sábado, 16 de setembro de 2017

Um Apocalipse no Antigo Testamento.

O gênero literário apocalíptico, abrange um conjunto de literaturas muito maior do que estamos acostumados. Logo que citamos a palavra apocalipse vem imediatamente em nossa mente o Apocalipse de João no Novo Testamento, mas a literatura apocalíptica precede o cristianismo.  A ideia de que existe uma classe de escritos que podem ser rotulados “apocalípticos” é bastante aceita desde 1832 quando Friedrich Lücke[1] publicou o seu primeiro estudo sobre o assunto. Desde então estudos começaram a ser realizados nos livros 1 Enoque, A ascensão de Isaias, 4 Esdras, oráculos Sibilinos, 2 e 3 Baruc, 2 Enoque, Apocalipse de Abraão e o Testamento de Abraão, todos considerados obras apocalíticas judaicas não inclusa no cânon do Antigo Testamento.

No Antigo Testamento temos diversos textos escatológicos, podemos citar o livro do profeta Isaias capítulo 24, Zacarias e no livro de Joel. Mas, é no livro de Daniel[2] que encontramos todos os elementos constitutivo do gênero literário apocalítico. Não no livro como um todo, isso porque o livro de Daniel pode ser dividido em duas partes; a primeira parte são as narrativas da corte e a segunda parte o Apocalipse de Daniel.

As narrativas da corte fornecem o ponto de partida para o Apocalipse, elas circulavam de forma oral entre as comunidades que retornaram do exilio. Essas narrativas tentam mostrar para uma comunidade da diáspora, ou pelo menos que estavam fora da sua terra, como manter a fé longe de casa.

Vejam que temos seis histórias do capítulo 1 ao capítulo 6 de Daniel;
Capítulo 1 - Os amigos resistem na corte da Babilônia;
Capítulo 2 – Nabucodonosor sonha com uma estátua;
Capítulo 3 – Os amigos na fornalha de fogo;
Capítulo 4 – Nabucodonosor é castigado;
Capítulo 5 – O castigo de Belsazar
Capítulo 6 – Na cova dos leões.

Cada uma dessas histórias de Daniel tem como pano de fundo o mesmo tema. Ou seja, como eu posso manter a minha fidelidade a YHVH longe da minha terra? Sendo Daniel personagem ou as vezes os seus amigos, mas independente dos personagens as histórias têm o mesmo tema, normalmente são judeus piedosos que tentam subsistir em termos de identidade judaica, e manter a fé.  

Percebe-se que nas narrativas da corte que os monarcas estrangeiros (babilônico, persa e helenistas) se tomam aliados, isso porque nas narrativas da corte esses judeus estão fora de casa e tem que sobreviver, e como eles sobrevivem, sendo súditos fiéis e evitando contraria-los. Nabucodonosor se torna amigo de Daniel, faz o bem a ele, assim como os demais monarcas. Collins afirma, que os contos de Daniel pululam de problemas históricos. Nestes contos Daniel é em primeiro lugar um interprete de sonhos. Posteriormente, em Daniel 7-12, ele é o próprio sonhador.

A segunda parte do livro ocorre dos capítulos 7 a 12, nestes capítulos os monarcas já não são aliados. O tema agora já não é mais como sobreviver na diáspora, o tema agora é o fim do mundo está próximo, poderíamos dar como tema: A última perseguição já começou – o fim está próximo. Então os capítulos 7, 8, 9, 10, 11 e 12 do livro de Daniel, manifestam uma ansiedade escatológica que você não encontra nos anteriores. Os aspectos literários também são diferentes, por isso, os autores costumam chamar a porção de Daniel de 7 a 12 de Apocalipse de Daniel.  Ou melhor do capitulo 7 ao 12 temos 4 apocalipses, sendo:
Capítulo 7 – Os quatro animais;
Capítulo 8 – O carneiro e o bode;
Capítulo 9 – As Setentas semanas
Capítulos 10 -12 – A revelação histórica do anjo.

O capítulo 7 é um apocalipse isolado, Daniel 8 é um apocalipse que retomou Daniel 7, então as histórias dos quatro animais monstruosos que você encontra é o apocalipse primordial de Daniel, essa história tem como pano de fundo os capítulos de 1 a 6, mas é outro contexto histórico. Nós estamos olhando aqui para o segundo século a.C., durante o reinado do monarca helenista Antíoco Epífanes que instaura um conflito com a perseguição de judeus piedosos e a abominação do Templo culminando com a revolta dos Macabeus (encontramos essas histórias nos livros de 1 e 2 Macabeus).

O que esse apocalipse faz, ele descreve o que falta para o final do mundo chegar, na figura dos quatro animais. Uma chave para compreender quando o final dos tempos se manifesta. Segundo Daniel 7 os quatro animais formam uma narrativa histórica, simbólica que toma elementos do presente e também projeta para o futuro.

