Por W.Neves
Nós
conhecemos os cinco primeiros livros da Bíblia, denominado de Pentateuco (ou os
cinco livros de Moisés) segundo o Cânon da Septuaginta cristianizada. São eles:
Gênesis, Êxodo, Levíticos, Números e Deuteronômio. Também conhecidos na Bíblia
Hebraica como Torah (Lei), conforme o Cânon massorético.
Em
uma breve exegese do Pentateuco, poderíamos dizer que, se considerarmos Gênesis
como um prólogo, os demais livros Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio
narram a história da vida de Moisés do seu nascimento (Ex 2) até a sua morte
(Dt 34). Tão logo se encerra a narrativa da vida dos patriarcas (Abraão,
Isaac e Jacó), o livro do Gênesis termina com o “Romance de José”, sua morte e
embalsamamento no Egito.
O
livro seguinte é o Êxodo, que narra a saída dos israelitas da terra do Egito e
será um tema central para o pensamento teológico veterotestamentário. O título
“Êxodo” (saída) provém dos tradutores gregos do AT, na Bíblia
Hebraica esse livro é denominado de “Shemot” (os nomes), mantendo o
costume que um livro seja designado por algumas das primeiras palavras que nele
figuram.
Enquanto
no livro de Gênesis a relação com Deus é feita por indivíduos (Noé, Abraão,
Jacó), no Êxodo o relacionamento é principalmente com um povo. Pode se
dizer que o livro de Êxodo marca o nascimento e a “Declaração de Independência”
do povo de Israel. Esse processo será conduzido pelo carismático Moisés,
vocacionado e comissionado por YHVH. Moisés será o protagonista principal dos
quatro últimos livros do Pentateuco, assumirá inúmeras funções no decorrer da
saga, será fundador, libertador, chefe, organizador do povo (Ex. 18), mediador
entre Deus e os homens (Ex. 20, 18-21), legislador (24,3.12), profeta, rei e
deus (E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por boca, e tu
lhe serás por Deus. Ex. 4.16).
Nosso
objetivo nesse breve estudo é analisar a figura emblemática desse Moisés
histórico e responder as seguintes perguntas: Por que escolher Moisés como
fundador e legislador de Israel? E quem foi Moisés?
Com
toda a probabilidade, a tradição de Israel conhecia um personagem denominado
Moisés. A Torah não fornece muitas informações a respeito de Moisés sob o ponto
de vista histórico. Para Jean-Louis Ska e outros pesquisadores, eles
definem esse personagem com uma única imagem, o Moisés bíblico é um gigante que
esconde para sempre o Moisés da história. (p.55, 2015).
Partindo
de uma exegese histórico-critica, vejamos o que a Bíblia nos ensina sobre
Moisés, do ponto de vista histórico.
“E
foi um homem da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu
e deu à luz um filho; e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não
podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a revestiu com
barro e betume; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à margem do rio”.
Ex. 2, 1-3
Segundo
a narrativa, Moisés é filho de pais pertencentes à tribo de Levi. O texto
afirma explicitamente que Moisés é o primogênito, uma afirmação que não condiz
com a referência de uma irmã velha. “De longe, uma irmã do menino observava
o que iria acontecer” (v.4).
Na
sequência, o menino é descoberto pela filha de Faraó que se enche de compaixão
pelo menino hebreu “E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas
passeavam, pela margem do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos, e enviou a
sua criada, que a tomou. E abrindo-a, viu ao menino e eis que o menino
chorava; e moveu-se de compaixão dele, e disse: Dos meninos dos hebreus é este.
(v. 5 e 6). Na sequência, a irmã volta à cena “Então a sua
irmã disse à filha de Faraó... (v.7).
Vamos
ler novamente o texto na integra:
“E foi um homem da casa de Levi
e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu e deu à luz um
filho; e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não
podendo, porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos, e a revestiu com
barro e betume; e, pondo nela o menino, a pôs nos juncos à margem do rio. E
sua irmã postou-se de longe, para saber o que lhe havia de acontecer (v4). E
a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam, pela
margem do rio; e ela viu a arca no meio dos juncos, e enviou a sua criada, que
a tomou. E abrindo-a, viu ao menino e eis que o menino chorava; e moveu-se de
compaixão dele, e disse: Dos meninos dos hebreus é este. Então
disse sua irmã à filha de Faraó: Irei chamar uma ama das hebreias, que crie
este menino para ti (v7)? Ex. 2:1-7.
Leia
novamente o mesmo texto sem os versículos 4 e 7 que estão em negrito.
Percebemos
que os versículos 4 e 7 introduzem uma irmã mais velha de Moisés. Por isso,
grande parte de exegetas entendem que a introdução da referência de uma irmã
mais velha de Moisés poderia ser um acréscimo de um escriba
posterior que quisesse destacar que Moisés não foi completamente abandonado por
sua família. Notem que no início da narrativa a “irmã” é anônima e permanecerá
anônima até o capítulo 6, somente então, serão apresentados Miriam e Aarão como
irmãos mais velhos de Moisés (Ex. 6, 20,26-27; 7,6; 15,20). Embora ambos não
tenham sido mencionados no relato do seu nascimento.
