem e do mal era proveniente do Deus Iahweh, se tivesse alguma manifestação do mal somente poderia vir dele, pois só havia ele. Em Isaías 45,6 lemos Para que se saiba, até a nascente do sol e até o poente, que além de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro”. Maggi (2003, p.18) entende que Deus era “tido como único responsável pelos males existentes no mundo, era apresentado com traços mais diabólicos do que divinos [ou, pelo menos, tão diabólicos quanto divinos]. Pois conforme Dt 28,63 dentre as ameaças nefastas de maldição, Ele “se alegrará em vos fazer perecer e vos destruir”. Em Lm 3,38, encontramos “acaso não procede do Altíssimo assim o mal como o bem? ”. Essa visão de Iahweh como o único responsável pelo bem e pelo mal começa a ser corroída no Livro de Jó, segundo concepção de Stanford (2003, p.31), ou “porque nele foram proclamados os dilemas e as dúvidas que sempre afligiram a humanidade, ou por ele ter sido um documento subsequente”
Fohrer (1992, p. 467) lembra que “no começo do período pós-exílio encontramos as primeiras menções de Satã, porém como parte do mundo de Iahweh, um membro da corte celestial, uma espécie de promotor, apontando os erros dos homens (Zc 3,1s; Jó 1,6s; 2,1) É consenso entre os especialistas que os judeus não possuíam uma demonologia definida. Para eles, os espíritos malignos – rûah raha, eram enviados por Deus como punição. Esses espíritos não tinham existência própria, na cultura judaica, a ideia de um Deus único, todo-poderoso, senhor do bem e do mal.
O cativeiro na Babilônia, determinam mudanças significativas no modo de ver o mal no Antigo Testamento. A primeira, é a influência decisiva na formação de uma demonologia mais definida. Os caldeus desenvolveram uma riquíssima demonologia – legiões de entidades semidivinas em cinco classes, cada classe com “sete demônios” e com atributos distintos. Na opinião de Stanford (2003, p.27), “o exilio foi um momento crucial na formação da identidade judaica”, eles precisaram repensar seus conceitos, principalmente o de povo escolhido. Um segundo fato, ocorre na tradução da Bíblia Hebraica para a língua grega, a chamada Septuaginta (LXX), época que floresce o demoníaco. Para Link (1988, p.24), “mais de trezentos anos antes de Cristo, um fator de resultados imprevisíveis fora introduzido pelos judeus alexandrinos: ao verterem o Antigo Testamento para o grego, traduziram o “satan” para o grego “diabolôs””.
A partir dos séculos II a.C. e I d.C., aparece uma mudança na perspectiva acerca do mal com o surgimento de uma rica literatura acerca do demoníaco. Essas literaturas consideradas apócrifas supõem revelações sobrenaturais acerca dos mistérios divinos, conhecidas hoje como apocalípticas. Nessas literaturas, a imaginação rompe as barreiras canônicas e estão repletas de citações relativas aos espíritos malignos que “se assanham em contrariar as obras e os desígnios do criador do Universo”, explica Nogueira (2000, p. 20)
I Enoque é o imo de uma antiga e autônoma vertente do judaísmo do segundo templo, o judaísmo enoquita. Em 1990, Sacchi (1990, cap. 3) faz a primeira tentativa de escrever a história desse movimento enóquico. Segundo ele, conceito do mal seria a sua principal particularidade.
A partir de agora, caminharemos em textos da tradição judaica do segundo templo, em especial os apócrifos e pseudoepígrafos e os vinculados aos Manuscritos do Mar Morto (MMM), para analisarmos indícios literários da tradição de Enoque em especial do Mito dos Vigilantes, e a origem da presença do mal.
Terra (2014, p.76) afirma que o mito dos Vigilantes é comentado em vários textos judaicos do segundo templo, especialmente nas literaturas apocalípticas. Época em que já se desenvolvia uma demonologia, fruto da influência de outras culturas. Segundo o autor, um conjunto de ideias e seu desenvolvimento do conceito de espíritos imundos, podem ser facilmente localizadas pelos rastros deixados na história da literatura. Jonas Machado, mostra uma metáfora para explicar essa mudança no imaginário judaico, ele explica que quando dois carros se chocam, ambos saem deformados. “Ocorre, de fato, um choque na relação de culturas e cada uma continua seu percurso, mas agora deformada, ainda que geralmente de modo desproporcional”. Isso é possível por causa da relação de troca entre as culturas. Assim como o Mito dos Vigilantes recebeu contornos demoníacos em sua narrativa. Esta, por sua vez, gerou imagem no imaginário do segundo tempo, explica Kenner.
Encontramos citações do Mito dos Vigilantes nas seguintes literaturas judaicas do século II a.C.: Livro dos Jubileus; Testamento dos Doze Patriarcas; Os Oráculos Sibilinos; vários textos de Qumran; O Documento de Damasco; Período da Criação; Livro dos Gigantes; 2 Baruc; 2 Enoque; Filo de Alexandria e Flávio Josefo.
É necessário comentar a importância da literatura de Qumran e seu grande número de textos que falam a respeito de seres malignos. Na imagética qumranita o mundo está infestado de anjos e demônios, e eles influem na vida interior do ser humano e do cosmo. Assumindo uma guerra cósmica e dualista entre o bem e o mal, segundo Garcia Martinez.

