Quem não conhece a novela bíblica
do jovem José. O sonhador que queria ser rei. Esse é o significado da túnica
principesca que recebe de seu pai Jacó (Gn 37,3) e dos sonhos em que vê seus
irmãos e seus pais se inclinando diante dele (Gn 37,5-11). Nesta antiga saga
vétero-testamentária o jovem José é sequestrado, aprisionado, vendido,
escravizado, injustiçado, esquecido, até que interpreta o sonho de faraó.
Esse texto (Gn 37-50) de
composição deuteronomista do século VII a.C., ilustra bem a questão da
administração do excedente agrícola, durante os momentos de fartura (as vacas
gordas) e os momentos de penúria (as vacas magras). Portanto, vale ressaltar,
que esse texto foi bem sugestivo na época para que os reis de Judá justificassem
suas atitudes e os seus interesses políticos. É muito difícil calcular o quanto
essa tradição oral, da novela de José, saiu da memória popular e foi ganhando
corpo, sendo relida, reescrita e ampliada, até se tornar história sagrada, que
conhecemos hoje no livro de Gênesis.
Ao interpretar
os sonhos de faraó, José o aconselha que durante os sete anos de boa colheita
ele tome a quinta parte dos produtos da terra do Egito e a armazene. Esses
viveres servirão de reserva à terra para os sete anos de fome que se abaterão
sobre o Egito. Assim a terra não será exterminada pela fome (Gn 41,33-36).
Vemos aqui, portanto, que José ensina ao faraó e a todo Egito como proceder,
guardando o excedente dos anos de boa colheita para quando o tempo de vacas
magras chegar. Essa é exatamente a justificativa para a existência da monarquia
em Israel. Ou seja, a função ideológica da novela de José é fundamentar a
monarquia. José representa o projeto monárquico e os irmãos, o projeto tribal.
Kaefer, p 34.
A justificativa do projeto
monárquico existiu devido a necessidade da armazenagem do excedente agrícola
visando o tempo da penúria, de forma que nunca faltasse alimento para o povo.
Todavia, é que na pratica, quando o tempo das vacas magras chegava, os reis
nunca partilharam com o povo os alimentos que armazenaram, mas os venderam ou
trocaram pelas terras dos camponeses ou pela sua liberdade. É exatamente o que
faz José quando o povo vem lhe pedir alimentos (Gn 47, 13-26). Primeiro ele
vende os alimentos. Quando eles não têm mais dinheiro, José se apossa dos
rebanhos. Quando não tem mais rebanho, José troca alimentos pela terra. Quando
o povo não tem mais dinheiro, nem animais, nem terra, é obrigado a se vender
como escravo para não morrer de fome, e José escraviza a todos, de uma
extremidade a outra do Egito. Dessa forma, tudo passa para as mãos do faraó ou
do rei. Uma vez de posse de tudo, José entrega sementes aos camponeses para que
plantem as terras do rei e lhe entreguem a quinta parte das colheitas. “Esta é
uma regra que vale até hoje”, diz o texto, justificando a cobrança de tributo
por parte do rei. Os únicos que ficam isentos do tributo e da venda da terra
são os sacerdotes (Gn 47, 22-26b). Essa nota revela quem são os redatores do
texto, afirma Kaefer em seu livro.
Isto ficará evidente durante toda
a monarquia, que privilegiará apenas um grupo, àquele que é ligado a corte e à
cidade. O povo que vive nas aldeias, que não tem ligação com o templo terá que
trabalhar e sustentar os monarcas das cidades, o clero e o templo, e ainda será
a classe sacrificada quando as vacas magras chegarem, pois será a primeira
vítima da penúria.
Uma outra justificativa para a
existência da monarquia é a proteção do povo e do campo. Isto porque, o
excedente, bem como a terra fértil da planície, despertava o interesse de
outros povos. Principalmente quando a fome assola um povo e ele sabedor que o
povoado vizinho tem alimentos estocados, não pensava duas vezes em saquear seus
armazéns. Por isso, é preciso a proteção
de um exército que, para os monarcas, só a monarquia pode oferecer. Temos o
caso, entre tantos da Bíblia, dos filisteus. Os filisteus eram remanescentes
dos povos do mar que se estabeleceram na costa do Mediterrâneo ao norte de
Gaza, no sul de Canaã, por volta de 1500 a.C. Tinham superioridade tecnológica,
como o domínico do ferro (1 Sm 13,19-22), e, possivelmente, conforme desenhos e
inscrições encontradas no Egito, também eram maiores fisicamente que os
cananeus e os futuros israelitas. Os filisteus combateram os egípcios e
dificultaram o seu domínio na região.
Conquistaram as melhores terras e com o tempo tornaram-se o
arqui-inimigo da Israel emergente (Jz 13-16). No contexto internacional, eram,
pois, os filisteus que ditavam as ordens na terra de Canaã nesses dias.
Evidentemente é preciso distinguir os filisteus de quando se instalaram em
Canaã dos filisteus mencionados na Bíblia.
Kaefer em seu livro A Bíblia, a
Arqueologia e a História de Israel e Judá, diz que, “podemos delinear que a
partir de 1200 a.C. (período do ferro I), começa a expansão das aldeias para a
planície, ocupando o espaço deixado pelas antigas e poderosas cidades-estado.
Os camponeses, protoisraelitas, descem as montanhas e, num movimento ascendente,
vão tomando as planícies. A terra fértil e plana possibilita ampliar em muito a
produção agrícola, principalmente de cevada e trigo. O incremento de grãos faz
aumentar a produção de alimentos, o que, por sua vez, permite o crescimento da
população. O excedente faz surgir a concentração de poder nas mãos de alguns
clãs que se permitem investir no comercio. Surgem, então, os administradores
profissionais, a pequena indústria e os pequenos monarcas. O excedente
agrícola, quando em menor quantidade, era conservado em vasos de cerâmica que
eram enterrados no fundo da casa do clã. Quando em maior quantidade, eram
estocados em silos bem protegidos da chuva. Uma parte dos grãos guardados era
para o plantio do ano seguinte; outra, para o consumo; e, eventualmente, uma
terceira parte para o comercio. A estocagem do excedente foi, portanto, um
passo gigantesco para a sobrevivência da tribo em tempos de calamidades. Uma
sociedade que não guarda tem dificuldades para sobreviver quando chega a seca
ou quando as pragas invadem a lavoura, ou, ainda, quando o povo é acometido por
doenças”.
Fonte:
KAEFER, José
Ademar. A Bíblia, a Arqueologia e a História de Israel e Judá. PAULUS, São
Paulo, p. 33-35, 2015.
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