O capítulo 8 foi escrito um bom tempo depois do capítulo 7, a história do carneiro e do bode, desenvolve o contexto de Daniel 7 a imagem do final dos tempos agora na figura do carneiro e do bode. São figuras que serão familiares a nossa leitura por causa do Novo Testamento no Apocalipse de João. As figuras são animalescas que representam pessoas que se opõe a Deus e que estão para ser destruídas no final dos tempos, final esse que está próximo.

Daniel 9 a história das setenta semanas, também bem conhecida entre nós, vai tratar do mesmo assunto, ou seja, o final dos tempos está para chegar. Trata-se de uma reflexão sobre a história na forma das setentas semanas de Jeremias. Alguns autores chamam Daniel 9 de um midraxe de Jeremias.

E por fim, Daniel 10-12, chamamos de revelação histórica porque o anjo chega para Daniel e diz vou revelar para você aquilo que está para acontecer em breve. Trata-se de uma revelação escatológica que tenta narrar os eventos históricos para o personagem da história que é Daniel.

Há necessidade de um breve comentário sobre os capítulos 13 e 14 do livro de Daniel. Esses capítulos somente são encontrados na versão católica romana e não nas Bíblias protestantes. O capítulo 13, conta a história da bela Suzana e como ela se livrou do falso testemunho de dois anciãos, claro que o livramento se dá devido a sabedoria e inteligência do jovem Daniel. O capítulo 14 temos duas histórias; na primeira o jovem Daniel desmascara os sacerdotes de Bel, mata seus sacerdotes e destrói esse falso deus; na segunda o jovem Daniel sem usar de nenhuma arma explode o dragão que é adorado pelos babilônios. Esses dois capítulos lembram a primeira parte do livro de Daniel que fala sobre as narrativas da corte.

Temos dois elementos para guardar nestes apocalipses, elementos esses que serão usados várias vezes nos apocalipses posteriores: um personagem que é o adversário escatológico, o Antíoco Epífanes que é o que chamamos de Anticristo, é um personagem que se opõe e persegue o povo de Deus e que será destruído no final por um enviado de Deus, um messias ou pelo próprio Deus. É o adversário dos finais dos tempos, e esse elemento está em torno da narrativa do Templo por ter profanado o Templo[3]. Quando encontramos no Novo Testamento a imagem do anticristo geralmente essa imagem gira em torno do Templo acusando a profanação que foi aquilo que Antíoco Epífanes fez.

E a outra figura que precisamos tomar de Daniel, figura essa será apropriada nos textos posteriores do filho do Homem e do final propriamente dito. Então são dois aspectos que precisamos observar um é o anticristo o adversário escatológico e a adoração a esse personagem no Templo e o outro é o filho do Homem e o final dos tempos. Estes são os elementos que você tem em Daniel e pode rastreá-los nos apocalipses posteriores.

Bibliografia:
COLLINS, JOHN.J – A Imaginação Apocalíptica, uma introdução a apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus. 2010.
Anotações da aula do Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda sobre Mito, Metáfora e História na Linguagem Apocalíptica.



[1] F.L¨Luche, Versuch einer vollständigen Einleitung in die Offnbarung Johannis  und in die gesamte apokalyptsche Literatur (Bonn: Weber, 1832)
[2] Veja o post de “Daniel, autor, texto e contexto”, em meu blog: http://prwneves.blogspot.com.br/2017/05/daniel-autor-texto-e-contexto.html

[3] Leia no blog “O Sermão Profético de Jesus”: http://prwneves.blogspot.com.br/2017/09/

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O Sermão Profético de Jesus

Um dos textos apocalípticos no Novo Testamento é o Sermão Profético de Jesus que aparece nos Evangelhos sinóticos de Marcos 13, Mateus 24 e Lucas 21.  A história em todos os Evangelhos vai ser a mesma, Jesus passa pelo Templo e comenta algo com os discípulos.

“E, saindo ele do templo, disse-lhe um dos seus discípulos: Mestre, olha que pedras, e que edifícios! E, respondendo Jesus, disse-lhe: Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada. E, assentando-se ele no Monte das Oliveiras, defronte do templo, Pedro, e Tiago, e João e André lhe perguntaram em  particular: Dize-nos, quando serão essas coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem para se cumprir”. Marcos 13:1-4

Após a admiração dos discípulos a respeito da grandeza do Templo eles dizem “Mestre, olha que pedras e que edifícios”, Jesus imediatamente faz uma declaração surpreendente “Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada.”  Na sequência, o grupo caminha para o Monte das Oliveiras, quando alguns discípulos o chamam em particular e lhe perguntam, Mateus 24.3;

 “E, estando assentado no Monte das Oliveiras, chegaram-se a ele os seus discípulos em particular, dizendo: Dize-nos, quando serão essas coisas, e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo ?” 

Observamos que são duas perguntas que os discípulos querem saber: A primeira é o que são “essas coisas”. “Essas coisas” faz referência a destruição do Templo, não ficará pedra sobre pedra, tudo será destruído. E a segunda pergunta é “que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo? ”. Todo o restante do sermão profético de Jesus é o desdobramento dessas duas questões.
Na versão dos evangelistas Marcos, Mateus e Lucas, Jesus responde quando “essas coisas” acontecerão, e também responde sobre “que sinal haverá” associando a vinda do filho do Homem e a sua parusia. Duas questões, duas respostas.

