domingo, 12 de novembro de 2017

Misoginia Cósmica

A cada dia que passa, a mulher conquista espaços que durante muito tempo foram dominados pelos homens. Hoje, ela é chefe, líder, executiva, comandante e… pastora. Para uns, é natural e aceitável que elas estejam em posição de destaque, no mercado de trabalho, dentro das igrejas. Para outros, não.

Kemer[1] (p.104) explica que; a literatura judaico-cristã, como produto de seu tempo, apresentou uma diferenciação de gêneros como estabelecidos pela própria natureza ou por Deus, que acabaram relegando às mulheres limitadas atuações, ou, uma misoginia que perpassou a antiguidade, esteve presente no mundo medievo e até hoje permeia o imaginário de diversas culturas. Muitas vezes influenciadas por sociedades patriarcais misóginas que viam no corpo feminino um perigo indomesticável.

Parte desse ódio contra o feminino, acompanhou as culturas patriarcais para subordinar as mulheres e limitar-lhes o poder e autonomia. Além disso, a tradição judaica do segundo templo e as obras cristãs posteriores mostram como a mulher foi alvo de gratuito preconceito, chegando, em alguns momentos, a ser vista como uma aliada das forças malignas.

Um texto extra bíblico e veterotestamentários de tradição apocalíptica pode nos ajudar a entender essa questão. Chamado de Mito dos Vigilantes e atribuído ao I Henoc (ou Henoc Etiope) admitido ser do séc. III a.C., está preservado o Livro dos Vigilantes, nesse livro um grupo de seres angelicais nomeados como Vigilantes se atraiu pela beleza das filhas dos homens e conspirou entre si sob a liderança de Shemihazah, com o propósito de possuir as belas mulheres, o que resultou em catástrofes imensuráveis e irremediáveis desordem cósmica.

Um outro texto é Jubileus (sec. II a.C.), que reconta a história do Gênesis, e novamente aparecem os anjos suduzidos pela beleza das mulheres e como resultado de relações sexuais o nascimento de gigantes. Por isso, aumentando a maldade sobre a Terra e Deus mandou o diluvio na época de Noé.

A importância dada à narrativa dos vigilantes e de Jubileus, se percebe na presença desses mitos em grande parte da tradição judaica e, posteriormente, cristã. Seguindo seus rastros, alguns textos podem ser mapeados para percebemos como as imagens desse mito influenciaram para o medo e ódio contra a mulher.

Vejamos essa influência no Novo Testamento, usaremos como exemplo o versículo 1 Co 11,10 em seu texto original no grego.

δια τουτο οφειλει η γυνη εξουσιαν εχειν επι της κεφαλης δια τους αγγελους

Por isso deve a mulher autoridade ter sobre a cabeça por causa dos anjos (tradução literal).

A palavra autoridade no grego “exousia” (grifada acima) tem o sentido de autoridade, habilidade.

Agora vejamos o que diz a tradução da Bíblia Almeida Revisada, 

Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por causa dos anjos” 1Co 11.10.

Nesta tradução a palavra no grego εξουσιαν (exousia) é traduzida por “submissão”, ou seja, a mulher tinha habilidade, autoridade e licença para governar a igreja em pé de igualdade com os homens, agora segundo essa tradução, ela está submissa. Os “anjos” citados por Paulo faz menção ao mito dos Vigilantes de I Henoc.

Mas não para por aqui, vejamos o mesmo versículo na tradução da Bíblia Almeida Revista e Atualizada. 

“Por tanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade”. 

Percebemos que nesta tradução a submissão passa a ser visível, a Bíblia ARA acrescenta inoportunamente no texto original a palavra véu. No imaginário judaico-cristão, mostrar os cabelos era uma forma de sensualidade feminina. Neste caso, segundo o tradutor, usar véu é uma maneira de submissão.

Na Bíblia NTLH (Nova Tradução da Linguagem de Hoje), a situação da mulher piora de vez, vejamos 

Portanto, por causa dos anjos, a mulher deve por um véu na cabeça para mostrar que está debaixo da autoridade do marido” 1 Co 11,10. 

Nesta tradução, além do jugo do véu, ela ainda precisa estar debaixo da autoridade do marido (mais um acréscimo inexistente no original).  Entre outras palavras, aquela que não colocar o véu e não obedecer ao seu respectivo marido está em desacordo com a palavra de Deus.

Essa inabilidade na tradução desse versículo, ocasionou inúmeras interpretações equivocadas da palavra de Deus. A Bíblia é o sagrado e não cabe a nós discutirmos sobre o sagrado, mas neste caso precisamos reparar essa injustiça. Quantas vidas nasceram, viveram e morreram debaixo dessa submissão? E não foi esse o plano de Deus, para o criador não há separação entre homens e mulheres.

“Pois todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes.  Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Gálatas 3:27-28.

“É para que sejamos livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão”Gálatas 5:1





[1] TERRA, Kenner R. C. Misoginia cósmica na literatura judaico-cristã. In: Revista do Jesus Histórico, VIII: 15. Rio de Janeiro, 2015, p.103-109. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Comentário Exegético do Apocalipse de João 4 e 5 e Daniel 12

Na estrutura do Apocalipse de João o capítulo 1 funciona como um prólogo, o visionário João é arrebatado em espírito e tem uma audição com um ser celestial, o conteúdo dessas revelações fornecerão as bases das cartas as sete igrejas da Ásia, mencionadas nos capítulos 2 e  3.

No capítulo 4, 1-11 Aqui começa a revelação propriamente dita, o arrebatamento deixa a esfera terrestre e passa para a dimensão celestial. O quarto e quinto capítulo apresentam o cenário celestial das visões, Deus assentado no seu trono, junto dele o séquito celestial composto de vinte e quatro anciãos sentados em seus tronos e quatro animais que não descansavam nem de dia e nem de noite, glorificando a Deus cantando “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-poderoso, que era, e que é, e que há de vir”. Enquanto isso os anciãos prostrados o adoravam com mais doxologia.

Ao interpretar a visão, o visionário faz uso dos elementos conhecidos no judaísmo. Ao citar 4.2 “um trono posto no céu” João faz uma releitura de Is 6.1; Jr 17.12; Ez 1.26; 10.1 e Dn 7.9. Em Ap 4.5 ele relembra em Êxodo 19.16 o encontro de Moises com Deus no Sinai; ao citar nesse versículo “as sete lâmpadas de fogo” se reporta ao tabernáculo 2 Cr 4.20; Ez 1.13 e Zc 4.2.

