terça-feira, 26 de maio de 2015

Didaqué (ano 145 -150 d.C.)

Didaqué: A Instrução dos Doze Apóstolos

(Ano 145-150 DC)

O CAMINHO DA VIDA E O CAMINHO DA MORTE

CAPÍTULO I
1 Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois. 
2 Este é o caminho da vida: primeiro, ame a Deus que o criou; segundo, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você não quer que façam a você.
3 Este é o ensinamento derivado dessas palavras: bendiga aqueles que o amaldiçoam, reze por seus inimigos e jejue por aqueles que o perseguem. Ora, se você ama aqueles que o amam, que graça você merece? Os pagãos também não fazem o mesmo? Quanto a você, ame aqueles que o odeiam e assim você não terá nenhum inimigo.
4 Não se deixe levar pelo instinto. Se alguém lhe bofeteia na face direita, ofereça-lhe também a outra face e assim você será perfeito. Se alguém o obriga a acompanhá-lo por um quilometro, acompanhe-o por dois. Se alguém lhe tira o manto, ofereça-lhe também a túnica. Se alguém toma alguma coisa que lhe pertence, não a peça de volta porque não é direito.
5 Dê a quem lhe pede e não peças de volta pois o Pai quer que os seus bens sejam dados a todos. Bem-aventurado aquele que dá conforme o mandamento pois será considerado inocente. Ai daquele que recebe: se pede por estar necessitado, será considerado inocente; mas se recebeu sem necessidade, prestará contas do motivo e da finalidade. Será posto na prisão e será interrogado sobre o que fez... e daí não sairá até que devolva o último centavo. 
6 Sobre isso também foi dito: que a sua esmola fique suando nas suas mãos até que você saiba para quem a está dando.

CAPÍTULO II
1 O segundo mandamento da instrução é:
2 Não mate, não cometa adultério, não corrompa os jovens, não fornique, não roube, não pratique a magia nem a feitiçaria. Não mate a criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido.
3 Não cobice os bens alheios, não cometa falso juramento, nem preste falso testemunho, não seja maldoso, nem vingativo.
4 Não tenha duplo pensamento ou linguajar pois o duplo sentido é armadilha fatal.
5 A sua palavra não deve ser em vão, mas comprovada na prática.
6 Não seja avarento, nem ladrão, nem fingido, nem malicioso, nem soberbo. Não planeje o mal contra o seu próximo.
7 Não odeie a ninguém, mas corrija alguns, reze por outros e ame ainda aos outros, mais até do que a si mesmo.

CAPÍTULO III
1 Filho, procure evitar tudo aquilo que é mau e tudo que se parece com o mal.
2 Não seja colérico porque a ira conduz à morte. Não seja ciumento também, nem briguento ou violento, pois o homicídio nasce de todas essas coisas.
3 Filho, não cobice as mulheres pois a cobiça leva à fornicação. Evite falar palavras obscenas e olhar maliciosamente já que os adultérios surgem dessas coisas.
4 Filho, não se aproxime da adivinhação porque ela leva à idolatria. Não pratique encantamentos, astrologia ou purificações, nem queira ver ou ouvir sobre isso, pois disso tudo nasce a idolatria.
5 Filho, não seja mentiroso pois a mentira leva ao roubo. Não persiga o dinheiro nem cobice a fama porque os roubos nascem dessas coisas.
6 Filho, não fale demais pois falar muito leva à blasfêmia. Não seja insolente, nem tenha mente perversa porque as blasfêmias nascem dessas coisas.
7 Seja manso pois os mansos herdarão a terra.
8 Seja paciente, misericordioso, sem maldade, tranquilo e bondoso. Respeite sempre as palavras que você escutou.
9 Não louve a si mesmo, nem se entrege à insolência. Não se junte com os poderosos, mas aproxima dos justos e pobres.
10 Aceite tudo o que acontece contigo como coisa boa e saiba que nada acontece sem a permissão de Deus.

CAPÍTULO IV
1 Filho, lembre-se dia e noite daquele que prega a Palavra de Deus para você. Honre-o como se fosse o próprio Senhor, pois Ele está presente onde a soberania do Senhor é anunciada.
2 Procure estar todos os dias na companhia dos fiéis para encontrar forças em suas palavras.
3 Não provoque divisão. Ao contrário, reconcilia aqueles que brigam entre si. Julgue de forma justa e corrija as culpas sem distinguir as pessoas.
4 Não hesite sobre o que vai acontecer.
5 Não te pareças com aqueles que dão a mão quando precisam e a retiram quando devem dar.
6 Se o trabalho de suas mãos te rendem algo, as ofereça como reparação pelos seus pecados.
7 Não hesite em dar, nem dê reclamando porque, na verdade, você sabe quem realmente pagou sua recompensa. reverência, como à própria imagem de Deus.
12 Deteste toda a hipocrisia e tudo aquilo que não agrada o Senhor.
13 Não viole os mandamentos dos Senhor. Guarde tudo aquilo que você recebeu: não acrescente ou retire nada.
14 Confesse seus pecados na reunião dos fiéis e não comece a orar estando com má consciência. Este é o caminho da vida.

