sábado, 27 de maio de 2017

O Dêutero-Isaías (Is 40-55)


A atividade profética do Dêutero-Isaías, começa com o “Livro da consolação de Israel” cap. 40, e é o título dado a segunda parte do livro de Isaías e inspirado nos primeiros versículos. A “consolação” é, com efeito, o principal tema desses capítulos, contrastando com os oráculos geralmente ameaçadores dos caps. 1-39 (do primeiro Isaías).

A pessoa

O Dêutero-Isaías, profeta anônimo do exílio, considerado por muitos como o maior profeta e o melhor poeta de Israel, não nos deixou um único dado sobre a sua vida. Apesar disso, alguns autores se empenharam em escrever a sua “biografia”. Muito se tem dito dele, e nada é totalmente seguro. Segundo alguns, nasceu em Babilônia e terminou ali a sua atividade profética; segundo outros, regressou a Jerusalém depois de 538 e lá continuou a sua pregação, recolhida atualmente nos cap. 56-66. Outros pensam que ele sempre viveu em Jerusalém ou em Judá; alguns até situaram a atividade dele na Fenícia ou no Egito. Afirmou-se que esteve na corte ou no acampamento de Ciro, que foi o primeiro missionário, que morreu martirizado, que sofreu uma doença grave e repugnante.
Tudo isso, que não passa de mera conjectura, demonstra que a “biografia” não deve ser o principal ponto de apoio para entender a obra do profeta. Nem sequer temos certeza do nome dele, embora alguns pensem que também ele se chamava Isaías.
Ainda que não exista unanimidade entre os comentaristas, a maioria aceita que este profeta atuou entre os desterrados da Babilônia na fase final do exílio. Baseando-nos na menção de Ciro, podemos datar o conteúdo destes capítulos entre o ano de 533, quando este começa suas campanhas triunfais, e o ano de 539, data da rendição da Babilônia. Antes de adentrar-nos na mensagem deste profeta, convém conhecer algo do momento histórico.

A época
Os anos centrais do século VI a.C. caracterizam-se pela rápida decadência do império neobabilônico e pelo aparecimento de uma nova potência, a Pérsia. Esta mudança de circunstâncias atinge o seu ponto culminante no ano de 539, quando Ciro entra triunfalmente na Babilônia.
A atividade do Dêutero-Isaías desenvolve-se nos anos anteriores a esta vitória. E é fácil imaginar a atitude dos desterrados durante os acontecimentos. A deportação de 597 nunca foi assimilada pelos judeus. Desde o primeiro momento esperaram a volta rápida à Palestina. Mas as ilusões caíram por terra em 586, quando um novo grupo de compatriotas foi transferido para “junto dos canais da Babilônia”. Algumas palavras do livro de Jeremias expressam perfeitamente os sentimentos de ódio que se foram aninhando neles (Jr 51,34-35). E, junto com o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida, as ânsias de libertação. Estes sentimentos vão acompanhados também de uma crise de fé e de esperança. As palavras do povo: “minha sorte está oculta ao Senhor, meu Deus ignora a minha causa” (Is 40,27), e as de Sião: “abandonou-me o Senhor, meu dono me esqueceu” (Is 49,14), refletem a decepção de muitos contemporâneos do profeta.
E isto é particularmente grave porque os anos que seguem vão levantar um sério problema teológico. As notícias que chegam sobre as vitórias de Ciro fazem esperar uma pronta libertação. O profeta confirma isto. Mas, quando ela se realizar, a quem deveremos atribuí-la: a Javé, deus de um pequeno grupo de exilados, ou a Marduc, deus do novo império? Nesta densa problemática humana e religiosa encaixa-se a mensagem do Dêutero-Isaías.