O capítulo 5 é continuação do capítulo 4. O cenário é o mesmo, as personagens também. João tem a preocupação em descrever o que ocorre diante do trono. No versículo 1 aparece um livro é um livro especial, escrito dos dois lados e selado com sete selos, sinal da sua inviolabilidade. Ninguém é digno de abrir o livro e desatar os seus selos. João chora, muito. Até que alguém apresenta duas soluções messiânicas, entra em cena “o leão da tribo de Judá” e a “Raiz de Davi”. João olha procurando o leão, mas ele vê um cordeiro que foi morto. Pela primeira vez o visionário apresenta o “cordeiro” que tem na simbologia judaica dois significados: a) O cordeiro é pacifico. Eles esperavam um libertador guerreiro como Davi, um libertador nacional. Ao citar o cordeiro, João faz uma releitura de  Is 53.7 “como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a sua boca.” E b) O cordeiro é o substituto, na teologia judaica o cordeiro tomava o lugar do homem pecador; Gn 22 e Ex 12; Jo 1,29 “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.

O culto continua, com a entronização do Cordeiro, as doxologias são iniciadas pelos anciãos que se prostram em adoração, seguido pelos anjos ao redor do trono, a seguir pelos animais o número agora é de milhões de milhões e milhares de milhares. Até que o cosmo representado pelas criaturas que estão no céu, na terra, e embaixo da terra e no mar o adoram.

Estrutura proposta para essa perícope.
5.1:      Visão do trono.
5.2-3:   O rolo inviolável.
5.4-5:   Desespero do visionário.
5.6-7:   O Cordeiro que é digno.
5.8-14: Inicio do culto ao Cordeiro.
5.8:      Adoração dos vinte e quatro anciãos.
5.11:    Adoração das miríades de anjos.
5.13:    O cosmo se prostra diante da sua glória e o adora.

Comparando com o âmbito metafórico de Daniel 12 vemos que o Apocalipse de João capítulo 5 é uma releitura da promessa da ressurreição citada no versículo 2 de Daniel, “para todo aquele que se achar escrito no livro”. No versículo 9 esse mesmo livro é selado “ E ele disse: Vai, Daniel porque estas palavras estão fechadas e seladas até o fim dos tempos”. O fim dos tempos está agora sendo desvendado na revelação de Joao. O livro é o mesmo que foi selado e só pode ser aberto no fim dos tempos. Nele contém a vida e a morte, a história da humanidade, todos em todos os tempos ressuscitarão, uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno. Neste contexto lembramos a influência persa no judaísmo do segundo tempo com de dualidade, de vida e morte, juízo escatológico, finais dos tempos, julgamento final, aniquilamento do mal, felicidade eterna para os justos e a noção de ressurreição. Pensamentos muito comum no apocaliptismo extra canônico do judaísmo posterior.

O livro de Daniel versículo 13 fecha com uma dramática exclamação “vai até ao fim; porque repousarás e estarás na tua sorte, no fim dos dias”. É uma incógnita, a expressão estarás na tua sorte, é no mínimo desesperançosa. Entendo que o homem estava por sua própria conta. Talvez isso se deve ao fato do cumprimento da lei, como explica o livro de Romanos do capítulo 1 ao 7.

Essa desesperança também e demonstrada nos primeiros veículos do Apocalipse de João “quem é digno de abrir o livro e desatar os seus selos”. Por fim em João temos a resposta de todas as duvidas e perguntas da humanidade, não estamos por conta da nossa própria sorte (como em Daniel), o Cordeiro é digno de restaurar a humanidade caída.





sábado, 16 de setembro de 2017

Um Apocalipse no Antigo Testamento.

O gênero literário apocalíptico, abrange um conjunto de literaturas muito maior do que estamos acostumados. Logo que citamos a palavra apocalipse vem imediatamente em nossa mente o Apocalipse de João no Novo Testamento, mas a literatura apocalíptica precede o cristianismo.  A ideia de que existe uma classe de escritos que podem ser rotulados “apocalípticos” é bastante aceita desde 1832 quando Friedrich Lücke[1] publicou o seu primeiro estudo sobre o assunto. Desde então estudos começaram a ser realizados nos livros 1 Enoque, A ascensão de Isaias, 4 Esdras, oráculos Sibilinos, 2 e 3 Baruc, 2 Enoque, Apocalipse de Abraão e o Testamento de Abraão, todos considerados obras apocalíticas judaicas não inclusa no cânon do Antigo Testamento.

No Antigo Testamento temos diversos textos escatológicos, podemos citar o livro do profeta Isaias capítulo 24, Zacarias e no livro de Joel. Mas, é no livro de Daniel[2] que encontramos todos os elementos constitutivo do gênero literário apocalítico. Não no livro como um todo, isso porque o livro de Daniel pode ser dividido em duas partes; a primeira parte são as narrativas da corte e a segunda parte o Apocalipse de Daniel.

As narrativas da corte fornecem o ponto de partida para o Apocalipse, elas circulavam de forma oral entre as comunidades que retornaram do exilio. Essas narrativas tentam mostrar para uma comunidade da diáspora, ou pelo menos que estavam fora da sua terra, como manter a fé longe de casa.

Vejam que temos seis histórias do capítulo 1 ao capítulo 6 de Daniel;
Capítulo 1 - Os amigos resistem na corte da Babilônia;
Capítulo 2 – Nabucodonosor sonha com uma estátua;
Capítulo 3 – Os amigos na fornalha de fogo;
Capítulo 4 – Nabucodonosor é castigado;
Capítulo 5 – O castigo de Belsazar
Capítulo 6 – Na cova dos leões.

Cada uma dessas histórias de Daniel tem como pano de fundo o mesmo tema. Ou seja, como eu posso manter a minha fidelidade a YHVH longe da minha terra? Sendo Daniel personagem ou as vezes os seus amigos, mas independente dos personagens as histórias têm o mesmo tema, normalmente são judeus piedosos que tentam subsistir em termos de identidade judaica, e manter a fé.  

Percebe-se que nas narrativas da corte que os monarcas estrangeiros (babilônico, persa e helenistas) se tomam aliados, isso porque nas narrativas da corte esses judeus estão fora de casa e tem que sobreviver, e como eles sobrevivem, sendo súditos fiéis e evitando contraria-los. Nabucodonosor se torna amigo de Daniel, faz o bem a ele, assim como os demais monarcas. Collins afirma, que os contos de Daniel pululam de problemas históricos. Nestes contos Daniel é em primeiro lugar um interprete de sonhos. Posteriormente, em Daniel 7-12, ele é o próprio sonhador.