sábado, 9 de junho de 2018

A INFLUÊNCIA DO LIVRO DE ENOQUE NO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO - Parte 1


A tradição de Enoque e os anjos caídos
Quem foi Enoque?
Antes de analisarmos a influência enoquita no mundo judaico, precisamos entender sobre esse personagem mitológico e enigmático que deu origem a inspiração dessa literatura. Enoque aparece em duas genealogias no livro de Genesis. Em Gn 4. 17-18, de fonte Javista, Enoque é o terceiro na genealogia. Adão gera Cain que gera Enoque. Porém, no capítulo seguinte Gn 5, 18-24, de fonte Sacerdotal, Enoque passa a ser o sétimo após Adão. Lemos que Enoque era filho de Jarede e pai de Matusalém. E que “Todos os dias de Enoque foram de trezentos e sessenta e cinco anos. Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si”. Dois fatos importantes se destacam nesse texto de Gênesis, o primeiro é que Enoque viveu pouco em relação a todos os outros citados, e o segundo é que Enoque é o único que não morre, mas é tomado por Deus. Para Collins (2010, p.77), a breve menção sobre Enoque “é a semente da qual as especulações posteriores nasceram”, o fato da menção sacerdotal de que Enoque é o sétimo após Adão e que vive 365 anos, está em paralelo com a lista dos Reis Sumérios, onde o sétimo rei é Enmeduranki ou Enmenduranna rei de Sippar, centro do culto de Shamash, cultuavam o deus sol, cujo calendário solar era de 364 dias.
Collins (2010, p.79) entende que há paralelos entre Enoque e as figuras lendárias mesopotâmicas sugere que Enoque foi desenvolvido como uma contraparte judaica de heróis tais como Enmeduranki – nenhum pouco inferior a estes em antiguidade e status, ou acesso ao conhecimento divino. Para o autor, a figura de Enoque pode ser percebida por um lado como uma resposta aos heróis dos quais os babilônicos reivindicavam grande sabedoria e poderes revelatórios. Na comunidade judaica da diáspora ocidental, Enoque passa a ter grande importância, pois fora misteriosamente “tomado” por Deus, por isso, estava apto a ser o revelador dos mistérios celestiais da história primordial de toda a humanidade. Para Reed, Enoque torna-se com o passar dos tempos um escriba, sábio, cientista, visionário que é tomado para o céu e atravessa com os anjos a terras até seus confins. Como profeta e testemunha ele exorta contra o pecado, prevê a história e até intercede pelos anjos pecadores.

Os anjos caídos
O Mito dos Vigilantes (mito dos anjos que caíram do céu) está preservado no Livro dos Vigilantes, “pode servir de introdução à literatura de Enoque, uma vez que é uma das obras mais antigas, pré-macabeia, e fornece a elaboração mais explicita da história de Enoque” (COLLINS, 2010, p. 80). Este livro, somente foi preservado na versão etíope (no idioma Ge’ez), daí o nome de I Enoque ou Enoque etíope. Após sua descoberta no sec. XVIII, sua primeira publicação iniciou-se no séc. XIX, realizada por R. Laurence em 1839. A partir de então tem impulsionado muitos pesquisadores a levarem a sério sua importância.
É consenso entre os pesquisadores que I Enoque de que o livro tenha origem compósita, uma coleção de cinco livros que não estão em ordem cronológica, pertencentes a um longo período do judaísmo desde o segundo templo até a era crista. A divisão dos livros de I Enoque Etíope é a seguinte:
           
Livro dos Vigilantes (6-36);
            Parábolas de Enoque (37-71);
            Livro Astronômico (72-82);
            Livro dos Sonhos {com o apocalipse dos Animais] (83-90);
            Epístola de Enoque (91-105).