CAPÍTULO V
1 Este é o caminho da morte: primeiro, é mau e cheio de maldições - homicídios, adultérios, paixões, fornicações, roubos, idolatria, magias, feitiçarias, rapinas, falsos testemunhos, hipocrisias, coração com duplo sentido, fraudes, orgulho, maldades, arrogância, avareza, palavras obscenas, ciúmes, insolência, altivez, ostentação e falta de temor de Deus.
2 Nesse caminho trilham os perseguidores dos justos, os inimigos da verdade, os amantes da mentira, os ignorantes da justiça, os que não desejam o bem nem o justo julgamento, os que não praticam o bem mas o mal. A calma e a paciência estão longe deles. Estes amam as coisas vãs, são ávidos por recompensas, não se compadecem com os pobres, não se importam com os perseguidos, não reconhecem o Criador. São também assassinos de crianças, corruptores da imagem de Deus, desprezam os necessitados, oprimem os aflitos, defendem os ricos, julgam injustamente os pobres e, finalmente, são pecadores consumados. Filho, afaste-se disso tudo.

CAPÍTULO VI
1 Fique atento para que ninguém o afaste do caminho da instrução, pois quem faz isso ensina coisas que não pertencem a Deus.
2 Você será perfeito se conseguir carregar todo o jugo do Senhor. Se isso não for possível, faça o que puder.
3 A respeito da comida, observe o que puder. Não coma nada do que é sacrificado aos ídolos pois esse culto é destinado a deuses mortos.

A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA CAPÍTULO VII
1 Quanto ao batismo, faça assim: depois de ditas todas essas coisas, batize em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
2 Se você não tiver água corrente, batize em outra água. Se não puder batizar com água fria, faça com água quente.
3 Na falta de uma ou outra, derrame água três vezes sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
4 Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias.

CAPÍTULO VIII
1 Os seus jejuns não devem coincidir com os dos hipócritas. Eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana. Porém, você deve jejuar no quarto dia e no dia da preparação.
2 Não reze como os hipócritas, mas como o Senhor ordenou em seu Evangelho. Reze assim: "Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai nossa dívida, assim como também perdoamos os nossos devedores e não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal porque teu é o poder e a glória para sempre".
3 Rezem assim três vezes ao dia.

CAPÍTULO IX
1 Celebre a Eucaristia assim:
2 Diga primeiro sobre o cálice: "Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre".
3 Depois diga sobre o pão partido: "Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre.
4 Da mesma forma como este pão partido havia sido semeado sobre as colinas e depois foi recolhido para se tornar um, assim também seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino, porque teu é o poder e a glória, por Jesus Cristo, para sempre".
5 Que ninguém coma nem beba da Eucaristia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor pois sobre isso o Senhor disse: "Não dêem as coisas santas aos cães".

CAPÍTULO X
1 Após ser saciado, agradeça assim:
2 "Nós te agradecemos, Pai santo, por teu santo nome que fizeste habitar em nossos corações e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre.
3 Tu, Senhor onipotente, criaste todas as coisas por causa do teu nome e deste aos homens o prazer do alimento e da bebida, para que te agradeçam. A nós, orém, deste uma comida e uma bebida espirituais e uma vida eterna através do teu servo.
4 Antes de tudo, te agradecemos porque és poderoso. A ti, glória para sempre.
5 Lembra-te, Senhor, da tua Igrreja, livrando-a de todo o mal e aperfeiçoando-a no teu amor. Reúne dos quatro ventos esta Igreja santificada para o teu Reino que lhe preparaste, porque teu é o poder e a glória para sempre.
6 Que a tua graça venha e este mundo passe. Hosana ao Deus de Davi. Venha quem é fiel, converta-se quem é infiel. Maranatha. Amém."
7 Deixe os profetas agradecerem à vontade.

A VIDA EM COMUNIDADE CAPÍTULO XI
1 Se vier alguém até você e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido.
2 Mas se aquele que ensina é perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, não lhe dê atenção. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justiça e conhecimento do Senhor, você deve acolhê-lo como se fosse o Senhor.
3 Já quanto aos apóstolos e profetas, faça conforme o princípio do Evangelho.
4 Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor.
5 Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta.
6 Ao partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta.
7 Não ponha à prova nem julgue um profeta que fala tudo sob inspiração, pois todo pecado será perdoado, mas esse não será perdoado.
8 Nem todo aquele que fala inspirado é profeta, a não ser que viva como o Senhor. É desse modo que você reconhece o falso e o verdadeiro profeta.
9 Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa não deve comer dela. Caso contrário, é um falso profeta.
10 Todo profeta que ensina a verdade mas não pratica o que ensina é um falso profeta.
11 Todo profeta comprovado e verdadeiro, que age pelo mistério terreno da Igreja, mas que não ensina a fazer como ele faz não deverá ser julgado por você; ele será julgado por Deus. Assim fizeram também os antigos profetas.
12 Se alguém disser sob inspiração: "Dê-me dinheiro" ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue.

CAPÍTULO XII
1 Acolha toda aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a esquerda da direita.
2 Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entretanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias, se necessário.
3 Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe para se sustentar.
4 Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudência, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio.
5 Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha cuidado com essa gente!