A segunda parte do livro ocorre dos capítulos 7 a 12, nestes capítulos os monarcas já não são aliados. O tema agora já não é mais como sobreviver na diáspora, o tema agora é o fim do mundo está próximo, poderíamos dar como tema: A última perseguição já começou – o fim está próximo. Então os capítulos 7, 8, 9, 10, 11 e 12 do livro de Daniel, manifestam uma ansiedade escatológica que você não encontra nos anteriores. Os aspectos literários também são diferentes, por isso, os autores costumam chamar a porção de Daniel de 7 a 12 de Apocalipse de Daniel.  Ou melhor do capitulo 7 ao 12 temos 4 apocalipses, sendo:
Capítulo 7 – Os quatro animais;
Capítulo 8 – O carneiro e o bode;
Capítulo 9 – As Setentas semanas
Capítulos 10 -12 – A revelação histórica do anjo.

O capítulo 7 é um apocalipse isolado, Daniel 8 é um apocalipse que retomou Daniel 7, então as histórias dos quatro animais monstruosos que você encontra é o apocalipse primordial de Daniel, essa história tem como pano de fundo os capítulos de 1 a 6, mas é outro contexto histórico. Nós estamos olhando aqui para o segundo século a.C., durante o reinado do monarca helenista Antíoco Epífanes que instaura um conflito com a perseguição de judeus piedosos e a abominação do Templo culminando com a revolta dos Macabeus (encontramos essas histórias nos livros de 1 e 2 Macabeus).

O que esse apocalipse faz, ele descreve o que falta para o final do mundo chegar, na figura dos quatro animais. Uma chave para compreender quando o final dos tempos se manifesta. Segundo Daniel 7 os quatro animais formam uma narrativa histórica, simbólica que toma elementos do presente e também projeta para o futuro.

O capítulo 8 foi escrito um bom tempo depois do capítulo 7, a história do carneiro e do bode, desenvolve o contexto de Daniel 7 a imagem do final dos tempos agora na figura do carneiro e do bode. São figuras que serão familiares a nossa leitura por causa do Novo Testamento no Apocalipse de João. As figuras são animalescas que representam pessoas que se opõe a Deus e que estão para ser destruídas no final dos tempos, final esse que está próximo.

Daniel 9 a história das setenta semanas, também bem conhecida entre nós, vai tratar do mesmo assunto, ou seja, o final dos tempos está para chegar. Trata-se de uma reflexão sobre a história na forma das setentas semanas de Jeremias. Alguns autores chamam Daniel 9 de um midraxe de Jeremias.

E por fim, Daniel 10-12, chamamos de revelação histórica porque o anjo chega para Daniel e diz vou revelar para você aquilo que está para acontecer em breve. Trata-se de uma revelação escatológica que tenta narrar os eventos históricos para o personagem da história que é Daniel.

Há necessidade de um breve comentário sobre os capítulos 13 e 14 do livro de Daniel. Esses capítulos somente são encontrados na versão católica romana e não nas Bíblias protestantes. O capítulo 13, conta a história da bela Suzana e como ela se livrou do falso testemunho de dois anciãos, claro que o livramento se dá devido a sabedoria e inteligência do jovem Daniel. O capítulo 14 temos duas histórias; na primeira o jovem Daniel desmascara os sacerdotes de Bel, mata seus sacerdotes e destrói esse falso deus; na segunda o jovem Daniel sem usar de nenhuma arma explode o dragão que é adorado pelos babilônios. Esses dois capítulos lembram a primeira parte do livro de Daniel que fala sobre as narrativas da corte.

Temos dois elementos para guardar nestes apocalipses, elementos esses que serão usados várias vezes nos apocalipses posteriores: um personagem que é o adversário escatológico, o Antíoco Epífanes que é o que chamamos de Anticristo, é um personagem que se opõe e persegue o povo de Deus e que será destruído no final por um enviado de Deus, um messias ou pelo próprio Deus. É o adversário dos finais dos tempos, e esse elemento está em torno da narrativa do Templo por ter profanado o Templo[3]. Quando encontramos no Novo Testamento a imagem do anticristo geralmente essa imagem gira em torno do Templo acusando a profanação que foi aquilo que Antíoco Epífanes fez.

E a outra figura que precisamos tomar de Daniel, figura essa será apropriada nos textos posteriores do filho do Homem e do final propriamente dito. Então são dois aspectos que precisamos observar um é o anticristo o adversário escatológico e a adoração a esse personagem no Templo e o outro é o filho do Homem e o final dos tempos. Estes são os elementos que você tem em Daniel e pode rastreá-los nos apocalipses posteriores.

Bibliografia:
COLLINS, JOHN.J – A Imaginação Apocalíptica, uma introdução a apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus. 2010.
Anotações da aula do Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda sobre Mito, Metáfora e História na Linguagem Apocalíptica.



[1] F.L¨Luche, Versuch einer vollständigen Einleitung in die Offnbarung Johannis  und in die gesamte apokalyptsche Literatur (Bonn: Weber, 1832)
[2] Veja o post de “Daniel, autor, texto e contexto”, em meu blog: http://prwneves.blogspot.com.br/2017/05/daniel-autor-texto-e-contexto.html

[3] Leia no blog “O Sermão Profético de Jesus”: http://prwneves.blogspot.com.br/2017/09/

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O Sermão Profético de Jesus

Um dos textos apocalípticos no Novo Testamento é o Sermão Profético de Jesus que aparece nos Evangelhos sinóticos de Marcos 13, Mateus 24 e Lucas 21.  A história em todos os Evangelhos vai ser a mesma, Jesus passa pelo Templo e comenta algo com os discípulos.

“E, saindo ele do templo, disse-lhe um dos seus discípulos: Mestre, olha que pedras, e que edifícios! E, respondendo Jesus, disse-lhe: Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada. E, assentando-se ele no Monte das Oliveiras, defronte do templo, Pedro, e Tiago, e João e André lhe perguntaram em  particular: Dize-nos, quando serão essas coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem para se cumprir”. Marcos 13:1-4

Após a admiração dos discípulos a respeito da grandeza do Templo eles dizem “Mestre, olha que pedras e que edifícios”, Jesus imediatamente faz uma declaração surpreendente “Vês estes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada.”  Na sequência, o grupo caminha para o Monte das Oliveiras, quando alguns discípulos o chamam em particular e lhe perguntam, Mateus 24.3;

 “E, estando assentado no Monte das Oliveiras, chegaram-se a ele os seus discípulos em particular, dizendo: Dize-nos, quando serão essas coisas, e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo ?” 