Voltando
a Êxodo 2 verso 10, diz que: sendo o menino já criado, é lhe dado um nome “E,
quando o menino já era grande, ela o trouxe à filha de Faraó, a qual o adotou;
e chamou-lhe Moisés, e disse: Porque das águas o tenho tirado” ( v.10).
A
filha de Faraó é quem dá o nome à criança, um nome egípcio e não
semita. O nome Moisés, ao contrário o que diz o versículo 10 não
significa “tirado das águas”. O nome egípcio MoiSéS é provavelmente um nome abreviado,
formado a partir da raiz MSS, e significa “filho de” ou “gerado por”. A mesma
raiz é encontrada nos nomes próprios de Ra-MSéS (filho/gerado
do deus Rá), de Tut-MoSiS (filho/gerado do
deus Tut), de Ath-MoSiS (filho/gerado do
deus Ath) conforme Gn 47,11; Ex 1,11; 12,37; Nm 33,3-5. Todavia,
para Jean-Louis Ska se Israel tivesse inventado o seu fundador, teria
certamente reservado para ele um nome semítico e não egípcio (2015, p.56).
Seus
pais são Amram e Jocabed (conf. Ex. 6.16-25). O pai, curiosamente, está ausente
da narrativa do nascimento e do abandono. O texto diz que a mãe (Jocabed) era
tia do pai (Anram), conf. Ex 6,20 “E Anram tomou por mulher a Joquebed,
sua tia”. Esse fato do ponto de vista legislativo, colocará Moisés
como filho de uma união proibida pelas leis levíticas. “Não descobrirás a
nudez da irmã de teu pai". (Lv 18.12-13). É interessante notar que o
fato de Moisés ser um levita, e a lei do incesto está contida, exatamente, no
livro do Levítico (FERNANDES, 2016, p. 181).
Após
o relato do nascimento, o início da vida de Moisés é muito conturbado, como
conturbada será a sua missão. Ele já nasce condenado a morte e viverá ameaçado
de morte tanto pelos egípcios como pelo seu próprio povo. A narrativa da ordem
de Faraó de matar os neonatos do sexo masculino significava reduzir e condenar
a mão de obra escrava ao envelhecimento. O que é pouco condizente com a
determinação de Faraó em manter essa mão de obra barata. Todavia, para
Jean-Louis Ska negar esse feito, tem sérias implicações teológicas, pois a
aparição de Moisés se dá exatamente no momento do infanticídio.
A
narrativa de Êxodo, após ele ter sido milagrosamente salvo, nada mais diz sobre
a infância e a juventude de Moisés. O nascimento de Moisés e sua milagrosa
salvação, representam uma forma de contestação a um decreto injusto. Essas
histórias de abandono e salvação milagrosa faz parte de esquemas conhecidos no
passado e usados com frequência, na antiguidade. É o caso de Sargão I, rei
acádio; Ciro II, rei persa; os fundadores de Roma, Rômulo e Remo; e José, filho
de Jacó que foi para o Egito e se tornou o segundo homem mais importante, e
Jesus Cristo, que também foi salvo, milagrosamente, por outro “José”, dito “seu
pai” e conseguiu ir para o Egito, escapando do massacre de Herodes. Em todos os
casos, existe o evento milagroso de crianças que abençoará os futuros
acontecimentos do seu povo.
Fernandes
(2016, p.184) comenta que segundo a lenda, Sargão foi um menino que também
nasceu no segredo e foi salvo pela mãe, uma sacerdotisa (Jocabed, mãe de
Moisés, era da tribo de Levi). Sargão foi encontrado por um carregador de água
(ou jardineiro) que o tirou das águas, Moisés também foi retirado das águas.
Sargão foi amado por Ishtar (deusa acadiana, era a mais célebre das deusas do
panteão mesopotâmico), Moisés foi encontrado e adotado pela filha de Faraó,
filha de um deus.
Vejamos
o texto:
“Sargão,
rei forte, rei de Akkad (Acádia, eu sou. A minha mãe era uma sacerdotisa, o meu
pai, não sei. A minha família paterna habita a região da montanha. A minha
cidade (de nascimento) é Azupiranu, que fica na margem do rio Eufrates. A minha
mãe, uma sacerdotisa, concebeu-me, em segredo. Ela colocou-me numa cesta de
junco, com betume ela calafetou a minha escotilha. Ela abandonou-me no rio do
qual eu não podia escapar. O rio levou-me até Aqqi. Aqqi, o carregador de água
ergueu-me quando mergulhou o balde. Aqqi, o carregador de água, criou-me como
sendo seu filho adotivo. Aqqi, o carregador de água, colocou-me a trabalhar no
seu jardim. Durante o meu trabalho no jardim, Ishtar amou-me de modo que
durante 55 anos governei como um rei” (citação resumida de A lenda de
Sargão, de Brain Lewis).