A mensagem
Os cap. 40-55 de Isaías são conhecidos como “livro da consolação”, devido às suas palavras iniciais: “consolai, consolai o meu povo, diz o
Senhor”. Este título não é inadequado, pois o tema do consolo volta a ressoar ao longo da obra (40,27-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-2, etc.), mostrando o amor e a preocupação de Deus pelo seu povo.
Em que consiste a consolação? O livro responde em duas etapas. Na primeira (cap. 40-48) nos diz que consiste na libertação do jugo babilônico e no regresso à terra prometida, uma espécie de segundo êxodo, semelhante ao primeiro, quando o povo saiu do Egito. A segunda parte (cap. 49-55) fala-nos da reconstrução e restauração de Jerusalém.
Na primeira etapa, a libertação está confiada a Ciro (41,1-5; 45,1-8;
48,12-15). O novo êxodo apresenta-se com milagres semelhantes ao antigo, embora seja mais grandioso, já que implica uma mudança total da natureza. Este tema do êxodo é denunciado já desde o princípio (40,3-5) e o milagre está centrado especialmente no aparecimento de água e de árvores no deserto (41,17-20; 43,19-21; 48,21).
Esta mensagem chocou-se com a falta de confiança do povo. É realmente Javé quem maneja os fios da história, ou os deuses pagãos?
Deve-se atribuir a ele o aparecimento prodigioso e irresistível de Ciro? Nesta primeira parte, o Dêutero-Isaías trata detalhadamente deste problema e polemiza contra os deuses e ídolos pagãs, impotentes e ineficazes (40,12-26; 41,21-29; 44,5-20; 46,1-7).
Na segunda parte (cap. 49-55), ao falar da reconstrução e restauração de Sião, Jerusalém aparece como mulher e como cidade. Como mulher, queixa-se da falta de filhos; como cidade, das suas ruías (cap. 54). Ambas as coisas serão superadas, graças ao sofrimento do Servo de Javé.
Tem-se dito com frequência que os cantos do Servo (42,l-4[5-9); 49,1-6; 50,4-9(10-11]; 52,13-53,12) não têm relação com o contexto. Isto me parece um grande erro. Este personagem desempenha na segunda parte um papel semelhante ao de Ciro na primeira. Ciro deve trazer a salvação temporal, a libertação do jugo da Babilônia. O Servo traz a salvação eterna, a consolação perpétua de Sião. Ciro baseia a sua atividade no poder das armas; o Servo - modelo de fraqueza e de não-violência – só conta com o poder do sofrimento. Ciro conquista a admiração e a glória. O Servo arrasta o desprezo de todos. Mas a dor e a morte dão-lhe a vitória definitiva, mais duradoura que a de Ciro.
Nestes cânticos atingimos um dos auges teológicos do Antigo Testamento. Nunca até então se havia falado tão claramente do valor redentor do sofrimento. Admitiam-se as dificuldades e contrariedades da vida encontrando nelas um sentido educativo, pedagógico, tencionado por Deus. Mas não se podia imaginar que o sofrimento tivesse um valor redentor em si mesmo. O Dêutero-Isaías proclama pela primeira vez que “se o grão de trigo cair na terra e morrer, produz muito fruto”. Não há nada de estranho em a Igreja primitiva conceder tão grande valor a estes poemas e ver antecipados neles a existência e o destino de Jesus.

No próximo post falaremos sobre a parte final do livro de Isaías, conhecido com Trito-Isaías (cap. 56-66).

Bibliografia
SICRE, José Luís. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. Tradução de João Luís Baraúna. Petrópolis: Vozes 1996. P.310,313

Bíblia de Jerusalém. Paulus.

sábado, 6 de maio de 2017

Daniel, autor, texto e contexto.

E levantou-se, e foi; e eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinha ido a Jerusalém para adoração. Regressava e, assentado no seu carro, lia o profeta Isaías.E disse o Espírito a Filipe: Chega-te, e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entente tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. Atos 8: 27-31

Daniel, autor, texto e contexto.

O livro de Daniel é uma literatura apocalíptica no Antigo Testamento, carregado de uma densidade imagética e metafórica que fascinam seus leitores e que se mal compreendidas ou tomadas literalmente, podem levar às mais fantásticas fabulações, sem nenhum fundamento na realidade. Durante a sua história ele teve várias interpretações, não apenas os movimentos exotéricos, milenaristas e apocalípticos usaram-no, como também, movimentos de resistência de governos autoritários encontraram no livro a base de suas convicções. Hoje em dia, ele ainda é muito pregado em cultos neo pentecostais, principalmente textos sensacionalistas como o “sonho do rei”, “a cova dos leões”, “a fornalha ardente” e a “estátua de Nabucodonosor”. Todavia, a linguagem metafórica, a visão do mundo dualista e mítica, a concepção de um Deus violento com seus anjos guerreiros, faz com que a maioria das pessoas tenham grandes dificuldades com a sua leitura.