Observamos que são duas perguntas que os discípulos querem saber: A primeira é o que são “essas coisas”. “Essas coisas” faz referência a destruição do Templo, não ficará pedra sobre pedra, tudo será destruído. E a segunda pergunta é “que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo? ”. Todo o restante do sermão profético de Jesus é o desdobramento dessas duas questões.
Na versão dos evangelistas Marcos, Mateus e Lucas, Jesus responde quando “essas coisas” acontecerão, e também responde sobre “que sinal haverá” associando a vinda do filho do Homem e a sua parusia. Duas questões, duas respostas.

Ao responder, a primeira pergunta, sobre a destruição do Templo, Jesus relaciona o evento com as palavras do livro de Daniel a respeito do filho da iniquidade, do anticristo, citando Antíoco Epífanes e chamando-o de abominação da abominação, que é o anticristo o adversário escatológico que não aparecem nos textos do Evangelho, mas está no livro de Daniel em diversas formas; o bode que fala blasfêmia, o chifre de blasfêmia, essas figuras estão vinculadas com a abominação do Templo daquela época, entre os anos 167 e 164 a.C, durante o período de conflito com os Macabeus. E aqui no sermão profético de Jesus há um vínculo entre a queda do Templo e a abominação do Templo citada no livro de Daniel.

Para uma melhor compreensão, cabe lembrar que para entendermos o texto em si, precisamos fazer duas leituras; a primeira uma leitura sicrônica, que é o momento em que o evento (fato) está acontecendo; e a segunda uma leitura diacrônica, o tempo que o autor escreveu o Evangelho que pode ser 30, 40, 50 anos depois ou até mais. A comunidade marcana escreve o seu Evangelho durante o período de guerra judaica-romana e as comunidades mateana e lucana após o evento da guerra e a destruição do Tempo, ocorrida entre 66 e 70 da nossa era pelo general Tito. Essa guerra judaica-romana fica muito clara nesses textos que citam a destruição do Templo. Guerra essa que culminou com a destruição do Templo e de Jerusalém e fornece o contexto desses textos neotestamentária.

A outra pergunta dos discípulos, referente a volta de Jesus a sua parusia, ela também é respondida com as palavras de Daniel a respeito do filho do Homem. O filho do Homem e o filho do mundo (do livro de Daniel) estão relacionados, tanto aqui no sermão profético, quanto lá em Daniel. Então vejam, Daniel é retomado no discurso profético de Jesus, alguns autores chegam a argumentar que o sermão profético de Jesus é um sermão sobre Daniel. Assim como alguns comentam que Daniel é um midraxe de Jeremias, outros compreendem que o sermão profético é um midraxe de Daniel.
De qualquer maneira o sermão profético é um texto que surge no contexto da guerra, primeiro no Evangelho de Marcos, por se tratar do mais antigo, e depois, Mateus e Lucas que se apropriam do texto de Marcos com formas diferentes. Alguns autores chamaram essa narrativa como narrativas de guerra, por que? Porque ela surge no contexto da guerra. Então no momento em que a guerra está acontecendo o Evangelho surge, você pode ler o texto e imaginar o conflito que está acontecendo, neste caso o texto é a resposta para o confronto. E confronto aqui é contra o imperialismo romano, contra os exércitos imperiais de Roma. O general Tito, responsável pelo ataque à Jerusalém e pela destruição do Templo, num futuro próximo se tornará imperador de Roma e depois dele seu irmão Vespasiano.

Percebam que essas narrativas têm esse fundo que é o fundo do conflito, e no fundo do conflito os evangelistas retomam o Apocalipse de Daniel. Um para relacionar com o Templo outro para relacionar com a parusia.
Não estou dizendo nesse argumento que historicamente o Jesus histórico enquanto andava com seus discípulos não tenha pregado o sermão de Daniel ou não tenha dito essas palavras, o nosso argumento na interpretação desse texto é em outro sentido. Nosso interesse é mostrar os dois níveis de leitura dos Evangelhos; o primeiro o nível sincrônico o momento que Jesus está caminhando de lá para cá, a guerra ainda vai acontecer, Ele está pregando as suas mensagens aos discípulos. O segundo é que os Evangelhos foram escritos muito tempo depois, seus autores ou estão vivendo o impacto da guerra ou já passaram por esse impacto, essa leitura é o que chamamos de leitura diacrônica. Ou seja, precisamos olhar para o texto no tempo do autor do Evangelho. E no tempo do autor do Evangelho ele faz um sentido interessantíssimo para a comunidade, porque por meio dele a comunidade interpreta o próprio tempo.

Desta maneira chamo a atenção de vocês para os níveis de leitura, especialmente nessa narrativa que tenta explicar um conflito entre comunidades judaicas e o império Romano, com as suas consequências irreversíveis como por exemplo o número de mortes dos judeus. Esta guerra pode nos ajudar a entender os apocalipses do primeiro século posteriores a guerra, pois eles são o resultado da guerra, eles têm a guerra na memória. Entre eles podemos citar 4 Esdras, Apocalipse de Baruque e especialmente o Apocalipse de João. São textos escritos por judeus, são pseudônimos, porque olham para personagens do Antigo Testamento, assumem essa personalidade e escrevem como se estivesse lá.  E quais são os eventos históricos que encontraremos no 4 Esdras e em Baruque, é exatamente a guerra judaico-romana, a enorme mortandade de judeus no conflito e a demonização do Império Romano. E no futuro o Império Romano será o adversário a ser vencido.



