AS TRADIÇÕES DOS
PATRIARCAS
Todos os cristãos conhecem a história
dos patriarcas narrada no livro de Gênesis. No começo Deus chama a Abrão da
terra dos seus pais e lhe faz uma promessa, e assim começa uma relação familiar
com Deus. Com o tempo, aquela família frutificou e se multiplicou enormemente,
crescendo até formar o povo de Israel. Essa é a primeira grande saga da Bíblia,
um conto de sonhos de imigrantes e promessas divinas, que serve como uma
brilhante e inspiradora abertura para a história subsequente da nação de Israel.
Abraão foi o primeiro dos patriarcas e o recebedor da promessa divina da terra
e de abundantes descendentes, promessa essa que foi transportada através de
gerações por seu filho Isaque e por Jacó, também conhecido como Israel, filho de
Isaque. Entre os 12 filhos de Jacó, dos quais dez se tornariam patriarcas de dez
tribos e um daria origem a outras duas, coube a Judá a honra especial de guiar
a todos.
Segundo os autores Israel
Finkelstein, e Neil Asher Silberman, em seu livro A Bíblia Desenterrada: Uma
Nova Visão Arqueológica do Antigo Israel e da Origem de seus Textos Sagrados.
No Brasil foi publicado com o título “A Bíblia Não Tinha Razão,” pela editora A
Girafa, São Paulo, 2003, que antes de descrever as prováveis circunstâncias
históricas e de tempo nas quais a narrativa dos patriarcas bíblicos foi
inicialmente tecida a partir de fontes mais antigas, é fundamental explicar por
que tantos estudiosos, durante os últimos cem anos, se convenceram de que as
narrativas dos patriarcas eram, pelo menos em resumo, verdadeiras, sob o ponto
de vista histórico.
A Bíblia narra a história antiga
de Israel em ordem sequencial, dos patriarcas ao Egito, ao Êxodo, à caminhada
pelo deserto, à conquista de Canaã, à época dos Juízes e ao estabelecimento da
monarquia; também fornece uma chave para calcular datas específicas. A pista
mais importante é uma observação no 1 Rs 6,1 de que o Êxodo aconteceu 480 anos
antes que a construção do Templo começasse em Jerusalém, no quarto ano do
reinado de Salomão. Além disso, o Êxodo 12,40 afirma que os israelitas
suportaram 430 anos de cativeiro no Egito antes do Êxodo. Somando um pouco mais
de duzentos anos para a superposição da duração de vida dos patriarcas em
Canaã, antes que os israelitas partissem para o Egito, chegamos a uma data
bíblica por volta de 2100 a.C. para a partida original de Abraão para Canaã.
Naturalmente, existem alguns
problemas evidentes para a aceitação dessas datas no que se refere à
reconstrução histórica precisa, inclusive à extraordinária duração das vidas de
Abraão, Isaque e Jacó, todas longas, que excederam os cem anos. Além do mais, as
genealogias posteriores que delinearam os descendentes de Jacó eram confusas,
se não abertamente contraditórias. Moisés e Araão, por exemplo, eram identificados
como a quarta geração descendente de Levi, filho de Jacó (Ex 6:18), enquanto
Josué, um contemporâneo de Moisés e Araão, foi declarado como duodécima geração
descendente de José, outro dos filhos de Jacó (1 Cr 7:22-27) . Essa, por certo,
não era uma discrepância secundária.