CAPÍTULO XIII
1 Todo verdadeiro profeta que queira estabelecer-se em seu meio é digno do alimento.
2 Assim também o verdadeiro mestre é digno do seu alimento, como qualquer operário.
3 Assim, tome os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os dê aos profetas, pois são eles os seus sumos-sacerdotes.
4 Porém, se você não tiver profetas, dê aos pobres.
5 Se você fizer pão, tome os primeiros e os dê conforme o preceito.
6 Da mesma maneira, ao abrir um recipiente de vinho ou óleo, tome a primeira parte e a dê aos profetas.
7 Tome uma parte de seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses, conforme lhe parecer oportuno, e os dê de acordo com o preceito.

CAPÍTULO XIV
1 Reúna-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer após ter confessado seus pecados, para que o sacrifício seja puro.
2 Aquele que está brigado com seu companheiro não pode juntar-se antes de se reconciliar, para que o sacrifício oferecido não seja profanado. 
3 Esse é o sacrifício do qual o Senhor disse: "Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro porque sou um grande rei - diz o Senhor - e o meu nome é admirável entre as nações".

CAPÍTULO XV
1 Escolha bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres.
2 Não os despreze porque eles têm a mesma dignidade que os profetas e os mestres.
3 Corrija uns aos outros, não com ódio, mas com paz, como você tem no
Evangelho. E ninguém fale com uma pessoa que tenha ofendido o próximo; que essa pessoa não escute uma só palavra sua até que tenha se arrependido. 
4 Faça suas orações, esmolas e ações da forma que você tem no Evangelho de nosso Senhor.

O FIM DOS TEMPOS CAPÍTULO XVI
1 Vigie sobre a vida uns dos outros. Não deixe que sua lâmpada se apague, nem afrouxe o cinto dos rins. Fique preparado porque você não sabe a que horas nosso Senhor chegará.
2 Reúna-se com freqüência para que, juntos, procurem o que convém a vocês; porque de nada lhe servirá todo o tempo que viveu a fé se no último instante não estiver perfeito.
3 De fato, nos últimos dias se multiplicarão os falsos profetas e os corruptores, as ovelhas se transformarão em lobos e o amor se converterá em ódio.
4 Aumentando a injustiça, os homens se odiarão, se perseguirão e se trairão mutuamente. Então o sedutor do mundo aparecerá, como se fosse o Filho de Deus, e fará sinais e prodígios. A terra será entregue em suas mãos e cometerá crimes como jamais foram cometidos desde o começo do mundo.
5 Então toda criatura humana passará pela prova de fogo e muitos, escandalizados, perecerão. No entanto, aqueles que permanecerem firmes na fé serão salvos por aquele que os outros amaldiçoam.

6 Então aparecerão os sinais da verdade: primeiro, o sinal da abertura no céu; depois, o sinal do toque da trombeta; e, em terceiro, a ressurreição dos mortos. 
7 Sim, a ressurreição, mas não de todos, conforme foi dito: "O Senhor virá e todos os santos estarão com ele". 
8 Então o mundo assistirá o Senhor chegando sobre as nuvens do céu.

Do politeísmo ao monoteísmo, a saga de um povo.