domingo, 11 de junho de 2017

Fundamentalismo e seus Pressupostos no Protestantismo Brasileiro


O protestantismo tem na Bíblia a sua razão de ser. Ela é a “única regra de fé e prática”, e esse princípio tem uma série de desdobramentos. O texto sagrado tem a primazia na Igreja e a prédica é o ponto alto do culto cristão. Nisto todos concordam. Poderíamos também acrescentar que a Sagrada Escritura é sinônimo de relacionamento com Deus, daí o pregador pode ser medido pelo seu conhecimento bíblico. Lembremo-nos que somos herdeiros da Reforma, para nós [protestantes] a construção se dá a partir do texto bíblico, sem texto não há Protestantismo.
O reformador Martinho Lutero teve nas Sagradas Escrituras sua inspiração. Mas em nenhum momento a Bíblia ganhou um status de infalibilidade ou inerrância. Estes são conceitos posteriores do fundamentalismo. Segundo Dreher, Lutero via o Evangelho como anterior à Bíblia (cânon)[1]. Entende-se que a Bíblia não era o Evangelho, mas o que ela relata, sim, é Evangelho. Para Lutero, a mensagem do Evangelho vinha antes da Bíblia e não depois. Nesse sentido, portanto, a Bíblia continha a Palavra de Deus[2]. O mesmo não se aplica a João Calvino, que compreendia o texto bíblico como uma “lei da verdade”, concepção que irá ultrapassar suas ideias no desenvolver do Protestantismo fomentando uma relação com a Bíblia a partir da radicalidade do literalismo[3].
À procura de uma autoridade suprema e infalível, o Protestantismo buscou no texto bíblico a sua fonte. Em disputas com o liberalismo teológico europeu, o Protestantismo estadunidense formulou os fundamentos tendo como primeiro ponto “a inspiração e inerrância da Bíblia”. Estava aí a porta de entrada para o fundamentalismo, logo a Bíblia não contém erros em tudo que afirma[4].
A partir disso a Bíblia deixa de ser um registro da revelação para ser a própria revelação. Quanto àqueles que afirmam que a Bíblia contém a revelação, são qualificados como neo-ortodoxos ou pejorativamente de “hereges”.
Um exemplo disso é: a questão da revelação e sua relação com a Bíblia foi trabalhada por Karl Barth, que afirmava ser a Bíblia o testemunho da revelação de Deus[5]. Rudolf Bultmann foi mais além com sua demitologização – uma maneira de ver Deus no texto bíblico, mas não ficar espantando com o vocabulário mitológico e pré-científico[6]. Esses teólogos foram rejeitados e qualificados como hereges pela ortodoxia.
Mas, qual é a leitura bíblica evangelística que se prega hoje nos púlpitos brasileiros?
O protestantismo brasileiro é herdeiro dessa dicotomia Bíblia-revelação. A postura diante da Bíblia será marcada pelo radicalismo, pela cisão, pelas disputas ideológicas e de poder nas denominações do Protestantismo histórico, Pentecostais e Neo-pentecostais.
Rubem Alves[7]em sua critica diz que essa postura anula as mediações que a Bíblia tem em seu contexto: a leitura temporal da Bíblia, ou seja, uma leitura para o seu próprio tempo é reprimida; ocorre a destruição dos símbolos e mitos no texto; por fim, o livre-exame deixa de existir. Mendonça resume tudo na seguinte frase “a Bíblia ficou cativa no Protestantismo[8]”.
Para Paulo Nogueira, a leitura bíblica evangelística brasileira tem a sua origem no conservadorismo evangelístico americano do século XIX, nós sequer temos uma leitura evangélica. Uma constatação inicial: existe mais literatura fundamentalista traduzida do inglês do que literatura produzida no Brasil[9]. É a cultura da Rua Conde de Sarzedas (famosa em São Paulo por vender materiais evangélicos).
Durante uma aula de Ciências da Religião - Lato Sensu na UMESP, Nogueira expressou a seguinte ideia “basicamente as ideias que nos temos [se referindo ao protestantismo brasileiro] são ideias do evangelismo norte americano que é extremamente conservador e é do senso comum que combate as variações e os estudos bíblicos que procuram ver a Bíblia pela cultura, inclusive às questões emancipatórias literárias de grupos específicos que leem a Bíblia. Em seminários de teologia, tirando os que estão nas universidades e que são de instituições de tradição intelectual, onde há liberdade acadêmica efetiva, os seminários pequenos sofrem inquisição na medida em que você não está alinhado a essa linguagem teológica conservadora que importamos e que está arraigada no nosso universo evangélico. O não enquadramento a esse conservadorismo propicia inúmeros dissabores ministeriais como descredenciamento e coisas do gênero. É com base na aceitação ou não deste sistema de doutrinas (do qual acreditam que a Bíblia é fonte) que os fundamentalistas decidem se alguém é cristão ou não (portanto se a alma terá salvação ou perdição eterna). A função da Bíblia é dar informações (tiradas literalmente e segundo arranjos malabarísticos entre diferentes textos) para a construção deste edifício doutrinário”.
Para Nogueira, todo o edifício fundamentalista é sustentado não por uma sólida hermenêutica bíblica e sim por um sistema doutrinário. Este sistema doutrinário e a sua aceitação é que define se uma pessoa é fundamentalista ou não. Crer nas verdades fundamentais, a saber: a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a redenção pelo sangue de Cristo, sua ressurreição corpórea, a segunda vinda de Cristo, a pecaminosidade do homem e o juízo sobre o mundo, etc. fazem parte de um cristianismo saudável e não obrigatoriamente torna o crente em um fundamentalista.
Apresentando um quadro (caricatural) do fenômeno religioso e social chamado fundamentalismo. As características mais salientes [do fundamentalismo] são as seguintes:
(a) uma ênfase muito forte sobre a inerrância da Bíblia, [isto é,] ausência de toda sorte de erro;
(b) uma forte hostilidade contra a teologia moderna e contra os métodos, resultados e implicações do estudo moderno e crítico da Bíblia;
(c) uma convicção de que aqueles que não compartilham de seus pontos de vista não são realmente “verdadeiros cristãos” de maneira nenhuma.
Para Nogueira, o fato é que existe uma geração de pesquisadores que estão pensando as coisas de modo diferente, que estão voltando as suas comunidades e mudando o paradigma de quem estuda teologia perde a fé, muito pelo contrário, o estudo crítico da Bíblia ele não tira a fé, mas aumenta as experiências religiosas e o conhecimento baseado na verdade. Esses pesquisadores voltam as suas igrejas e trabalham para abrir o entendimento dos demais, não podemos no sec. XXI seguir com os paradigmas do sec. XIX.
Alguns teólogos vêm trabalhando para o encurtamento da distancia entre Deus e o ser humano em seus textos. Varias literaturas de autores sérios tem sido traduzidas no país, a proposta é buscar uma síntese entre transcendência e imanência onde a revelação vem de fora, mas encontra ressonância na pessoa. Partindo de eixos condutores, como a exegese contemporânea, a leitura histórico crítica, a arqueologia são estudos que contribui na solução de questões históricas bíblicas que até então eram inquestionáveis. A Bíblia narra a historia de um povo que viveu sua fé, que inclui naturalmente, vicissitudes, como tramas, conquistas, derrotas, alegrias, tristezas. Sua história foi ganhando corpo escrito depois do exílio babilônico. E se há revelação no texto, como há de fato, ela surgiu como consequência de um processo de fé que modelou seu pensamento e experiência[10]. O texto não surgiu como palavra feita e dada do nada e no vazio [como o livro dos Mormos], muito pelo contrário, o texto recolhe sagas, mitos, festas, lendas, folclore para dar claridade ao passado de Israel e sua experiência originária com o conhecido YHWH.
Dentro do imaginário religioso e cultural, a comunidade vivência a sua fé sem pretensão alguma de construir dogmas, ou fundamentalismo. O texto já é um produto revelacional e não, propriamente, revelação. A revelação não apareceu como palavra feita, como oráculo de uma divindade escutado por um vidente, mas como experiência viva.
O texto bíblico não esta pautado num fundamentalismo ou inerrância. Ele possi fragilidade, e está aí a graça de Deus. As contradições, as ambivalências, o caráter histórico vêm corroborar que o texto é humano, demasiadamente humano-divino.[11]