Para Collins (p.81), o livro pode ser dividido em três seções principais: capítulos 1-5 constituem uma introdução, caracterizada como as “palavras da benção de Enoque, segundo as quais ele abençoou os escolhidos e justos que estarão presentes no dia da aflição”; os capítulos 6- 16 são uma reelaboração da história dos “filhos de Deus” em Gênesis 6; e os capítulos 17-36 descrevem início e fim de sua viagem celestial e a conclusão do Livros dos Vigilantes.
Terra (2014, p.27) explica, que existem outras propostas de divisão do livro, Vanderkam (1984) faz uma divisão ainda mais complexa. Ele divide os capítulos do Livro dos Vigilantes da seguinte maneira:
            1-5:      Uma repreensão escatológica
            6-11:    História sobre a descida dos anjos e pecado
            12-16:  Enoque e a petição dos Vigilantes
            17-19:  Primeira jornada de Enoque
            20-36:  Segunda jornada de Enoque

Iremos focar neste trabalho, os capítulos 6-11 que narram a história da descida dos anjos denominados “Vigilantes”, o pecado e a consequente queda. De acordo com o texto dos capítulos 6-11, um grupo de seres angelicais, nomeados de Vigilantes, sentiram-se atraídos pela beleza das filhas dos homens, mulheres, e conspiraram entre si sob a liderança de Semiaza, com o propósito de possuírem-nas. Como afirma I Enoque:
Quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles dias, nasceram-lhes filhas bonitas e graciosas. E os vigilantes, filhos do céu, ao verem-nas, as desejaram e disseram entre si: “Venham, escolhamos para serem as nossas esposas as filhas dos homens, e tenhamos filhos! ” Disse-lhes então o seu chefe Semiaza: “Eu receio que vós não queirais realizar isso, deixando-me no dever de pagar sozinho o castigo de um grande pecado”. Eles responderam-lhe e disseram, “Nós todos estamos dispostos a fazer um juramento, comprometendo-nos a uma maldição comum, mas não abrir mão do plano, e assim executá-lo. ” Então eles juraram conjuntamente, obrigando-se a maldição que a todos atingiriam. Eram ao todo duzentos os que, nos dias de Jared, haviam descido sobre o cume do monte Hermon. Chamaram-no Hermon porque sobre ele juraram e se comprometeram a maldições comum. (I Enoque 6,1-5).
A maioria dos pesquisadores modernos, admitem que a dependência da tradição enoquita, utilizou-se do texto de Genesis 6, ou de uma parte antiga, para adequar suas propostas teológicas da origem do mal e dos pecados da Terra. O mito dos Vigilantes, assim como Gênesis, narram a má ação pré-diluviana.
E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas. Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. Então disse o Senhor: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos. Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama. (Gn 6,1-4) João Ferreira de Almeida Revista e Corrigida (JFARC)