A imagem que a historiografia bíblica esboça da saga do relacionamento de Israel com YHWH, pode ser descrita em três fases, ou seja, do politeísmo a monolatria intolerante e, por fim, ao monoteísmo radical.
A pré-história e a história primitiva de Israel, usando como fontes os livros veterotestamentários de Gênesis, apresenta a divindade denominada Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó, é uma divindade que na história das religiões é denominada “Deus dos Pais”. O característico dessas divindades é que elas não se vinculam a um determinado lugar ou a um santuário fixo, mas assumem uma relação pessoal com o grupo de pessoas que a cultuam. Por isso, o Deus dos pais não tem nome próprio; ele é chamado pelo nome da pessoa que o cultuou primeiro, e fundou seu culto, a quem esse Deus apareceu primeiro para dar-lhe determinadas promessas. Por isso, ele se chama “Deus do meu pai”, “Deus do teu pai”, ou, em fase posterior, “Deus de Abraão”, “Deus de Isaque”, “Deus de Jacó”, e, finalmente “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. O motivo das promessas de descendência e terra é um motivo antigo e corresponde aos anseios mais profundos de todo pastores nômades em situação de transumância. É possível compreender a religião dos deuses dos pais como a variante nômade ou seminômade do culto a El ou Elohim, comum a todos os semitas.
Um forte indício disso são os nomes estranhos que encontramos na pré-história de Israel. São nomes em forma de orações com o imperfeito de um verbo e um nome divino, ou em forma abreviada sem o nome divino (Yisra-el, Yizkak-el, ou Yakob-el) e  futuramente as formas compostas do nome de Deus, tais como: El-Shadai, El-Gibor, El-Elion, etc.
A primeira advertência contra o politeísmo hebraico vem com o Decálogo Ex 20:3 “Não terás outros deuses diante de mim”. Essa declaração, a segunda lei do Decálogo além de comprovar o politeísmo já implantado entre os hebreus, devido a contaminação da idolatria, mostra a visão monolatra do Israel primitivo.
Somente durante a dominação assíria e neobabilônica, época pré-exílica, podemos descrever a ideologia deuteronomista como “monolatria intolerante”. YHWM é o único Deus que Israel deve adorar, mas a existência de outras divindades não é contestada, pelo contrário: o livro do Deuteronômio está cheio de exortações a não “seguir os outros deuses”, o que provavelmente alude a procissões com estátuas cúlticas.
No inicio do período persa, pós-exílio também chamada de judaísmo posterior, houve aparentemente, entre a elite, uma guinada para um monoteísmo mais radical, como se mostra especialmente na polêmica contra as estátuas cúlticas e as divindades das nações, no assim chamado segundo Isaias (Is 40-55). Alguns textos tardios da História Deuteronomista refletem esta mudança da monolatria para o monoteísmo. É especialmente o caso de Dt 4, esse capítulo fornece, após uma instrução (v.1-9), uma nova interpretação dos acontecimentos no Horeb apresentados no cap. 5 (v.10-24). O autor de Dt 4 enfatiza o segundo mandamento do Decálogo, a interdição de estátuas de culto, e lança a idéia de que nenhuma forma de YHWH foi vista no Horeb. Ele amplia a interdição da representação de YHWH transformando-a numa rejeição geral a qualquer representação cúltica.
Israel assume assim as tradições dos patriarcas pré-israelitas. O Deus dos pais, já antigamente identificado como o Deus El, cultuado em diversos santuários locais, fundiu-se com YHWH, o Deus de Israel. A identificação do Deus dos pais com o Deus YHWH se dá no cumprimento da promessa do Deus dos pais.
O monoteísmo hebraico desenvolveu-se gradualmente como configuração religiosa no antigo Israel, basicamente entre os séculos IX e V a.C., a partir de uma realidade politeísta (existência de várias divindades) vivida há longo tempo pelo povo hebreu.
Esta forma de adoração consistia na negação de outras representações religiosas e na ênfase do culto a YHWH como único Deus.
Queremos destacar alguns elementos dessa diversidade religiosa (politeísta), bem como parte da complexidade simbólica que está por detrás do processo de desenvolvimento da religião hebraica. Partindo do conceito de que o sagrado “é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade” (ELIADE, 1992, p. 27), acreditamos que este sagrado, no antigo Israel, não esteve enclausurado em uma única manifestação religiosa, mas foi partilhado por meio de uma vasta simbologia.
Conforme Reimer (2003, p. 979), o desenvolvimento do monoteísmo no antigo Israel, propriamente entre os séculos IX e V a.C., pode ser esboçado em cinco fases:
A primeira fase seria marcada pelo sincretismo entre El e YHWH, no qual El é uma divindade cananéia cujas características é ser criador da terra e pai dos Deuses (REIMER, 2003, p. 979-980).
A segunda fase, por volta do século IX a.C., seria marcada pelos conflitos com a divindade Baal. No imaginário religioso, Baal era filho de El; sua característica principal era ser responsável pela fertilidade (REIMER, 2003, p. 980).
Crüsemann (2001, p. 780) aponta especialmente a época do profeta Elias (aproximadamente século IX a.C.), como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal e no processo de sincretismo no qual YHWH incorpora as características de Baal. Para o pesquisador, os escritos bíblicos do Primeiro Testamento já teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a realidade do monoteísmo: “a proibição de se adorar outras divindades já é pressuposta em Gênesis e formulada claramente no Sinai (Ex 20,2)” (p. 781).
A terceira fase estaria marcada pela ênfase da adoração exclusiva a YHWH. O profeta Oséias, no século VIII a.C., equipara a idolatria à adoração de outras divindades. Neste período acontece a reforma de Ezequias (2Rs 18,4), que, entre outras ações, promove a remoção dos lugares altos e a destruição da serpente de bronze, Neustã. A reforma é legitimada legalmente por meio do Código da Aliança (Ex 20,22-23,29) (REIMER, 2003, p. 980-981).
Ribeiro (2002, p. 994) destaca que a citação de 2Rs 18,4 faz entender que Neustã constituía, ao lado de Aserá e YHWH, uma tríade divina em Jerusalém. Neustã era, portanto,
uma divindade relacionada aos harashim, trabalhadores dos metais (ouro, prata, bronze, ferro), da pedra e da madeira. Esteve desde cedo relacionada aos trabalhadores da mineração. Serpentes de cobre foram localizadas nos vestígios arqueológicos das minas de cobre ao sul de Israel, exatamente na região onde a tradição bíblica localiza o episódio das serpentes de bronze (Nm 21,4-9) (RIBEIRO, 2002, p. 994).
Este terceiro momento seria caracterizado também pelo sincretismo entre Baal e YHWH, bem como com outras divindades. Conforme Secretti (2006, p. 98), o processo pelo qual os atributos de Baal passam a ser apropriados por YHWH denomina-se ‘baalização’ de YHWH. A divindade YHWH passa a ser afirmada como responsável pela fertilidade, função que antes era de Baal.
A quarta fase remeteria à época imediatamente posterior à dominação assíria, com a reforma de Josias (2Rs 22-23), justificada legalmente pelo Código Deuteronômico. Ela engloba uma série de medidas que visavam a exclusividade de YHWH e sua centralidade em Jerusalém. Trata-se de algo como um “monoteísmo nacional”, que afirma a ideologia de um “deus nacional”, sendo que “o santuário central e seus agentes religiosos (sacerdotes e profetas) desempenham funções importantes neste processo” (REIMER, 2008, p. 13). Reimer (2003, p. 982)
afirma que do templo de Jerusalém teriam sido retirados utensílios feitos para Baal, Aserá e o Exército do céu; sacerdotes dos 'altos' foram depostos, a estaca sagrada (hebraico: asherah) foi destruída, cabanas onde as mulheres teciam véus para Aserá foram demolidas etc. Também os santuários do interior foram desautorizados e desmantelados. Houve, assim, claramente, uma concentração do culto a Yahveh em Jerusalém, com a conseqüente exigência da adoração exclusiva dessa divindade.
Cada vez mais, as reformas religiosas vêm carregadas de intolerância religiosa, proibindo qualquer tipo de imagens de divindades, mesmo que de YHWH. Esta fase teria repercutido intensamente no culto à Deusa Aserá, cultuada até este período como possível consorte de YHWH (REIMER, 2003, p. 982).
Secretti (2006, p. 141) ressalta que
com o surgimento do Estado, a religião camponesa, com seus mitos, foi apropriada e funcionalizada a favor do mesmo Estado, que passou a perseguir e eliminar toda e qualquer expressão religiosa popular, seus símbolos, a centralizar o culto num Deus único, em Jerusalém (2Rs 23,4- 20).
A quinta fase seria marcada pelo monoteísmo absoluto que teve sua sintetização no período do exílio (597-539 a.C.). Esta realidade pode ser percebida com clareza em Is 45,5, onde, pela boca do profeta, o próprio YHWH afirma: “Eu sou YHWW e fora de mim não existe outro Deus”. E Gn 1 seria a afirmação do poder criacional de YHWH diante do domínio babilônico ancorado na fidelidade à divindade Marduc. No entanto, o pós-exílio (539-445 a.C.), época do domínio persa e do retorno das elites sacerdotais exiladas na Babilônia, seria o momento de maior afirmação do monoteísmo absoluto em YHWH, bem como, da supressão de qualquer referência a outras divindades, sobretudo femininas. Toda a literatura bíblica produzida e finalizada neste período terá essa tendência exclusivista em YHWH (REIMER, 2003, p. 983-984), sem, contudo, apagar por completo os indícios/vestígios e a pluralidade anterior (REIMER, 2005).