[1] Cf. DREHER, Martin N. Bíblia; suas leituras e interpretações na história do cristianismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006. p. 44.  
[2] Cf. TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Trad. Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE, 1988. p. 222.  
[3] Cf. ibid., p. 250. 
[4] Cf. HORDERN, William. Teologia protestante ao alcance de todos. 2. ed. Trad. Roque Monteiro de Andrade. Rio de Janeiro: JUERP, 1979. p. 70ss.  
[5]Cf. BARTH, Karl. Conceito dialético de revelação. In: FERREIRA, Júlio Andrade (org.). Antologia teológica. São Paulo: Fonte Editorial, 2005. p. 60ss.   
[6] Cf. BULTMANN, Rudolf. Demitologização; coletânea de ensaios. Trad. Walter Altmann e Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal, 1999.  
[7] Cf. ALVES, Rubem. Religião e repressão. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005. p. 115ss.  
[8] Cf. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. A Bíblia cativa, Cristo no céu e a Igreja ausente. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo: Umesp, ano IV, n. 6, p. 167-182, abr. 1989.  
[9] Paulo Roberto de Souza Nogueira é Prof.Dr. em Teologia e Professor titular de Apocaliptismo na UMESP
[10] Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. A revelação de Deus na realização humana. Trad. Afonso Maria Ligorio Soares. São Paulo: Paulus, 1995.  
[11] Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. A fragilidade de Deus – Uma compreensão da revelação de Deus em Andrés Torres Queiruga. In: SOTER (org.). Deus e vida; desafios, alternativas e o futuro da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 385-406.  

sábado, 27 de maio de 2017

O Dêutero-Isaías (Is 40-55)


A atividade profética do Dêutero-Isaías, começa com o “Livro da consolação de Israel” cap. 40, e é o título dado a segunda parte do livro de Isaías e inspirado nos primeiros versículos. A “consolação” é, com efeito, o principal tema desses capítulos, contrastando com os oráculos geralmente ameaçadores dos caps. 1-39 (do primeiro Isaías).

A pessoa

O Dêutero-Isaías, profeta anônimo do exílio, considerado por muitos como o maior profeta e o melhor poeta de Israel, não nos deixou um único dado sobre a sua vida. Apesar disso, alguns autores se empenharam em escrever a sua “biografia”. Muito se tem dito dele, e nada é totalmente seguro. Segundo alguns, nasceu em Babilônia e terminou ali a sua atividade profética; segundo outros, regressou a Jerusalém depois de 538 e lá continuou a sua pregação, recolhida atualmente nos cap. 56-66. Outros pensam que ele sempre viveu em Jerusalém ou em Judá; alguns até situaram a atividade dele na Fenícia ou no Egito. Afirmou-se que esteve na corte ou no acampamento de Ciro, que foi o primeiro missionário, que morreu martirizado, que sofreu uma doença grave e repugnante.
Tudo isso, que não passa de mera conjectura, demonstra que a “biografia” não deve ser o principal ponto de apoio para entender a obra do profeta. Nem sequer temos certeza do nome dele, embora alguns pensem que também ele se chamava Isaías.
Ainda que não exista unanimidade entre os comentaristas, a maioria aceita que este profeta atuou entre os desterrados da Babilônia na fase final do exílio. Baseando-nos na menção de Ciro, podemos datar o conteúdo destes capítulos entre o ano de 533, quando este começa suas campanhas triunfais, e o ano de 539, data da rendição da Babilônia. Antes de adentrar-nos na mensagem deste profeta, convém conhecer algo do momento histórico.

A época
Os anos centrais do século VI a.C. caracterizam-se pela rápida decadência do império neobabilônico e pelo aparecimento de uma nova potência, a Pérsia. Esta mudança de circunstâncias atinge o seu ponto culminante no ano de 539, quando Ciro entra triunfalmente na Babilônia.
A atividade do Dêutero-Isaías desenvolve-se nos anos anteriores a esta vitória. E é fácil imaginar a atitude dos desterrados durante os acontecimentos. A deportação de 597 nunca foi assimilada pelos judeus. Desde o primeiro momento esperaram a volta rápida à Palestina. Mas as ilusões caíram por terra em 586, quando um novo grupo de compatriotas foi transferido para “junto dos canais da Babilônia”. Algumas palavras do livro de Jeremias expressam perfeitamente os sentimentos de ódio que se foram aninhando neles (Jr 51,34-35). E, junto com o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida, as ânsias de libertação. Estes sentimentos vão acompanhados também de uma crise de fé e de esperança. As palavras do povo: “minha sorte está oculta ao Senhor, meu Deus ignora a minha causa” (Is 40,27), e as de Sião: “abandonou-me o Senhor, meu dono me esqueceu” (Is 49,14), refletem a decepção de muitos contemporâneos do profeta.
E isto é particularmente grave porque os anos que seguem vão levantar um sério problema teológico. As notícias que chegam sobre as vitórias de Ciro fazem esperar uma pronta libertação. O profeta confirma isto. Mas, quando ela se realizar, a quem deveremos atribuí-la: a Javé, deus de um pequeno grupo de exilados, ou a Marduc, deus do novo império? Nesta densa problemática humana e religiosa encaixa-se a mensagem do Dêutero-Isaías.