Outra consequência do contato dos vigilantes com os seres humanos, foi o ensino de atividade, tais como: a arte da metalurgia e da confecção de armas, às mulheres ensinaram a maquiagem, a ornamentação, a adivinhação, a magia, os encantamentos, a astrologia e o cultivo das raízes, conforme diz o texto:
Azazel ensinou aos homens a arte de fabricar espadas, facas, escudos, armadura peitoral e técnicas de metais, braceletes e adornos; como pintar os olhos e embelezar as sobrancelhas. Entre as pedras preciosas, escolher as mais caras e preciosas, e a metalurgia. Houve grande impiedade e muita fornicação, e corromperam-se os bons costumes. (8,1-3).
Junta-se a esses ensinamentos, outra relação elaborada por Nogueira (2006, p.145-155) em seu didático inventário dos ensinamentos dados pelos anjos, e seus respectivos nomes presentes dados na narrativa, a seguir:
Azazel: a metalurgia (para fabricar armas) e a cosmética.
Amerazak: Magia (encantamentos e raízes)
Armaros: como anular encantamentos
Baraquiel: os astrólogos
Kokabiel: os signos
Tamiel: astrologia
Asradel: o ciclo lunar.
O texto narra a história do relacionamento sexual dos anjos vigilantes com as mulheres. Dessa união proibida nascem gigantes, seres híbridos incontroláveis que comem todo o alimento da terra e posteriormente alimentam-se dos seres humanos (7, 1-6). O derramamento faz com que a humanidade clame a Deus (8,4). Segundo o texto os anjos Miguel, Sariel, Rafael e Gabriel, intercedem a Deus a favor da humanidade (I Enoque 9). Após tal episódio, a narrativa continua com a seguintes ordens divinas: Sariel é enviado por Deus para avisar Noé do julgamento divino que viria sobre o mundo. Deus envia Rafael para prender Azazel nas profundezas do deserto, até o julgamento final (10, 4-6); Gabriel é enviado para destruir sem piedade os gigantes (10,4-12);
Para Gabriel disse o Senhor: “vá a eles, os bastardos [gigantes] à raça mestiça, filhos da fornicação, e aniquila os filhos dos vigilantes que estão entre os homens. Coloca-os uns contra os outros, para que se mantem mutuamente. Não se prolongue mais os dias de suas vidas!”
Ao anjo Miguel, Deus ordena que prenda Semiaza e os anjos rebeldes. A narrativa (10, 11-15) diz que eles devem ser presos por sete gerações nos vales profundos da terra, até o juízo final. Por fim, os gigantes são condenados à destruição (14,5). Todavia, seus espíritos são liberados e transformam-se em espíritos malignos gerando uma vasta proliferação de demônios.
Agora, os gigantes nascidos da união de espirito com carne serão chamados de espíritos malignos na terra e sobre a terra. Os espíritos dos gigantes, os Nefilins oprimem, corrompem, atacam, pelejam, promovem a destruição; comem e não se fartam; bebem e não matam a sede. Esses espíritos atacam homens e mulheres, pois desses procederam (...). Aonde quer que haja sido os espíritos de seu corpo, pereça sua carne até o dia da grande consumação do juízo, com a qual o universo perecerá com os vigilantes e ímpios. (15, 8-16, 1).

Para Terra (2014, p. 51), o Livro dos Vigilantes tem características marcantes de uma teodiceia. Segundo o autor, ele responde sobre o mal no mundo, junto a essa temática aparece a dos ilícitos ensinamentos celestes. É um consenso geral entre os estudiosos, que I Enoque 6-11 é uma junção de dois ciclos diferentes de tradições sobre a queda de anjos, cujos Semiaza e Azazel são identificados como líderes. Para Nickelsburg, essas tradições explicam a causa do surgimento do mal no mundo, os eventos de desvendar os segredos da metalurgia, magia, encantamentos, astrologia, trouxeram a impureza, os ensinamentos impróprios e a violência; bem como o casamento com mulheres – nascimento de gigantes – devastação da terra pelos gigantes são uma forma de explicar o mal no plano divino. Para Collins (1982, p.98) o Mito dos Vigilantes e suas tradições “refletem algum tipo de crise”, além da explicação do mal sobre o mundo.
Os textos enoquita testemunham que o mal e a impureza no mundo são resultado de uma rebelião angelical. Nos textos citados, encontramos o tema do demoníaco ligado ao imaginário dos anjos caídos, a informação de que os espíritos dos gigantes se tornaram os espíritos maus com características demoníacas, pois oprimem, corrompem, atacam, etc. Collins (1997b, p.31) conclui: “desta forma a revolta dos vigilantes tornou-se a maior causadora da existência dos maus espíritos, por implicação, do pecado na humanidade”.

A história dos Vigilantes é o fundamento de uma tradição maior de Enoque. Sua forma primaria I Enoque 6-11, foi relida e aumentada na própria tradição enoquita e posteriormente nas tradições judaicas e cristãs. O tema da origem do mal é central no mito. Este trabalho, pretende analisar algumas das contribuições do desenvolvimento imagético dessa tradição na religiosidade judaica e posteriormente cristã. E como se desenvolveu a figura dos demônios, mais especificamente dos espíritos imundos.

A referências bibliográficas serão informadas com a parte 3.

domingo, 12 de novembro de 2017

Misoginia Cósmica

A cada dia que passa, a mulher conquista espaços que durante muito tempo foram dominados pelos homens. Hoje, ela é chefe, líder, executiva, comandante e… pastora. Para uns, é natural e aceitável que elas estejam em posição de destaque, no mercado de trabalho, dentro das igrejas. Para outros, não.

Kemer[1] (p.104) explica que; a literatura judaico-cristã, como produto de seu tempo, apresentou uma diferenciação de gêneros como estabelecidos pela própria natureza ou por Deus, que acabaram relegando às mulheres limitadas atuações, ou, uma misoginia que perpassou a antiguidade, esteve presente no mundo medievo e até hoje permeia o imaginário de diversas culturas. Muitas vezes influenciadas por sociedades patriarcais misóginas que viam no corpo feminino um perigo indomesticável.

