A imagética do
Mito dos Vigilantes no Evangelho de Marcos.
O cristianismo
primitivo tem as suas origens no judaísmo do segundo templo, nosso objetivo
nessa última parte é demonstrar toda a carga imagética do judaísmo enoquita e a
sua influência na imaginação e na literatura das primeiras comunidades cristãs.
Lazarini Neto
explica em seu artigo, que “uma mudança teológica acerca do mal houve entre os
séculos II a.C. e I d.C. com o surgimento de uma rica literatura acerca do
demoníaco” (2006, p.6). O autor comentava acerca da literatura considerada
apócrifa por ser uma literatura composta por revelações sobrenaturais acerca do
futuro, cuja imaginação rompia as barreiras canônicas e estavam repletas de
citações relativas aos espíritos malignos que “se assanham em contrariar as
obras e os designíos do criador do Universo”.
A dependência
dos textos do Novo Testamento à tradição de Enoque, em especial ao Mito dos
Vigilantes, é aceita por muitos pesquisadores. Terra afirma que houve um senso
comum de que a tradição enoquita teve grande apreço nas comunidades cristãs, a
ponto do primeiro livro de Enoque estar na lista dos canônicos na Igreja de
língua etíope (2014, p.117-118).
São várias as
influências desse mito no imaginário cristão, sendo que um dos mais relevantes
é o imaginário dos demônios, mas temos outras influências enoquita em diversos
textos neotestamentários, tais como: Epístola de Judas 6; 14-15; Epístolas
Petrinas - 1 Pe 3, 3-4 (adorno) 18-21 (espíritos em prisão), 2 Pe 2,4;
Epístolas Paulinas e Pseudopaulinas- 1 Co 11.10, 1 Tm 2,9-11;Encontramos esses
ensinamentos também em literaturas extra canônicas de autores dos primeiros
quatro séculos, como por exemplo: Epístola de Barnabé. Justino Mártir (Primeira
Apologia 5, 1-4; Segunda Apologia 5); Atenágoras (Súplica pelos Cristãos 24-26); Irineu (Contra Heresias 1.10.1; 1.15.6; 4.16.2; 4.36.4); Clemente de
Alexandria (O Instrutor 3,2.14; Eclogae Propheticae53,5; Stromata III 7,59)[1]; Tertuliano
(Apologeticum 22, 3-4; De cultufeminarum i 2,1; ii 10, 2-3);
Cipriano de Cartago (De habituvirginum14);
Pseudo Clementinas (Homilias 8,
12-18; Reconhecimento 4,26);
Lactantius ( DivineInstitute 2,15).
Outros textos gnósticos, tais como: Pistis
Sofia, Tratado sobre a origem do mundo e Apócrifo de João[2]
(1984, p.19-34).
Terra afirma
(2010, p.125) que com essa amostragem da influência de temas, imagens e ideias
da narrativa dos Vigilantes na literatura neotestamentária e nos posteriores
textos cristãos, podemos partir para a questão do demoníaco nos sinóticos,
especialmente na questão de espíritos imundos. Boccaccini também concorda com a
ideia de que a presença de um movimento enoquita na palestina, comprova a
hipótese de uma possível relação de Jesus com essa tradição entre as ideias
do(s) Cristianismo(os) da(s) origem(ns) e o enoquismo. Segundo Nickelsburg
(2001, p. 65), pode ser garantida, pois o próprio texto de 1 Enoque 6-16, por
causa de suas informações geográficas, mostra que pelo menos essa parte
pertencia à região setentrional da Galiléia.
Conforme o autor, muitas tradições nos sinóticos relacionam Jesus à
Galiléia e provavelmente à fonte Q teria sua origem e naquelas regiões (TERRA,
2014, p.125).
O
Demoníaco nos Sinóticos como Espíritos Imundos
A presença do
imaginário do demoníaco nos sinóticos é muito intensa. Jesus e seus discípulos
lutam com a presença de um inimigo implacável – Satã, “tramando incessantemente
a ruptura da fidelidade do Senhor e pondo a perder os seus corpos e almas” (NOGUEIRA,
2000, p.26). Segundo
Pagels “os autores dos evangelhos compreenderam que a história que tinham que
contar pouco sentido faria sem Satanás” (1996, p.34). Segundo os autores a ideia era que a traição
e a morte de Jesus faziam parte de um vasto conflito cósmico, em que a batalha
final ainda não fora travada, muito menos vencida.
Em seu artigo, Lazarini
Neto informa que segundo os sinóticos, na Palestina, ao tempo de Jesus, havia
uma proliferação demoníaca sem precedentes (2006, p. 8). Nesse cenário, que
evoca uma guerra cósmica, Jesus é apresentado como “um tipo de fazedor de
milagres que age com a autoridade de origem divina, mas sem a mediação das
formas, rituais e instituições através das quais esse poder divino costuma se
manifestar” (CROSSAN, 1994, p.192).