Bibliografia:
ROEMER, Thomas - A Chamada história deuteronomista , Editora Vozes –São Paulo 2005
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
CRÜSEMANN, Frank. Elias e o surgimento do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 11, n. 5, p. 779-790, 2001.
REIMER, Haroldo. Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 13, n. 5, p. 967-987, 2003.
REIMER, Haroldo. Monoteísmo e identidade. In: RICHTER REIMER, Ivoni (Org.). Imaginários da divindade: textos e interpretações. Goiânia: UCG; São Leopoldo: Oikos, 2008. p. 9-24.


RIBEIRO, Osvaldo Luiz. De Siquém a Jerusalém – Josué 24,1-28 como narrativa mítico-literária. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, São Leopoldo, n. 61, p. 52-67, 2008.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

O Quinto Império



Olhe que coisa interessante: o projeto português de expansão e, posteriormente, de colonização das terras brasileiras, nasceu sob o símbolo do Espírito Santo. Os portugueses acreditavam que um novo mundo estava a ser formado, um mundo que seria dirigido pela terceira Pessoa da Trindade, onde não haveria fome, nem presos, e que teria uma criança como rei.

O culto do Espírito Santo em Portugal desenvolveu-se a partir do reinado de D. Dinis (1261-1325) e teria nascido pela fé de sua esposa Isabel de Aragão, a Rainha Santa, por volta de 1323. Ela teria instituído a primeira festa do “Império do Espírito Santo”, que elegia um imperador ou uma imperatriz do Espírito Santo entre as crianças pobres.

A Rainha Santa e seu esposo Dom Diniz conheceram e foram influenciados pela teologia mística de Joaquim de Fiore (1132-1202), abade cisterciense, que fez a defesa do milenarismo e do advento da idade do Espírito Santo. Segundo suas interpretações das Escrituras existiriam três idades na História, no desenvolvimento do mundo e da Igreja, correspondentes às três Pessoas da Trindade.

A primeira idade correspondeu ao governo do Pai e foi representada pelo poder absoluto, inspirador do temor que atravessa o Antigo Testamento. A segunda idade iniciou-se no Novo Testamento, com a fundação da Igreja de Cristo, onde, através do Filho, a sabedoria divina, que tinha permanecido escondida da humanidade, se revelou.