A mensagem
Os cap. 40-55 de Isaías são conhecidos como “livro da consolação”, devido às suas palavras iniciais: “consolai, consolai o meu povo, diz o
Senhor”. Este título não é inadequado, pois o tema do consolo volta a ressoar ao longo da obra (40,27-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-2, etc.), mostrando o amor e a preocupação de Deus pelo seu povo.
Em que consiste a consolação? O livro responde em duas etapas. Na primeira (cap. 40-48) nos diz que consiste na libertação do jugo babilônico e no regresso à terra prometida, uma espécie de segundo êxodo, semelhante ao primeiro, quando o povo saiu do Egito. A segunda parte (cap. 49-55) fala-nos da reconstrução e restauração de Jerusalém.
Na primeira etapa, a libertação está confiada a Ciro (41,1-5; 45,1-8;
48,12-15). O novo êxodo apresenta-se com milagres semelhantes ao antigo, embora seja mais grandioso, já que implica uma mudança total da natureza. Este tema do êxodo é denunciado já desde o princípio (40,3-5) e o milagre está centrado especialmente no aparecimento de água e de árvores no deserto (41,17-20; 43,19-21; 48,21).
Esta mensagem chocou-se com a falta de confiança do povo. É realmente Javé quem maneja os fios da história, ou os deuses pagãos?
Deve-se atribuir a ele o aparecimento prodigioso e irresistível de Ciro? Nesta primeira parte, o Dêutero-Isaías trata detalhadamente deste problema e polemiza contra os deuses e ídolos pagãs, impotentes e ineficazes (40,12-26; 41,21-29; 44,5-20; 46,1-7).
Na segunda parte (cap. 49-55), ao falar da reconstrução e restauração de Sião, Jerusalém aparece como mulher e como cidade. Como mulher, queixa-se da falta de filhos; como cidade, das suas ruías (cap. 54). Ambas as coisas serão superadas, graças ao sofrimento do Servo de Javé.
Tem-se dito com frequência que os cantos do Servo (42,l-4[5-9); 49,1-6; 50,4-9(10-11]; 52,13-53,12) não têm relação com o contexto. Isto me parece um grande erro. Este personagem desempenha na segunda parte um papel semelhante ao de Ciro na primeira. Ciro deve trazer a salvação temporal, a libertação do jugo da Babilônia. O Servo traz a salvação eterna, a consolação perpétua de Sião. Ciro baseia a sua atividade no poder das armas; o Servo - modelo de fraqueza e de não-violência – só conta com o poder do sofrimento. Ciro conquista a admiração e a glória. O Servo arrasta o desprezo de todos. Mas a dor e a morte dão-lhe a vitória definitiva, mais duradoura que a de Ciro.
Nestes cânticos atingimos um dos auges teológicos do Antigo Testamento. Nunca até então se havia falado tão claramente do valor redentor do sofrimento. Admitiam-se as dificuldades e contrariedades da vida encontrando nelas um sentido educativo, pedagógico, tencionado por Deus. Mas não se podia imaginar que o sofrimento tivesse um valor redentor em si mesmo. O Dêutero-Isaías proclama pela primeira vez que “se o grão de trigo cair na terra e morrer, produz muito fruto”. Não há nada de estranho em a Igreja primitiva conceder tão grande valor a estes poemas e ver antecipados neles a existência e o destino de Jesus.

No próximo post falaremos sobre a parte final do livro de Isaías, conhecido com Trito-Isaías (cap. 56-66).

Bibliografia
SICRE, José Luís. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Tradução de João Luís Baraúna. Petrópolis: Vozes 1996. P.310,313

Bíblia de Jerusalém. Paulus.

sábado, 6 de maio de 2017

Daniel, autor, texto e contexto.

E levantou-se, e foi; e eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinha ido a Jerusalém para adoração. Regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías.E disse o Espírito a Filipe: Chega-te, e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entente tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. Atos 8: 27-31

Daniel, autor, texto e contexto.

O livro de Daniel é uma literatura apocalíptica no Antigo Testamento, carregado de uma densidade imagética e metafórica que fascinam seus leitores e que se mal compreendidas ou tomadas literalmente, podem levar às mais fantásticas fabulações, sem nenhum fundamento na realidade. Durante a sua história ele teve várias interpretações, não apenas os movimentos exotéricos, milenaristas e apocalípticos usaram-no, como também, movimentos de resistência de governos autoritários encontraram no livro a base de suas convicções. Hoje em dia, ele ainda é muito pregado em cultos neo pentecostais, principalmente textos sensacionalistas como o “sonho do rei”, “a cova dos leões”, “a fornalha ardente” e a “estátua de Nabucodonosor”. Todavia, a linguagem metafórica, a visão do mundo dualista e mítica, a concepção de um Deus violento com seus anjos guerreiros, faz com que a maioria das pessoas tenham grandes dificuldades com a sua leitura.

Mas exatamente a sua leitura polissêmica a densidade imagética com seus elementos misteriosos é que atrai um grupo de leitor, este artigo não tem a presunção de interpretar o livro, mas que o leitor entenda o contexto em que o texto foi escrito.

Para entender Daniel, precisamos primeiro, entender o que é apocaliptismo. Os apocalipses são escritos típicos de tempos difíceis. Aparecem quando o povo é dominado por uma potência estrangeira que ameaça a sua sobrevivência. Normalmente esse tipo de dominação era: política, econômica e ideológica, procurando a todo custo restringir a consciência critica do povo dominado, a fim de que este não se rebele. Essa vigilância ideológica costumava influir na cultura e na religião. Apocalipse é uma literatura de resistência, dirigida para despertar o senso critico, estimular a resistência e incentivar a luta contra o opressor.  Este gênero vinha se formando entre os judeus, à medida que os sucessivos impérios do Oriente Médio sufocavam Israel com as suas dominações. As primeiras raízes do gênero apocalíptico são encontradas nos livros dos profetas Joel 3-4, Zacarias 12-14, Isaías 24-27; 34-35; 65-66 e outros. Contudo é no profeta Ezequiel, em pleno império babilônico, que começa a recorrer extensivamente às imagens e alegorias, falando de modo a ser entendido pelos exilados, mas não pelos opressores. Dessa forma não correndo perigo na sua integridade.

O gênero literário apocalipse é, antes de tudo, um livro de ficção. Que não se entenda mal: a ficção é usada pelo autor para falar de modo cifrado de situações perigosas e de projetos ousados, que poderiam facilmente acarretar ameaças para ele próprio e para seus leitores. Usa então o recurso de escrever um livro que pode simplesmente ser entendido como ficção, mas que os destinatários saberão decifrar e aplicar à realidade. Embora diferente o livro de Daniel, é parente próximo de outros livros de ficção, como Tobias, Judite e Ester – que se referem, de outro modo, ao mesmo contexto histórico ou a contextos históricos semelhantes.[1]

É uma característica do gênero literário apocalipse, tanto do Antigo como no Novo Testamento, se utilizar vários recursos como: pseudonimia, antedatação, sonhos, visões, imagens, alegorias, simbologia, e números. O autor costuma não assinar o livro, usando o recurso de um pseudônimo, que em geral costuma ser de uma pessoa famosa do passado, como Moisés, Henoc, os patriarcas, etc. Este recurso propiciava além da proteção ao autor de ser descoberto e punido, ao mesmo tempo, dava a impressão de antiguidade e peso ao escrito.