O Evangelho de
Marcos, entre os sinóticos, chama a atenção pelo volume de material referente
às atividades exorcistas de Jesus. Ao analisar tais narrativas verificamos as
expressões “espíritos imundos” e “demônios”.
Precisamos tentar entender a diferença entre elas. Para ajudar a dirimir essa dúvida, Terra
apresenta os termos usados nos sinóticos para designar a presença dos seres
malignos que causam danos aos homens, são estes:
a. Daímon: masculino
singular (demônios). A única passagem a usar o termo é a de Mt 8,31, no plural
masculino (daímones). A expressão
grega daímoné derivada de daímonai, que é substantivizado formando
daimónion. Como as divindades no
período clássico poderiam ser boas ou más, nos evangelhos e nos cristianismos
sempre terá a conotação negativa.
b. Daímonion:
adjetivo neutro, seu plural é daimónia:
demônios. É usado pelo menos 63 vezes no NT. Esse termo é usado no NT no lugar
de daímon por sua impessoalidade: “a
mentalidade popular havia criado este vocábulo para designar poderes
impessoais, potencias espitituais ou forças maléficas” (ALVAREZ, 1995, p.61)
c. Daimonízomai:
ser endemoniado, ser possesso por um demônio.
d. Pneuma: espírito.
Com os seguintes complementos: álalon
(mudo), álalonkaíkofón(mudo e surdo), asthenéias (enfermidade), akátharton (imundo), daimonionakárthaton (de um demônio
impuro) e ponerón (maligno/mau) (2014,
p.126-128).
Dos evangelhos
sinóticos, Marcos tem um bom material preservado sobre possessão maligna e ação
demoníaca, Terra chama nossa atenção ao informar que em todos os quatro
exorcismos preservados em Marcos (1, 23-28; 5, 1-20; 7, 24-30 e 9, 14-27),
assim como nas perícopes (3, 10-12 e 20-30) encontramos a presença do (s)
espirito (s) imundo (s) (2010, p.106). Segundo Schiavo “dado o número
considerável de exorcismo na atividade de Jesus, eles fogem do gênero literário
mais amplo de milagres, para constituir um gênero próprio, que chamamos relatos
de exorcismo” (2000, p.62).
Mc 1, 21-28 –
episódio na sinagoga de Cafarnaum –Marcos inicia o ministério de Jesus com um
relato esquematizado da autoridade que caracteriza o seu ensino. Essa
autoridade, a aureola sobrenatural de sua pessoa, sua reação ante o mal, a
ordem eficaz e a culminação da expulsão são pontos que chamam a atenção do
leitor. O texto é conhecido como exorcismo inaugural, Jesus encontra alguém com
um espírito imundo (v.23), não há variação terminológica para a identificação
do ser que foi expulso, pois no v. 26 sai um espirito imundo e no v.27 Marcos
informa que Jesus tinha autoridade sobre espíritos imundos. Nesta perícope,
alguns fatos importantes: a) o espirito imundo parece conhecer bem quem era
Jesus; b) eles possuem conhecimentos cósmico e c) de alguma forma a presença de
Jesus o incomoda. (TERRA, 2010. p,129)
Mc 3, 10-23 –
sumário demonológico – o contexto é de cura, os espíritos imundos ao verem
Jesus se prostravam e gritavam “tu és o filho de Deus”. Aqui os espíritos
imundos querem revelar algo, e Jesus deseja que seja silenciado. O autor
informa que o sumario de Mc 1.34 e também Mc 1.39 o autor diz que Jesus
expulsou demônios (daimônia), a
impressão é que chamar de espíritos imundos ou demônios, a luz do paralelo
desses sumários não há diferença. (TERRA, 2010. p,130)
Mc 3, 20-30 –
controvérsia e Belzebul – nessa controvérsia, Jesus é acusado de ter autoridade
de exorcizar (Meyrs, 1992) pelo poder de Belzebul (v.22), líder dos demônios.
Jesus responde que Satã não pode expulsar Satã (v.23). O v.30 é conclusivo na
perícope diz “isso, porque dizem: ‘Ele tem um espirito impuro’”. Para o autor,
Satã (Belzebul) é um pneûmaakátharton.