A estrutura
narrativa do Pentateuco apresenta Abraão, Isaque e Jacó como patriarcas de
Israel. Essa apresentação não pode corresponder à realidade histórica. Nenhum
povo é descendente de um único patriarca ou uma única família. Parece que a
função de patriarcas tampouco é o papel original dessas figuras. Chama a
atenção já o modo com que foi composta a genealogia. No início, ela segue em
linha reta até Jacó, depois se subdivide em 12 filhos = tribos. Se o Israel
posterior quisesse derivar sua descendência de um único patriarca, teria sido
suficiente construir uma genealogia de Jacó = Israel – 12 filhos = tribos. Nessa
genealogia seria desnecessário começar com Abraão e Isaque. Portanto, na
formação dessa tradição, o interesse genealógico não é primário. Salvo sua
atual função genealógica, as figuras devem ter tido um significado anterior e
original. A linha genealógica é apenas uma parte da estrutura que é, também
nesse aspecto, secundária. Essa compreensão nos obriga a analisar as distintas
tradições separadamente. Em seguida, chamam a atenção as seguintes características:
Abraão, Isaque e Jacó são apresentados como não sedentários. Seu modo de vida é
o de pastores nômades com rebanhos de pequeno porte (ovelhas e cabras). Ainda não
são nômades criadores de camelos, mas pertencem àqueles seminômades que vivem
em transumância; isso se pode deduzir claramente do colorido que caracteriza a
camada mais antiga dessas tradições. Segundo o teólogo alemão Gunneweg -
História de Israel pg 44.
Entende-se hoje que as narrativas
de Abraão têm sua vinculação geográfica local com um santuário no sul, em
Manre, perto de Hebron. No entanto, é possível que se trate de uma
transferência do motivo de Isaque para Abraão. De modo geral, a tradição de
Abraão foi amplamente recheada com motivos da tradição de Isaque, de modo que
aquela cresceu muito, em detrimento desta. Com base nessas tradições, podemos
dizer que Abraão encontrou seu lugar no
extremo sul, e isso significa que o círculo que cultuou o Deus de Abraão se
estabeleceu ali e enraizou também nesse local essas tradições que haviam trazido
consigo. O processo da tradição histórica que absorveu a tradição de Isaque
dentro da de Abraão reflete um processo histórico: o grupo de Abraão encontrou
no sul o grupo de Isaque, que já se tornara sedentário, e se apossou das
tradições deste.
A tradição de Isaque, que ficou
bem reduzida, ainda pode ser localizada com relativa segurança. Em Gênesis 26,
o compêndio das tradições de Isaque, aponta claramente para o sul, para os
limites da terra cultivada, onde o grupo de Isaque conseguiu ficar com algumas
fontes. A região onde Isaque viveu com os seus em um período de fome é
mencionada a vizinhança da cidade de Gerar, aproximadamente a 20 km ao noroeste
da região das fontes de Berseba. O que é apresentado na saga como uma estadia
única por ocasião de uma fome única pode ser interpretado com em referência a
uma região que era, em geral, o lugar do pastoreio do clã de Isaque nos
períodos da estiagem do verão.
A questão mais complicada é a da
localização da tradição de Jacó. Essa figura da tradição parece pertencer, primeiramente,
à região das tribos posteriores da Palestina central, em Siquém e Betel (Gn
28.11ss; 33,18; 35,9ss; 48,22). Além disso, existe uma outra tradição
proveniente da Transjordânia (Gn 32,1ss; cf 31,4422; 50,10s). Embora os dois
complexos de tradições tenham sido entrelaçados artisticamente pela fuga de
Jacó para a Transjordânia, sua estadia lá e sua volta para o oeste, é evidente
que originalmente eles eram complexos diferentes.
Assim como os grupos de Isaque e
Abraão encontraram um lar no sul, assim também o grupo de Jacó encontrou um na
região central da Palestina em torno de Síquem e Betel. Em tempos posteriores
colonos efraimitas passaram do oeste para o outro lado do Jordão e adaptaram
suas tradições a respeito de Jacó às novas condições da nova terra onde
moravam.
Israel assume as tradições dos
patriarcas pré-israelitas. O Deus dos pais, já antigamente identificado com o
Deus El, cultuado em diversos santuários locais, fundiu-se com Yahweh, o Deus
de Israel. Desse modo, as narrativas dos patriarcas refletem um período histórico
de três a quatro séculos que vai desde a primeira fase da tomada da terra até o
trabalho teológico dos escribas, conclui Gunneweg.
Bibliografia
História de Israel –Gunneweg – Editora Loyolla – coleção
Serie Biblioteca de Estudos do Antigo Testamento - São Paulo, 2005
A Bíblia não tinha razão - Israel Finkelstein, e Neil Asher
Silberman, editora A Girafa, São Paulo, 2003.