O
gênero literário apocalíptico, abrange um conjunto de literaturas muito maior
do que estamos acostumados. Logo que citamos a palavra apocalipse vem
imediatamente em nossa mente o Apocalipse de João no Novo Testamento, mas a
literatura apocalíptica precede o cristianismo. A ideia de que existe uma classe de escritos
que podem ser rotulados “apocalípticos” é bastante aceita desde 1832 quando
Friedrich Lücke[1]
publicou o seu primeiro estudo sobre o assunto. Desde então estudos começaram a
ser realizados nos livros 1 Enoque, A ascensão de Isaias, 4 Esdras, oráculos
Sibilinos, 2 e 3 Baruc, 2 Enoque, Apocalipse de Abraão e o Testamento de Abraão,
todos considerados obras apocalíticas judaicas não inclusa no cânon do Antigo
Testamento.
No
Antigo Testamento temos diversos textos escatológicos, podemos citar o livro do
profeta Isaias capítulo 24, Zacarias e no livro de Joel. Mas, é no livro de
Daniel[2] que encontramos todos os
elementos constitutivo do gênero literário apocalítico. Não no livro como um
todo, isso porque o livro de Daniel pode ser dividido em duas partes; a
primeira parte são as narrativas da corte e a segunda parte o Apocalipse de
Daniel.
As
narrativas da corte fornecem o ponto de partida para o Apocalipse, elas
circulavam de forma oral entre as comunidades que retornaram do exilio. Essas
narrativas tentam mostrar para uma comunidade da diáspora, ou pelo menos que
estavam fora da sua terra, como manter a fé longe de casa.
Vejam
que temos seis histórias do capítulo 1 ao capítulo 6 de Daniel;
Capítulo
1 - Os amigos resistem na corte da Babilônia;
Capítulo
2 – Nabucodonosor sonha com uma estátua;
Capítulo
3 – Os amigos na fornalha de fogo;
Capítulo
4 – Nabucodonosor é castigado;
Capítulo
5 – O castigo de Belsazar
Capítulo
6 – Na cova dos leões.
Cada
uma dessas histórias de Daniel tem como pano de fundo o mesmo tema. Ou seja,
como eu posso manter a minha fidelidade a YHVH longe da minha terra? Sendo Daniel
personagem ou as vezes os seus amigos, mas independente dos personagens as
histórias têm o mesmo tema, normalmente são judeus piedosos que tentam
subsistir em termos de identidade judaica, e manter a fé.
Percebe-se que nas narrativas da corte que os
monarcas estrangeiros (babilônico, persa e helenistas) se tomam aliados, isso
porque nas narrativas da corte esses judeus estão fora de casa e tem que
sobreviver, e como eles sobrevivem, sendo súditos fiéis e evitando
contraria-los. Nabucodonosor se torna amigo de
Daniel, faz o bem a ele, assim como os demais monarcas. Collins afirma, que os
contos de Daniel pululam de problemas históricos. Nestes contos Daniel é em
primeiro lugar um interprete de sonhos. Posteriormente, em Daniel 7-12, ele é o
próprio sonhador.
A
segunda parte do livro ocorre dos capítulos 7 a 12, nestes capítulos os
monarcas já não são aliados. O tema agora já não é mais como sobreviver na
diáspora, o tema agora é o fim do mundo está próximo, poderíamos dar como tema:
A última perseguição já começou – o fim está próximo. Então os capítulos 7, 8,
9, 10, 11 e 12 do livro de Daniel, manifestam uma ansiedade escatológica que
você não encontra nos anteriores. Os aspectos literários também são diferentes,
por isso, os autores costumam chamar a porção de Daniel de 7 a 12 de Apocalipse
de Daniel. Ou melhor do capitulo 7 ao 12
temos 4 apocalipses, sendo:
Capítulo
7 – Os quatro animais;
Capítulo
8 – O carneiro e o bode;
Capítulo
9 – As Setentas semanas
Capítulos
10 -12 – A revelação histórica do anjo.
