terça-feira, 16 de agosto de 2016

A NOVELA DE JOSÉ E O ADVENTO DOS PRIMEIROS MONARCAS (GN 37-50)

Quem não conhece a novela bíblica do jovem José. O sonhador que queria ser rei. Esse é o significado da túnica principesca que recebe de seu pai Jacó (Gn 37,3) e dos sonhos em que vê seus irmãos e seus pais se inclinando diante dele (Gn 37,5-11). Nesta antiga saga vétero-testamentária o jovem José é sequestrado, aprisionado, vendido, escravizado, injustiçado, esquecido, até que interpreta o sonho de faraó.

Esse texto (Gn 37-50) de composição deuteronomista do século VII a.C., ilustra bem a questão da administração do excedente agrícola, durante os momentos de fartura (as vacas gordas) e os momentos de penúria (as vacas magras). Portanto, vale ressaltar, que esse texto foi bem sugestivo na época para que os reis de Judá justificassem suas atitudes e os seus interesses políticos. É muito difícil calcular o quanto essa tradição oral, da novela de José, saiu da memória popular e foi ganhando corpo, sendo relida, reescrita e ampliada, até se tornar história sagrada, que conhecemos hoje no livro de Gênesis.

Ao interpretar os sonhos de faraó, José o aconselha que durante os sete anos de boa colheita ele tome a quinta parte dos produtos da terra do Egito e a armazene. Esses viveres servirão de reserva à terra para os sete anos de fome que se abaterão sobre o Egito. Assim a terra não será exterminada pela fome (Gn 41,33-36). Vemos aqui, portanto, que José ensina ao faraó e a todo Egito como proceder, guardando o excedente dos anos de boa colheita para quando o tempo de vacas magras chegar. Essa é exatamente a justificativa para a existência da monarquia em Israel. Ou seja, a função ideológica da novela de José é fundamentar a monarquia. José representa o projeto monárquico e os irmãos, o projeto tribal. Kaefer, p 34.

A justificativa do projeto monárquico existiu devido a necessidade da armazenagem do excedente agrícola visando o tempo da penúria, de forma que nunca faltasse alimento para o povo. Todavia, é que na pratica, quando o tempo das vacas magras chegava, os reis nunca partilharam com o povo os alimentos que armazenaram, mas os venderam ou trocaram pelas terras dos camponeses ou pela sua liberdade. É exatamente o que faz José quando o povo vem lhe pedir alimentos (Gn 47, 13-26). Primeiro ele vende os alimentos. Quando eles não têm mais dinheiro, José se apossa dos rebanhos. Quando não tem mais rebanho, José troca alimentos pela terra. Quando o povo não tem mais dinheiro, nem animais, nem terra, é obrigado a se vender como escravo para não morrer de fome, e José escraviza a todos, de uma extremidade a outra do Egito. Dessa forma, tudo passa para as mãos do faraó ou do rei. Uma vez de posse de tudo, José entrega sementes aos camponeses para que plantem as terras do rei e lhe entreguem a quinta parte das colheitas. “Esta é uma regra que vale até hoje”, diz o texto, justificando a cobrança de tributo por parte do rei. Os únicos que ficam isentos do tributo e da venda da terra são os sacerdotes (Gn 47, 22-26b). Essa nota revela quem são os redatores do texto, afirma Kaefer em seu livro.

Isto ficará evidente durante toda a monarquia, que privilegiará apenas um grupo, àquele que é ligado a corte e à cidade. O povo que vive nas aldeias, que não tem ligação com o templo terá que trabalhar e sustentar os monarcas das cidades, o clero e o templo, e ainda será a classe sacrificada quando as vacas magras chegarem, pois será a primeira vítima da penúria.
Uma outra justificativa para a existência da monarquia é a proteção do povo e do campo. Isto porque, o excedente, bem como a terra fértil da planície, despertava o interesse de outros povos. Principalmente quando a fome assola um povo e ele sabedor que o povoado vizinho tem alimentos estocados, não pensava duas vezes em saquear seus armazéns.  Por isso, é preciso a proteção de um exército que, para os monarcas, só a monarquia pode oferecer. Temos o caso, entre tantos da Bíblia, dos filisteus. Os filisteus eram remanescentes dos povos do mar que se estabeleceram na costa do Mediterrâneo ao norte de Gaza, no sul de Canaã, por volta de 1500 a.C. Tinham superioridade tecnológica, como o domínico do ferro (1 Sm 13,19-22), e, possivelmente, conforme desenhos e inscrições encontradas no Egito, também eram maiores fisicamente que os cananeus e os futuros israelitas. Os filisteus combateram os egípcios e dificultaram o seu domínio na região.  Conquistaram as melhores terras e com o tempo tornaram-se o arqui-inimigo da Israel emergente (Jz 13-16). No contexto internacional, eram, pois, os filisteus que ditavam as ordens na terra de Canaã nesses dias. Evidentemente é preciso distinguir os filisteus de quando se instalaram em Canaã dos filisteus mencionados na Bíblia.
Kaefer em seu livro A Bíblia, a Arqueologia e a História de Israel e Judá, diz que, “podemos delinear que a partir de 1200 a.C. (período do ferro I), começa a expansão das aldeias para a planície, ocupando o espaço deixado pelas antigas e poderosas cidades-estado. Os camponeses, protoisraelitas, descem as montanhas e, num movimento ascendente, vão tomando as planícies. A terra fértil e plana possibilita ampliar em muito a produção agrícola, principalmente de cevada e trigo. O incremento de grãos faz aumentar a produção de alimentos, o que, por sua vez, permite o crescimento da população. O excedente faz surgir a concentração de poder nas mãos de alguns clãs que se permitem investir no comercio. Surgem, então, os administradores profissionais, a pequena indústria e os pequenos monarcas. O excedente agrícola, quando em menor quantidade, era conservado em vasos de cerâmica que eram enterrados no fundo da casa do clã. Quando em maior quantidade, eram estocados em silos bem protegidos da chuva. Uma parte dos grãos guardados era para o plantio do ano seguinte; outra, para o consumo; e, eventualmente, uma terceira parte para o comercio. A estocagem do excedente foi, portanto, um passo gigantesco para a sobrevivência da tribo em tempos de calamidades. Uma sociedade que não guarda tem dificuldades para sobreviver quando chega a seca ou quando as pragas invadem a lavoura, ou, ainda, quando o povo é acometido por doenças”.


Fonte:

KAEFER, José Ademar. A Bíblia, a Arqueologia e a História de Israel e Judá. PAULUS, São Paulo, p. 33-35, 2015.

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