A terceira idade haveria de vir e corresponderia ao domínio da terceira Pessoa. Seria o advento do Império do Divino Espírito Santo, um tempo novo onde o amor e a igualdade entre todos os membros do Corpo Místico de Deus seriam alcançados.
No Império do Divino Espírito Santo, as leis evangélicas seriam realizadas não só na sua letra, mas no seu espírito, ou seja, a mensagem que nelas está escondida seria compreendida e aceita pela humanidade. Nessa terceira idade não haveria necessidade de instituições disciplinadoras da fé, já que ela estaria fundamentada na inspiração divina. Seriam dispensadas as estruturas institucionais do poder temporal da Igreja. Qualquer pessoa, sem importar gênero ou posição social, poderia ser imperador/a, pois a sabedoria divina iluminaria a todos. A humanidade seria, também, beneficiada por uma inteligência espiritual que possibilitaria a plena compreensão dos mistérios divinos.
Em sua época, Joaquim de Fiore acreditava que a segunda idade estava no seu fim e que o advento do Império do Espírito Santo estava para acontecer. O Império do Divino Espírito Santo, já às portas da História, seria a apoteose, e duraria até a segunda vinda gloriosa do Cristo.

Duzentos anos depois do reinado de Dom Diniz a teologia do Império do Espírito Santo tinha conquistado os corações e mentes dos portugueses. Assim, dois padres jesuítas, um deles espanhol e o outro português, contam como viajando para a Índia em 1561 na nau “Nossa Senhora da Graça”, depois de passadas as ilhas de Martim Vaz, coroaram um imperador do Espírito Santo, aos 25 de maio, dia do Pentecostes, quando se fez uma festa solene,

porque havia Imperador elegido e estava a nau toda de festa, embandeirada
e toldada de goderins muito frescos, e com um dossel de tafetá azul onde o imperador tinha a cadeira.

Sabemos que não foi assim, sem fome, sem presos e com uma criança como imperador do Espírito Santo que a colonização se fez. Mas o imaginário cristão de uma terra de fartura, liberdade e justiça, sem dúvida, esteve nos fundamentos do ideal português. A partir daí começou a surgir os principais elementos de uma pneumatologia brasileira, onde as leituras e compreensões do Espírito Santo, de sua ação no universo, nas comunidades e sobre a vida das pessoas, repousaram sobre essa esperança levantada pelos cristãos do século quatorze em Portugal. Aos poucos o culto ao Espírito Santo, símbolo dos ideais de liberdade e fraternidade da doutrina cristã, assumiu caráter de fé do povo brasileiro. E assim deveria ser, pois, segundo o padre Antonio Vieira, no livro de Isaías há um sinal divino dado às “costas e ilhas distantes e a povos longínquos” (Isaías 49.1; 66.19). Por isso Vieira dizia:
                  
                  Digo primeiramente que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que diretamente está além e da outra banda da Etiópia, como diz o profeta: quae est trans flumina Aethiopae [Isaías 18.1]. E assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás da Etiópia.

Esta seria, então, a terra da construção do “Quinto Império”, profetizado por Daniel, e que em breve haveria de se instalar no mundo. Esses elementos culturais e religiosos que permeiam a multiculturalidade brasileira apontavam para uma teologia do Espírito, como presença de Deus no universo, na comunidade e na experiência humana. Tal visão foi utilizada por Vieira quando fez uma hermenêutica do percurso histórico de Portugal à luz dessa revelação providencialista. Colocou a história de Portugal em paralelo com a história do povo de Israel, que a Bíblia apresenta como povo eleito. Então, é o Espírito que/quem convence as comunidades e pessoas de seus alvos, da incondicionalidade da justiça e do juízo que paira sobre a existência. Nesse sentido, as comunidades e cada ser humano são chamados à liberdade pela obra redentora de Cristo. Donde,
                
                  a tese da constituição sagrada e da conservação imune da singularidade e liberdade do reino de Portugal interliga-se e justifica-se com outra tese segundo a qual este reino estaria designado para ser um instrumento especial de uma missão, também ela sagrada, em relação a outros povos. Essa missão é iluminadora e fundamentadora de uma visão sacralizante da história de Portugal — a missão teofânica de levar o conhecimento de Cristo aos povos ignorantes da sua doutrina.

Não queremos aqui definir se nossos irmãos portugueses estavam certos ou equivocados na compreensão dessa missão teofânica, mas reafirmar que nas comunidades e pessoas essencializadas pela fé, o Espírito é o centro do querer humano, que produz um novo fazer. Então, o Espírito advoga, em lugar do humano, a partir da justiça imputada pelo Cristo, o justo. O Espírito é atração que vem da incondicionalidade e nos faz cair para cima, mantendo-nos fiéis e produzindo na vida humana o amor que arrebata.

Assim, através do catolicismo popular brasileiro, o culto ao Espírito Santo espraiou-se pelo país. As celebrações mais alegres, sempre de forte expressão comunitária, aconteciam cinqüenta dias após a Páscoa, lembrando o dia de Pentecostes, quando o Espírito desceu sobre os apóstolos de Jesus como centelhas. Na Europa, as festas ao Espírito eram realizadas na época das primeiras colheitas, traduzindo a esperança da chegada de uma nova era para o mundo, com liberdade, prosperidade e abundância. Aqui, as festas podem ser encontradas em praticamente todas as regiões do país, apresentando diferentes características, mas guardando em comum a imagem da pomba branca, a coroa, e a distribuição de comida. E foi assim que o Deus tri/uno se revelou ao brasileiro pobre, como voz de presença. É o Espírito de Deus, o Espírito de Cristo, o Espírito Santo, que merece festa e adoração.

