A atividade profética do Dêutero-Isaías,
começa com o “Livro da consolação de Israel” cap. 40, e é o título dado
a segunda parte do livro de Isaías e inspirado nos primeiros versículos. A “consolação”
é, com efeito, o principal tema desses capítulos, contrastando com os oráculos
geralmente ameaçadores dos caps. 1-39 (do primeiro Isaías).
A pessoa
O Dêutero-Isaías,
profeta anônimo do exílio, considerado por muitos como o maior profeta e o
melhor poeta de Israel, não nos deixou um único dado sobre a sua vida. Apesar
disso, alguns autores se empenharam em escrever a sua “biografia”. Muito se tem
dito dele, e nada é totalmente seguro. Segundo alguns, nasceu em Babilônia e
terminou ali a sua atividade profética; segundo outros, regressou a Jerusalém
depois de 538 e lá continuou a sua pregação, recolhida atualmente nos cap.
56-66. Outros pensam que ele sempre viveu em Jerusalém ou em Judá; alguns até
situaram a atividade dele na Fenícia ou no Egito. Afirmou-se que esteve na corte
ou no acampamento de Ciro, que foi o primeiro missionário, que morreu
martirizado, que sofreu uma doença grave e repugnante.
Tudo isso, que
não passa de mera conjectura, demonstra que a “biografia” não deve ser o
principal ponto de apoio para entender a obra do profeta. Nem sequer temos
certeza do nome dele, embora alguns pensem que também ele se chamava Isaías.
Ainda que não
exista unanimidade entre os comentaristas, a maioria aceita que este profeta
atuou entre os desterrados da Babilônia na fase final do exílio. Baseando-nos
na menção de Ciro, podemos datar o conteúdo destes capítulos entre o ano de
533, quando este começa suas campanhas triunfais, e o ano de 539, data da rendição
da Babilônia. Antes de adentrar-nos na mensagem deste profeta, convém conhecer
algo do momento histórico.
A época
Os anos
centrais do século VI a.C. caracterizam-se pela rápida decadência do império
neobabilônico e pelo aparecimento de uma nova potência, a Pérsia. Esta mudança
de circunstâncias atinge o seu ponto culminante no ano de 539, quando Ciro
entra triunfalmente na Babilônia.
A atividade do
Dêutero-Isaías desenvolve-se nos anos anteriores a esta vitória. E é fácil
imaginar a atitude dos desterrados durante os acontecimentos. A deportação de
597 nunca foi assimilada pelos judeus. Desde o primeiro momento esperaram a
volta rápida à Palestina. Mas as ilusões caíram por terra em 586, quando um
novo grupo de compatriotas foi transferido para “junto dos canais da Babilônia”.
Algumas palavras do livro de Jeremias expressam perfeitamente os sentimentos de
ódio que se foram aninhando neles (Jr 51,34-35). E, junto com o ódio, os
desejos de vingança, a saudade da terra prometida, as ânsias de libertação.
Estes sentimentos vão acompanhados também de uma crise de fé e de esperança. As
palavras do povo: “minha sorte está oculta ao Senhor, meu Deus ignora a minha
causa” (Is 40,27), e as de Sião: “abandonou-me o Senhor, meu dono me esqueceu”
(Is 49,14), refletem a decepção de muitos contemporâneos do profeta.
E isto é
particularmente grave porque os anos que seguem vão levantar um sério problema
teológico. As notícias que chegam sobre as vitórias de Ciro fazem esperar uma
pronta libertação. O profeta confirma isto. Mas, quando ela se realizar, a quem
deveremos atribuí-la: a Javé, deus de um pequeno grupo de exilados, ou a Marduc,
deus do novo império? Nesta densa problemática humana e religiosa encaixa-se a
mensagem do Dêutero-Isaías.
A mensagem
Os cap. 40-55
de Isaías são conhecidos como “livro da consolação”, devido às suas palavras
iniciais: “consolai, consolai o meu povo, diz o
Senhor”. Este título
não é inadequado, pois o tema do consolo volta a ressoar ao longo da obra
(40,27-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-2, etc.), mostrando o amor e a preocupação de
Deus pelo seu povo.
Em que consiste
a consolação? O livro responde em duas etapas. Na primeira (cap. 40-48) nos diz
que consiste na libertação do jugo babilônico e no regresso à terra prometida,
uma espécie de segundo êxodo, semelhante ao primeiro, quando o povo saiu do
Egito. A segunda parte (cap. 49-55) fala-nos da reconstrução e restauração de
Jerusalém.
Na primeira
etapa, a libertação está confiada a Ciro (41,1-5; 45,1-8;
48,12-15). O
novo êxodo apresenta-se com milagres semelhantes ao antigo, embora seja mais
grandioso, já que implica uma mudança total da natureza. Este tema do êxodo é denunciado
já desde o princípio (40,3-5) e o milagre está centrado especialmente no
aparecimento de água e de árvores no deserto (41,17-20; 43,19-21; 48,21).
Esta mensagem
chocou-se com a falta de confiança do povo. É realmente Javé quem maneja os
fios da história, ou os deuses pagãos?
Deve-se
atribuir a ele o aparecimento prodigioso e irresistível de Ciro? Nesta primeira
parte, o Dêutero-Isaías trata detalhadamente deste problema e polemiza contra
os deuses e ídolos pagãs, impotentes e ineficazes (40,12-26; 41,21-29; 44,5-20;
46,1-7).
Na segunda
parte (cap. 49-55), ao falar da reconstrução e restauração de Sião, Jerusalém
aparece como mulher e como cidade. Como mulher, queixa-se da falta de filhos;
como cidade, das suas ruías (cap. 54). Ambas as coisas serão superadas, graças
ao sofrimento do Servo de Javé.
Tem-se dito com
frequência que os cantos do Servo (42,l-4[5-9); 49,1-6; 50,4-9(10-11];
52,13-53,12) não têm relação com o contexto. Isto me parece um grande erro.
Este personagem desempenha na segunda parte um papel semelhante ao de Ciro na
primeira. Ciro deve trazer a salvação temporal, a libertação do jugo da Babilônia.
O Servo traz a salvação eterna, a consolação perpétua de Sião. Ciro baseia a
sua atividade no poder das armas; o Servo - modelo de fraqueza e de não-violência
– só conta com o poder do sofrimento. Ciro conquista a admiração e a glória. O Servo
arrasta o desprezo de todos. Mas a dor e a morte dão-lhe a vitória definitiva,
mais duradoura que a de Ciro.
Nestes cânticos
atingimos um dos auges teológicos do Antigo Testamento. Nunca até então se
havia falado tão claramente do valor redentor do sofrimento. Admitiam-se as
dificuldades e contrariedades da vida encontrando nelas um sentido educativo,
pedagógico, tencionado por Deus. Mas não se podia imaginar que o sofrimento
tivesse um valor redentor em si mesmo. O Dêutero-Isaías proclama pela primeira
vez que “se o grão de trigo cair na terra e morrer, produz muito fruto”. Não há
nada de estranho em a Igreja primitiva conceder tão grande valor a estes poemas
e ver antecipados neles a existência e o destino de Jesus.
No próximo post
falaremos sobre a parte final do livro de Isaías, conhecido com Trito-Isaías (cap.
56-66).
Bibliografia
SICRE,
José Luís. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Tradução
de João Luís Baraúna. Petrópolis: Vozes 1996. P.310,313
Bíblia
de Jerusalém. Paulus.