Por isso não há como dizer quem é o autor do livro de Daniel. O livro é muito complexo, e aponta para um complicado processo de formação, basta dizer que foi escrito em três línguas diferentes: hebraico (1,1-2, 4 a; 8-12), aramaico (2,4b-7,28) e grego (3,24-90; 13-14). Há muitas contradições, p.ex: em 1,18-19 o rei Nabucodonosor conhece Daniel e seus três companheiros; já em 2,25 eles são desconhecidos para o rei.  Todos estes fatos, as diversidades de línguas e as contradições, fazem pensar que o livro surgiu graças a uma coleta e costura de várias histórias orais ou já escritas, que foram reunidas por um editor final. Entende-se que o nome Daniel é sem duvida um pseudônimo inspirado no lendário Danel citado por Ezequiel 14, 14.20, ao lado de Noé e Jó. O nome hebraico também é muito parecido Danel significa (Deus julga) e Daniel (Deus é meu juiz). Neste caso o nome vem a calhar para um apocalipse que pretende apresentar o julgamento de Deus contra o opressor.

A pista para descobrir o editor(es)  final da obra, encontra-se no mesmo livro nos capítulos 8 a 12. Seus autores mostram a preocupação em reanimar a fé e a esperança em tempos de aflição, perseguição, ameaça de morte e perda de identidade. Para isso os seus autores recorrem a profecias do passado e reelaboram narrativas de cunho sapiencial para servirem aos seus propósitos no presente.

Comparado esses capítulos com os livros dos Macabeus, escritos depois, podemos ver que se referem aos mesmos acontecimentos que vão de 175 a 163 a.C., durante a dominação do rei selêucida Antíoco IV Epifânes sobre a Judéia. Esse é o tempo real do autor-redator-editor final. É provável, porém, que as partes em grego foram acrescidas (3,24-90; 13-14) elas se encontram na LXX[2] e na Bíblia católica. O acréscimo estão no capítulo 3 os versículos 24-90 conhecido como o cântico de Azarias na fornalha, a história de Suzana (Dn 13); de Bel e o dragão (Dn 14). O conteúdo da Bíblia Hebraica (Tanakn) é o equivalente ao nosso Antigo Testamento, porém com três divisões, a saber: Torah (O Pentateuco); Os Profetas (Neviim) e os Escritos (Ketuvim). O livro de Daniel na Bíblia Hebraica não é considerado profeta e sim histórico, por esse motivo fica na sua última sessão nos Escritos.

O contexto histórico é muito importante para entendermos o momento. Jerusalém caiu sob o domínio do rei babilônico Nabucodonosor em 586 a.C., com isso o reino de Judá deixa de existir. Israel já não existia há mais de 200 anos.  A Judéia passará pela dominação de vários impérios. Primeiro o babilônio, que se estende de 586 a 539 a.C., quando Ciro vence os babilônios e transforma a Judéia em colônia Persa. Até que no ano de 333 a.C. Alexandre Magno venceu os persas e consolidou o império grego. A dominação grega se estenderá com os selêucidas e os ptolomeus  (generais de Alexandre que tomam o poder após a sua morte) até o ano de 63 a.C. quando os romanos dominam a região.  

Por vários motivos linguísticos, históricos e histórico literário, os fatos narrados no livro de Daniel não podem ter surgido no século VI a.C., por volta de 586 a.C. O livro surge somente no século II, na época helenista, mais especificamente, entre 167 e 164 a.C. durante a revolta dos Macabeus. Nessa época, o povo de Israel sofria as consequências da helenização patrocinada pelos selêucidas. A cidade santa de Jerusalém, paulatinamente estava sendo transformada numa polis grega devido a medidas drásticas do rei selêucida Antíoco IV  Epífanes (175-164 a.C.). Durante o seu reinado, no ano de 169 a.C., ele saqueia o tesouro do templo de Jerusalém para financiar suas campanhas militares e manda esmagar brutalmente uma rebelião em Jerusalém. Dois anos depois ele conquista a cidade de Jerusalém num sábado e ordena matar e escravizar boa parte da população, e substitui a elite governante.

Antíoco impõe medidas religiosas, que interferiam nas normas alimentares judaicas, na observância do sábado e na prática da circuncisão medidas que atinge todas as camadas da população. Forçava aos perseguidos o consumo de carne de porco a fim de testar a sua lealdade ao sistema. E, conforme os testemunhos bíblicos, sua maior iniquidade consistiu na colocação de um estrado sobreposto ao altar de sacrifício do templo a fim de permitir sacrifício a Zeus (Dn 11,31; 9,27 “abominação desoladora”). Com essa medida o templo foi profanado, tornando impossível ao judeu a realização de sacrifícios.

Nasce então o livro de Daniel, os grupos responsáveis pelo conteúdo (Dn 11,33) encontram-se entre os perseguidos, alguns de seus membros sofreram martírio. Eles se autodenominam Maskilin (“sábios, entendido, esclarecidos Dn 11,33) eram, portanto, círculos zelosos apoiados por grupos liberais dentro do judaísmo. Temiam perder as suas tradições e a sua identidade e, por isso, estavam dispostos a defender a sua fé mesmo sob o risco da própria vida (2 Mac 7).

Qual a proposta do(s) autor (es)?

Compilando, adaptando tradições antigas e acrescentando materiais novos, o autor procurou tomar posição diante dos acontecimentos. Cansados da longa dominação e ameaçados da perda de identidade e da extinção. Produziram um livro em linguagem cifrada, compreensível para o seu povo, a fim de estimular a resistência e incitar a luta.
O gênero apocalíptico do livro de Daniel, não permite ao leitor moderno uma leitura fundamentalista e linear dos fatos, como muitos o fazem. Os recursos literários citados acima: da pseudonimia, da antedatação, dos sonhos, das visões sempre acompanhadas de anjos, das imagens, das alegorias, entre outras, apontam para descortinar e revelar um panorama polissêmico característico dos apocalipses (veja o Ap. de João). Sua leitura é simbólica e enigmática, Jerônimo dizia que “o apocalipse tem tantos mistérios quanto palavras”. A sua estrutura é dualista, com oposições e soluções radicais, tensão continua entre bem e mal; entre tempo primordial (tempo primeiro) e tempo escatológico (tempo final); ocultamento e revelação; resistência e esperança.

Sole Deo Glori


[1] STORNIOLO, Ivo, 
[2] Septuaginta