Tal compreensão apresentou às brasilidades a fé como produto comunitário, quando, todos juntos, recebemos o sopro do Espírito, que fala as verdades da vida que devemos compreender. Ou seja, o Espírito dissemina a vontade do Deus tri/uno entre as pessoas, dá aos fiéis poder e autoridade para o serviço no cotidiano do reino de Deus, prepara para a ação proclamatória do Verbo e nos coloca sob missão livre e dinâmica, em obediência criativa ao Verbo de Deus. Esse é o direcionamento da mais antiga teologia popular do Espírito no Brasil.

A liberdade é cósmica

O tempo passou e os primeiros missionários da Reforma protestante pisaram em terras brasileiras. Acreditaram que estavam chegando num país sem cristianismo, que desconhecia a mensagem da salvação, ou seja, na prática descartavam a espiritualidade como fenômeno universal na experiência brasileira e se esqueciam que ela é o Espírito da liberdade cósmica, que traduz a vivacidade da vida. E por não compreender a multiculturalidade brasileira, declararam-na vazia de espiritualidade. Ao começar do zero, longe das raízes das brasilidades, definiram a salvação como fenômeno individual, solitário na pessoa convertida, sem festa e expressão nas comunidades. E assim, ao lado da teologia do Espírito do catolicismo popular, alegre e comunitário, foi sendo construída outra, cheia de consciência e sentido teológico, mas sem coração, vida e emoção brasileiras.

Aprendemos, então, que o Espírito é Pessoa da tri/unidade de Deus. É Pessoa que dá vida nova e consola os que sofrem. Adota e enche de amor. Transmite conhecimento, sabedoria e justiça. Derrama arrependimento e graça, dá poder e torna as pessoas prudentes. Vive em nós: pertencemos a Ele. Mas como viver isso em nossas comunidades de fé? Qual é expressão desse Espírito, teologicamente correto, no dia a dia de nossas vidas? Será que vida no Espírito não significa experiência religiosa? Não há vida humana sem experiência. Vive-se na experiência da vida e essa é uma realidade palpável nas brasilidades. Por que então negar a experiência religiosa no Espírito? Por que esta tentativa de pasteurizar o Espírito? Por que a vida brasileira, para aqueles que chegavam de fora era feia, suja, pobre e sem espiritualidade? Perguntinhas desagradáveis, mas que estão escondidas em nossos corações protestantes. Moltmann nos ajuda na construção de respostas.

Uma pneumatologia brasileira deve tornar-se uma reflexão hermenêutica sobre a afirmação da justificação pela graça, por meio da fé. Essa expressão “por meio da fé” não é somente posicional, mas existencial. E, nesse sentido, falamos da espiritualidade na vida da comunidade de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta. Dizer que o Espírito é santo é afirmar que não pode ser violado, que sua ação sobre nós e para nós é benéfica, segura e eficaz.

Ora, o Espírito é criador, mas o que significa isso? Poderíamos falar da criação do cosmo e de outros atos criadores do Espírito, mas não podemos nos esquecer de que a pneumatologia deve funcionar como uma cristologia eclesial, já que a vida é Espírito e que a comunidade também tem Espírito. A comunidade de fé, assim como as pessoas, são as criações por excelência deste Espírito. E como a comunidade de fé é formada por discípulos do Cristo, seu Espírito está aí presente, criando gente nova e expandindo o reino.

As comunidades cristãs brasileiras, todas elas, são comunidades de Jesus, e é isso que define a Igreja. Quando as comunidades de fé se defrontam com desafios que as fazem pensar sobre o propósito e caráter da Igreja cristã, elas devem refletir sobre suas realidades históricas e culturais a partir do fato e da identidade do Jesus glorificado. Só nesse sentido, podemos entender na prática, de forma viva e comunitária, o permanente ato criador do Espírito na cristologia da Igreja. É verdade, o Espírito é Pessoa. Mas aqui também somos chamados a dar carne e osso à nossa pneumatologia. A pessoalidade do Espírito pode melhor ser compreendida na materialidade da comunidade de fé, pois cada comunidade de fé possui um só Espírito. Inversamente, a espiritualidade de uma comunidade, ou é o Espírito de Deus, ou um dinamismo ameaçador. Assim todas as comunidades se confrontam com a transcendência, e o Espírito aparecerá como a liberdade da comunidade contra a perda de sentido.

As comunidades de fé reivindicam seu estabelecimento como cumprimento da pessoalidade do Espírito prometido. Assim a identidade de Deus e do Espírito é clara para as comunidades de fé. E essa pessoalidade do Espírito se dá no chão da materialidade das comunidades de fé, na carne e no osso da Igreja. Por isso, na experiência da comunidade, podemos dizer que o Espírito procede do Pai e do Cristo, que o Cristo é gerado pelo Pai e pelo Espírito, mas, também, que o Pai é fruto do amor do Cristo e do Espírito. Assim, entendemos que na comunidade de fé, de forma existencial para cada um de nós, o Espírito é Pessoa na comunhão de Deus.