Ao responder, a primeira pergunta, sobre a destruição do Templo, Jesus relaciona o evento com as palavras do livro de Daniel a respeito do filho da iniquidade, do anticristo, citando Antíoco Epífanes e chamando-o de abominação da abominação, que é o anticristo o adversário escatológico que não aparecem nos textos do Evangelho, mas está no livro de Daniel em diversas formas; o bode que fala blasfêmia, o chifre de blasfêmia, essas figuras estão vinculadas com a abominação do Templo daquela época, entre os anos 167 e 164 a.C, durante o período de conflito com os Macabeus. E aqui no sermão profético de Jesus há um vínculo entre a queda do Templo e a abominação do Templo citada no livro de Daniel.

Para uma melhor compreensão, cabe lembrar que para entendermos o texto em si, precisamos fazer duas leituras; a primeira uma leitura sicrônica, que é o momento em que o evento (fato) está acontecendo; e a segunda uma leitura diacrônica, o tempo que o autor escreveu o Evangelho que pode ser 30, 40, 50 anos depois ou até mais. A comunidade marcana escreve o seu Evangelho durante o período de guerra judaica-romana e as comunidades mateana e lucana após o evento da guerra e a destruição do Tempo, ocorrida entre 66 e 70 da nossa era pelo general Tito. Essa guerra judaica-romana fica muito clara nesses textos que citam a destruição do Templo. Guerra essa que culminou com a destruição do Templo e de Jerusalém e fornece o contexto desses textos neotestamentária.

A outra pergunta dos discípulos, referente a volta de Jesus a sua parusia, ela também é respondida com as palavras de Daniel a respeito do filho do Homem. O filho do Homem e o filho do mundo (do livro de Daniel) estão relacionados, tanto aqui no sermão profético, quanto lá em Daniel. Então vejam, Daniel é retomado no discurso profético de Jesus, alguns autores chegam a argumentar que o sermão profético de Jesus é um sermão sobre Daniel. Assim como alguns comentam que Daniel é um midraxe de Jeremias, outros compreendem que o sermão profético é um midraxe de Daniel.
De qualquer maneira o sermão profético é um texto que surge no contexto da guerra, primeiro no Evangelho de Marcos, por se tratar do mais antigo, e depois, Mateus e Lucas que se apropriam do texto de Marcos com formas diferentes. Alguns autores chamaram essa narrativa como narrativas de guerra, por que? Porque ela surge no contexto da guerra. Então no momento em que a guerra está acontecendo o Evangelho surge, você pode ler o texto e imaginar o conflito que está acontecendo, neste caso o texto é a resposta para o confronto. E confronto aqui é contra o imperialismo romano, contra os exércitos imperiais de Roma. O general Tito, responsável pelo ataque à Jerusalém e pela destruição do Templo, num futuro próximo se tornará imperador de Roma e depois dele seu irmão Vespasiano.

Percebam que essas narrativas têm esse fundo que é o fundo do conflito, e no fundo do conflito os evangelistas retomam o Apocalipse de Daniel. Um para relacionar com o Templo outro para relacionar com a parusia.
Não estou dizendo nesse argumento que historicamente o Jesus histórico enquanto andava com seus discípulos não tenha pregado o sermão de Daniel ou não tenha dito essas palavras, o nosso argumento na interpretação desse texto é em outro sentido. Nosso interesse é mostrar os dois níveis de leitura dos Evangelhos; o primeiro o nível sincrônico o momento que Jesus está caminhando de lá para cá, a guerra ainda vai acontecer, Ele está pregando as suas mensagens aos discípulos. O segundo é que os Evangelhos foram escritos muito tempo depois, seus autores ou estão vivendo o impacto da guerra ou já passaram por esse impacto, essa leitura é o que chamamos de leitura diacrônica. Ou seja, precisamos olhar para o texto no tempo do autor do Evangelho. E no tempo do autor do Evangelho ele faz um sentido interessantíssimo para a comunidade, porque por meio dele a comunidade interpreta o próprio tempo.

Desta maneira chamo a atenção de vocês para os níveis de leitura, especialmente nessa narrativa que tenta explicar um conflito entre comunidades judaicas e o império Romano, com as suas consequências irreversíveis como por exemplo o número de mortes dos judeus. Esta guerra pode nos ajudar a entender os apocalipses do primeiro século posteriores a guerra, pois eles são o resultado da guerra, eles têm a guerra na memória. Entre eles podemos citar 4 Esdras, Apocalipse de Baruque e especialmente o Apocalipse de João. São textos escritos por judeus, são pseudônimos, porque olham para personagens do Antigo Testamento, assumem essa personalidade e escrevem como se estivesse lá.  E quais são os eventos históricos que encontraremos no 4 Esdras e em Baruque, é exatamente a guerra judaico-romana, a enorme mortandade de judeus no conflito e a demonização do Império Romano. E no futuro o Império Romano será o adversário a ser vencido.