Isso
soa muito parecido com a narrativa sobre Moisés em Êxodo 2. Então a história de
Moisés foi plagiada da história de Sargão? Para Romer, a vita Mosis do
relato do nascimento de Moisés é construído da mesma maneira que a lenda do
grande rei Sargão de Akkad, traindo talvez a vontade de pôr em pé de igualdade
a figura ancestral à qual se refere o Israel real e o soberano unificador da
antiga Mesopotâmia. (2010, p.224). Se essa suposição for correta o fechamento
do texto de Êxodo, deve ter acontecido após o retorno da Babilônia.
Já
Ciro II, fundador do reino dos persas, era filho de Madane. Diz a lenda, que
ele foi subtraído dos braços de seus pais, e condenado à morte por Astiage, rei
dos Medos. Foi salvo por uma mulher chamada Cina (cão, animal sagrado
Irã). Até se tornar o grande Ciro rei dos persas. Vários exegetas
consideram a aproximação literária e cronológica persa com a formação das
tradições sobre Moisés pertinente. Lembrando que esse tipo de narrativa era
comum na antiguidade. Existem mais de trinta casos documentados, afirma
Fernandes.
Um
outro fato complicado, está no relacionamento de Moisés com os midianitas. Ver
Ex 2,15-21, após a fuga de Moisés do Egito e sua chegada em Madiã (ou Midiã).
Moisés casa-se com uma mulher estrangeira (Zípora) ao passo que a lei – que ele
mesmo promulgou – proíbe o casamento com estrangeiras:
“Nem
te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás
suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para
que servissem a outros deuses; e a ira do Senhor se acenderia contra vós, e
depressa vos consumiria” (Dt 7,3-4).
Moisés
permanece com os midianitas e está em relação com eles (Ex 2,15-16; 3,1; 18,1).
Embora, em outros textos, eles são cotados entre os mais detestáveis inimigos
de Israel.
“Porém
os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do SENHOR; e o SENHOR os
deu nas mãos dos midianitas por sete anos. E, prevalecendo a mão dos midianitas
sobre Israel, fizeram os filhos de Israel para si, por causa dos midianitas, as
covas que estão nos montes, as cavernas e as fortificações. Porque sucedia que,
semeando Israel, os midianitas e os amalequitas, e também os do oriente, contra
ele subiam. E punham-se contra ele em campo, e destruíam os frutos da terra,
até chegarem a Gaza; e não deixavam mantimento em Israel, nem ovelhas, nem
bois, nem jumentos. Porque subiam com os seus gados e tendas; vinham como
gafanhotos, em grande multidão que não se podia contar, nem a eles nem aos seus
camelos; e entravam na terra, para a destruir. Assim Israel empobreceu muito
pela presença dos midianitas; então os filhos de Israel clamaram ao Senhor” (cf.
Jz 6,1-6) “
Para
finalizar sua história, Moisés é proibido de entrar na terra prometida, e morre
fora dela (Dt 34,5). Diversos textos tentam explicar o motivo, mas nenhum deles
consegue de maneira satisfatória (Nm 20,1-13; Dt 1, 37-38; 3, 23-28;
4,21-22). Para Jean-Louis Ska, teria sido mais simples se a história
permitisse que Moisés colocasse os pés na terra prometida (2015, p.56). Segundo
a visão do historiador, Moisés histórico é uma figura que pertence ao deserto,
e não a terra prometida.
Notamos
que ao narrar a vida do Moisés histórico, todas as tradições foram reunidas em
um único relato. A questão da historicidade desses acontecimentos suscitou e
ainda suscita um amplo debate. Uma dificuldade considerável provém do fato de
que a redação de nossa principal fonte de informação, se desenvolveu vários
séculos depois dos acontecimentos. De fato, as fontes que serviram de base para
a redação da história de Moisés, foram provavelmente múltiplas, de modo que a
narrativa tal como está descrita poderia muito bem refletir um longo processo
de transmissão.
Para
Fernandes, a busca do “Moisés histórico” é uma tarefa privada de evidências. As
teorias a respeito devem, no fim, se render a um fato: não há compatibilidade
entre elas e a importância que o texto bíblico atribui a Moisés, que coincide
com os indícios do judaísmo e não com o Moisés que se deseja encontrar nas
teorias.
Referências
bibliográficas
CARNEIRO,
Marcelo; OTTERMANN, Monica e FIGUEIREDO, Telmo. Pentateuco – da Formação a
Recepção. Paulinas, 2016.
SKA,
Jean-Louis. O Antigo Testamento – Explicado aos que conhecem pouco ou nada a
respeito dele. Paulus, 2015.
RÖMER,
Thomas; MACCHI, Jean-Daniel e NIHAN Christophe. Antigo Testamento – História,
Escritura e Teologia. Loyola, 2010.