É a pessoalidade do Espírito que nos leva à questão da espiritualidade. Quando dizemos espiritualidade, queremos dizer uma vida no Espírito, um intenso convívio com o Espírito: esse é o sentido cristão da palavra. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos remete à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus. Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque o Espírito as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito no ser humano. E o Espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo atrativo do Espírito é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à fome e a suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e a suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida. Nesse sentido, o Espírito é libertador.

O mundo das pessoas é o cosmo. Aí elas constroem seu habitat. Desta forma, por meio do significado dado pelo ser humano à natureza, de domínio e expansão, dentro de um significado de utilização que lhe empresta, atua sobre ela, produz transformação e cultura, e realiza sua espiritualidade.
A espiritualidade, sendo relação entre significante e significado, é dialética, pois é ela que faz da pessoa e da comunidade ser significante e permite ao ser humano e a sua comunidade transferir ao mundo que o cerca a transcendência, que também utiliza essa mesma significação. Ao fazer significante a realidade que o cerca, o ser humano dá origem às transformações, engendra causas e passa à construção do futuro. Para viabilizar tais transformações, é necessário que a comunidade transfira novos significados aos processos históricos, sociais e mesmo espirituais.

Por isso, podemos dizer, a partir da espiritualidade, que onde há comunidade, há vida e comunicação, e que a comunicação é Espírito, ou então, resistência ao Espírito. Dessa maneira, ou o Espírito é comunicação, ou então subverte a comunicação. A comunicação é a realidade da relação de pessoas, e é pela comunicação que temos um cosmo e nos encontremos nele. Assim, a missão das comunidades de fé é a permanente comunicação no Espírito.

Ora, a ação de libertar está ligada à ação de defender. A vida humana pode ser negada e, por isso, para ser realmente vivida, tem de ser afirmada. Vida negada e recusada é morte. Vida aceita e afirmada é liberdade. É o Espírito quem convence o cosmo do alvo errado, que corrige o cosmo injusto e que transforma as pessoas, de escravos e vítimas do erro, em alforriados pela graça. É este Espírito defensor que possibilita o encontro das diferentes experiências de vida, assim como a comunhão da diversidade que Ele próprio cria e administra em cada um de nós. E é Ele quem nos encoraja à esperança. O Espírito da unidade e da diversidade não cessa de atuar entre nós, mesmo quando distantes uns dos outros e aparentemente separados. Teologicamente, podemos ampliar ainda mais a compreensão do Espírito ao dizer que Ele sopra sobre e através das vidas. Ele é a liberdade da historia universal e particular das brasilidades, a espontaneidade da realidade, a beleza da criação cósmica e o criador da vida nova das comunidades de fé. E quando falamos que Ele é a espontaneidade da realidade, estamos dizendo que o Espírito é paradoxal: se apresenta como gênese e escathon, fim de uma aliança e princípio de uma nova, fim de uma era e início de uma nova. Quando vem, ninguém se controla, mas ele controla a todos. Ninguém está sem controle, porque ser cheio do Espírito é ser conduzido por sua soberania. Eis o paradoxo de Espírito.

O Espírito é cósmico e livre. Mas qual a relação entre liberdade e cosmo? Seguindo Irineu, podemos dizer que a comunicação de Deus levou à existência, mas pelo Espírito, Ele transforma o existente em cosmo, com sentido, com ordem de adequação e adaptação. E se retornarmos a Hegel, esse Espírito cósmico é a consciência do universo, Espírito vivo. Ou seja, assim como o Espírito deu sentido ao existente, Ele tem como propósito dar sentido à vida humana, por isso é Ele quem vai adiante, abre as portas e prepara o caminho para o sucesso da comunicação.

O mesmo Espírito, além de preparar as diferenças, e o Brasil é um exemplo disso, é quem transforma essas bases para a expansão da comunicação. A visão da expansão da comunicação é uma dádiva do Espírito para as comunidades de fé, mas a unidade na comunidade só é válida na variedade, nunca na uniformidade. A aceitação das pessoas, com suas diferenças e particularidades, e aqui devemos falar de afrobrasileiros, brasilíndios e neobrasileiros, é uma condição indispensável para a saúde da comunidade cristã.

A pneumatologia vivida a partir da multiculturalidade brasileira apresentará a obra do Espírito como realidade comunitária, e esse talvez seja o sentido maior, recuperado pelos irmãos carismáticos e pentecostais no Brasil. Mas, em meio às divergências e separações, às inimizades e choques, prevalece a amplidão do Espírito. Ou seja, Ele cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a largura, cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Deus não é sentido somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade em que o ser humano pode se desenvolver.

Créditos

Artigo de Jorge Pinheiro dos Santos
Elementos para uma pneumatologia brasileira
Uma leitura pós-moltmanniana

MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida: uma pneumatologia
integral. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999