(TERRA, 2010. p,131)
Mc 5, 1-20 –
episódio de Gerasa – Jesus se encontra com um homem possuído de espírito imundo
(v. 2,8, [singular]). Segundo Terra, seria uma região perfeita para o
aparecimento de um espirito imundo, pois era considerada impura. Conteúdo, tudo
se harmoniza quando os espíritos imundos entram em porcos, que também são
impuros. Todavia, nos versos 15, 16 e 18, Marcos informa que o homem estava
possuído (endemoninhado), possuído pelo (s) demônio (s). Concluindo, estar com
espírito (s) imundo (s) é o mesmo que possuir demônios. O autor conclui que, na
ordem e lógica presente no texto, independente de suas questões diacrônicas, o
demônio era um espírito imundo, com um adjetivo ou algo que revelava a sua
característica: ser imundo. (2010, p. 132)
Mc 7, 24-30 –
episódio na região de Tiro – Há um encontro de uma mulher siro-fenícia com
Jesus, sua filha tem um pneuma akárthaton
(v.25), e imediatamente no v.26 de Marcos, aparece o demônio. O problema a ser resolvido era a possessão. Nesse texto,
segundo Terra, fica mais clara a relação entre espírito imundo e demônio. O
primeiro é uma espécie de característica ou um adjetivo para o segundo. Assim,
o demônio é para Marcos, um espírito imundo. (TERRA, 2010. p,133)
Mc 9, 14-271-
episódio pós-transfiguração – trata-se do último exorcismo preservado em
Marcos. O espírito é identificado como mudo (v.17), imundo (v.25) e mudo e
surdo (v.25). Na perícope há uma ênfase na palavra espirito (6x), além dos
adjetivos: mudo, imundo e surdo. (TERRA, 2010. p,134)
Nos versículos
apresentados, notamos que para a comunidade marcana não há uma diferenciação
clara entre demônio, espírito mudo e surdo e espírito imundo.
Para Terra, como
resultado de sua pesquisa sobre a relação entre espíritos imundos e demônios
nos sinóticos, ele diz “na análise sinótica e [Q] das expressões espíritos
imundos e demônios, percebemos que as duas se confundem”. Segundo o autor, o
que Marcos chama de espíritos imundos, Mateus e Lucas chamam de demônios.
Para a
comunidade marcana, todo o Universo é encarado como uma guerra entre dois
reinos: o de Cristo e do diabo. Jesus é incumbido da missão divina de destruir
o reino das trevas, por outro lado, Satã esforça-se para impedir a expansão do
reino de Deus. No meio dessa guerra cósmica está a humanidade que é afligida
pelas forças demoníacas com sofrimentos físicos e psicológicos. Nogueira diz
que aos olhos de todos “Satã e seus exércitos estavam em uma posição de
dependência absoluta frete a Deus e de total impotência no enfrentamento com o
Messias” (2000, p. 26-27). Desta
maneira, para o Novo Testamento tudo que afasta os homens de Deus é uma
“manifestação do diabo”.
Myers percebe
nas narrativas de Marcos, “entre outros elementos por um dualismo apocalíptico
radical, no qual a nova ordem com Jesus se opõe a antiga ordem defendida pelas
instituições hebraicas. Ligado a esse dualismo, Myers acrescenta uma relação da
narrativa com o “Mito do combate” apocalíptico. “Desde o primeiro combate
apocalíptico no deserto entre Jesus e seus anjos de um lado e Satanás e suas
feras selvagens de outro (1.12s.), é claro que existe mais do que a luta de
Jesus com ordem dos escribas do que os olhos vêem” (1992, p.137).
Parece estar
claro que, conforme as palavras de Myers, “o exorcismo é o principal veículo
para articular o mito do combate apocalíptico entre os poderes (e seus
favoritos terrenos) e Jesus (como enviado do reino) (1992, p.183).
Conclusão
Nesse breve ensaio sobre o Mito dos Vigilantes, nosso estudo se deteve
especificamente em apresentar a pessoa enigmática de Enoque, mostrar a
influência do texto no judaísmo do segundo templo e consequentemente a
influência teológica e imagética nos primeiros cristãos.
Não interessaram de modo imediato, as questões profundas acerca da
autoria ou o tempo de redação do texto, e sim, como a literatura enoquita e sua
narrativa do “Mito dos Vigilantes” (mito dos anjos caídos) logrou muita
relevância na tradição judaica, pois serviu de resposta a desconcertante
pergunta sobre o mal no mundo. Para
Terra uma parte do judaísmo encontrou não em Deus, mas em ações angelicais a
origem de muitas ações inaceitáveis, como a guerra, a magia, o adultério, a
sedução e pratica imorais ligadas à mulher (2010, p, 153).
Quando surge o cristianismo, a teia imaginária da presença do demoníaco
já estava toda traçada, analisamos essa presença na literatura marcana, na qual
ficou bem clara a relação da expressão espíritos malignos e os demônios.
Assim o Mito dos Vigilantes, teve influência não somente no judaísmo, mas
também no cristianismo como podemos verificar nos sinóticos, nas tradições
petrina, paulina, deuteropaulinas, pseudopaulinas e em Judas. Com isso, podemos
resumir que a narrativa dos anjos que caíram do céu foi muito importante nos
escritos bíblicos e está presente em nossas comunidades, como diz Terra mesmo
que não percebam (2010. p,157).
[1] Para uma
exposição resumida e didática da utilização de Clemente de Alexandria, ver a
recente dissertação de Anderson Araújo. ARAÚJO, Anderson Dias. Anjos Vigilantes e Mulheres Desveladas...p.
55-56. E também o texto de Vanderkam: VANDERKAM, James C. Enoch, a mam... 173-180.
[2] Para
maiores referencias da tradição dos Vigilantes no gnosticismo, ver: STROUMSA,
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