Parte desse ódio contra o feminino, acompanhou as culturas patriarcais para subordinar as mulheres e limitar-lhes o poder e autonomia. Além disso, a tradição judaica do segundo templo e as obras cristãs posteriores mostram como a mulher foi alvo de gratuito preconceito, chegando, em alguns momentos, a ser vista como uma aliada das forças malignas.

Um texto extra bíblico e veterotestamentários de tradição apocalíptica pode nos ajudar a entender essa questão. Chamado de Mito dos Vigilantes e atribuído ao I Henoc (ou Henoc Etiope) admitido ser do séc. III a.C., está preservado o Livro dos Vigilantes, nesse livro um grupo de seres angelicais nomeados como Vigilantes se atraiu pela beleza das filhas dos homens e conspirou entre si sob a liderança de Shemihazah, com o propósito de possuir as belas mulheres, o que resultou em catástrofes imensuráveis e irremediáveis desordem cósmica.

Um outro texto é Jubileus (sec. II a.C.), que reconta a história do Gênesis, e novamente aparecem os anjos suduzidos pela beleza das mulheres e como resultado de relações sexuais o nascimento de gigantes. Por isso, aumentando a maldade sobre a Terra e Deus mandou o diluvio na época de Noé.

A importância dada à narrativa dos vigilantes e de Jubileus, se percebe na presença desses mitos em grande parte da tradição judaica e, posteriormente, cristã. Seguindo seus rastros, alguns textos podem ser mapeados para percebemos como as imagens desse mito influenciaram para o medo e ódio contra a mulher.

Vejamos essa influência no Novo Testamento, usaremos como exemplo o versículo 1 Co 11,10 em seu texto original no grego.

δια τουτο οφειλει η γυνη εξουσιαν εχειν επι της κεφαλης δια τους αγγελους

Por isso deve a mulher autoridade ter sobre a cabeça por causa dos anjos (tradução literal).

A palavra autoridade no grego “exousia” (grifada acima) tem o sentido de autoridade, habilidade.

Agora vejamos o que diz a tradução da Bíblia Almeida Revisada, 

Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por causa dos anjos” 1Co 11.10.

Nesta tradução a palavra no grego εξουσιαν (exousia) é traduzida por “submissão”, ou seja, a mulher tinha habilidade, autoridade e licença para governar a igreja em pé de igualdade com os homens, agora segundo essa tradução, ela está submissa. Os “anjos” citados por Paulo faz menção ao mito dos Vigilantes de I Henoc.

Mas não para por aqui, vejamos o mesmo versículo na tradução da Bíblia Almeida Revista e Atualizada. 

“Por tanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade”. 

Percebemos que nesta tradução a submissão passa a ser visível, a Bíblia ARA acrescenta inoportunamente no texto original a palavra véu. No imaginário judaico-cristão, mostrar os cabelos era uma forma de sensualidade feminina. Neste caso, segundo o tradutor, usar véu é uma maneira de submissão.

Na Bíblia NTLH (Nova Tradução da Linguagem de Hoje), a situação da mulher piora de vez, vejamos 

Portanto, por causa dos anjos, a mulher deve por um véu na cabeça para mostrar que está debaixo da autoridade do marido” 1 Co 11,10. 

Nesta tradução, além do jugo do véu, ela ainda precisa estar debaixo da autoridade do marido (mais um acréscimo inexistente no original).  Entre outras palavras, aquela que não colocar o véu e não obedecer ao seu respectivo marido está em desacordo com a palavra de Deus.

Essa inabilidade na tradução desse versículo, ocasionou inúmeras interpretações equivocadas da palavra de Deus. A Bíblia é o sagrado e não cabe a nós discutirmos sobre o sagrado, mas neste caso precisamos reparar essa injustiça. Quantas vidas nasceram, viveram e morreram debaixo dessa submissão? E não foi esse o plano de Deus, para o criador não há separação entre homens e mulheres.

“Pois todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes.  Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Gálatas 3:27-28.

“É para que sejamos livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão”Gálatas 5:1





[1] TERRA, Kenner R. C. Misoginia cósmica na literatura judaico-cristã. In: Revista do Jesus Histórico, VIII: 15. Rio de Janeiro, 2015, p.103-109.