O
capítulo 7 é um apocalipse isolado, Daniel 8 é um apocalipse que retomou Daniel
7, então as histórias dos quatro animais monstruosos que você encontra é o
apocalipse primordial de Daniel, essa história tem como pano de fundo os
capítulos de 1 a 6, mas é outro contexto histórico. Nós estamos olhando aqui
para o segundo século a.C., durante o reinado do monarca helenista Antíoco
Epífanes que instaura um conflito com a perseguição de judeus piedosos e a
abominação do Templo culminando com a revolta dos Macabeus (encontramos essas
histórias nos livros de 1 e 2 Macabeus).
O
que esse apocalipse faz, ele descreve o que falta para o final do mundo chegar,
na figura dos quatro animais. Uma chave para compreender quando o final dos
tempos se manifesta. Segundo Daniel 7 os quatro animais formam uma narrativa
histórica, simbólica que toma elementos do presente e também projeta para o
futuro.
O
capítulo 8 foi escrito um bom tempo depois do capítulo 7, a história do
carneiro e do bode, desenvolve o contexto de Daniel 7 a imagem do final dos
tempos agora na figura do carneiro e do bode. São figuras que serão familiares
a nossa leitura por causa do Novo Testamento no Apocalipse de João. As figuras
são animalescas que representam pessoas que se opõe a Deus e que estão para ser
destruídas no final dos tempos, final esse que está próximo.
Daniel
9 a história das setenta semanas, também bem conhecida entre nós, vai tratar do
mesmo assunto, ou seja, o final dos tempos está para chegar. Trata-se de uma
reflexão sobre a história na forma das setentas semanas de Jeremias. Alguns
autores chamam Daniel 9 de um midraxe de Jeremias.
E
por fim, Daniel 10-12, chamamos de revelação histórica porque o anjo chega para
Daniel e diz vou revelar para você aquilo que está para acontecer em breve. Trata-se
de uma revelação escatológica que tenta narrar os eventos históricos para o
personagem da história que é Daniel.
Há
necessidade de um breve comentário sobre os capítulos 13 e 14 do livro de
Daniel. Esses capítulos somente são encontrados na versão católica romana e não
nas Bíblias protestantes. O capítulo 13, conta a história da bela Suzana e como
ela se livrou do falso testemunho de dois anciãos, claro que o livramento se dá
devido a sabedoria e inteligência do jovem Daniel. O capítulo 14 temos duas
histórias; na primeira o jovem Daniel desmascara os sacerdotes de Bel, mata
seus sacerdotes e destrói esse falso deus; na segunda o jovem Daniel sem usar
de nenhuma arma explode o dragão que é adorado pelos babilônios. Esses dois
capítulos lembram a primeira parte do livro de Daniel que fala sobre as narrativas
da corte.
Temos
dois elementos para guardar nestes apocalipses, elementos esses que serão
usados várias vezes nos apocalipses posteriores: um personagem que é o
adversário escatológico, o Antíoco Epífanes que é o que chamamos de Anticristo,
é um personagem que se opõe e persegue o povo de Deus e que será destruído no
final por um enviado de Deus, um messias ou pelo próprio Deus. É o adversário
dos finais dos tempos, e esse elemento está em torno da narrativa do Templo por
ter profanado o Templo[3]. Quando encontramos no
Novo Testamento a imagem do anticristo geralmente essa imagem gira em torno do
Templo acusando a profanação que foi aquilo que Antíoco Epífanes fez.
E
a outra figura que precisamos tomar de Daniel, figura essa será apropriada nos
textos posteriores do filho do Homem e do final propriamente dito. Então são
dois aspectos que precisamos observar um é o anticristo o adversário
escatológico e a adoração a esse personagem no Templo e o outro é o filho do
Homem e o final dos tempos. Estes são os elementos que você tem em Daniel e
pode rastreá-los nos apocalipses posteriores.
Bibliografia:
COLLINS,
JOHN.J – A Imaginação Apocalíptica, uma introdução a apocalíptica judaica. São
Paulo: Paulus. 2010.
Anotações
da aula do Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda sobre Mito, Metáfora e História na
Linguagem Apocalíptica.
[1] F.L¨Luche, Versuch einer vollständigen
Einleitung in die Offnbarung Johannis
und in die gesamte apokalyptsche Literatur (Bonn: Weber, 1832)
[2]
Veja o post de “Daniel, autor, texto e contexto”, em meu blog: http://prwneves.blogspot.com.br/2017/05/daniel-autor-texto-e-contexto.html