Mas exatamente a sua leitura polissêmica a densidade imagética com seus elementos misteriosos é que atrai um grupo de leitor, este artigo não tem a presunção de interpretar o livro, mas que o leitor entenda o contexto em que o texto foi escrito.

Para entender Daniel, precisamos primeiro, entender o que é apocaliptismo. Os apocalipses são escritos típicos de tempos difíceis. Aparecem quando o povo é dominado por uma potência estrangeira que ameaça a sua sobrevivência. Normalmente esse tipo de dominação era: política, econômica e ideológica, procurando a todo custo restringir a consciência critica do povo dominado, a fim de que este não se rebele. Essa vigilância ideológica costumava influir na cultura e na religião. Apocalipse é uma literatura de resistência, dirigida para despertar o senso critico, estimular a resistência e incentivar a luta contra o opressor.  Este gênero vinha se formando entre os judeus, à medida que os sucessivos impérios do Oriente Médio sufocavam Israel com as suas dominações. As primeiras raízes do gênero apocalíptico são encontradas nos livros dos profetas Joel 3-4, Zacarias 12-14, Isaías 24-27; 34-35; 65-66 e outros. Contudo é no profeta Ezequiel, em pleno império babilônico, que começa a recorrer extensivamente às imagens e alegorias, falando de modo a ser entendido pelos exilados, mas não pelos opressores. Dessa forma não correndo perigo na sua integridade.

O gênero literário apocalipse é, antes de tudo, um livro de ficção. Que não se entenda mal: a ficção é usada pelo autor para falar de modo cifrado de situações perigosas e de projetos ousados, que poderiam facilmente acarretar ameaças para ele próprio e para seus leitores. Usa então o recurso de escrever um livro que pode simplesmente ser entendido como ficção, mas que os destinatários saberão decifrar e aplicar à realidade. Embora diferente o livro de Daniel, é parente próximo de outros livros de ficção, como Tobias, Judite e Ester – que se referem, de outro modo, ao mesmo contexto histórico ou a contextos históricos semelhantes.[1]

É uma característica do gênero literário apocalipse, tanto do Antigo como no Novo Testamento, se utilizar vários recursos como: pseudonimia, antedatação, sonhos, visões, imagens, alegorias, simbologia, e números. O autor costuma não assinar o livro, usando o recurso de um pseudônimo, que em geral costuma ser de uma pessoa famosa do passado, como Moisés, Henoc, os patriarcas, etc. Este recurso propiciava além da proteção ao autor de ser descoberto e punido, ao mesmo tempo, dava a impressão de antiguidade e peso ao escrito.

Por isso não há como dizer quem é o autor do livro de Daniel. O livro é muito complexo, e aponta para um complicado processo de formação, basta dizer que foi escrito em três línguas diferentes: hebraico (1,1-2, 4 a; 8-12), aramaico (2,4b-7,28) e grego (3,24-90; 13-14). Há muitas contradições, p.ex: em 1,18-19 o rei Nabucodonosor conhece Daniel e seus três companheiros; já em 2,25 eles são desconhecidos para o rei.  Todos estes fatos, as diversidades de línguas e as contradições, fazem pensar que o livro surgiu graças a uma coleta e costura de várias histórias orais ou já escritas, que foram reunidas por um editor final. Entende-se que o nome Daniel é sem duvida um pseudônimo inspirado no lendário Danel citado por Ezequiel 14, 14.20, ao lado de Noé e Jó. O nome hebraico também é muito parecido Danel significa (Deus julga) e Daniel (Deus é meu juiz). Neste caso o nome vem a calhar para um apocalipse que pretende apresentar o julgamento de Deus contra o opressor.

A pista para descobrir o editor(es)  final da obra, encontra-se no mesmo livro nos capítulos 8 a 12. Seus autores mostram a preocupação em reanimar a fé e a esperança em tempos de aflição, perseguição, ameaça de morte e perda de identidade. Para isso os seus autores recorrem a profecias do passado e reelaboram narrativas de cunho sapiencial para servirem aos seus propósitos no presente.

Comparado esses capítulos com os livros dos Macabeus, escritos depois, podemos ver que se referem aos mesmos acontecimentos que vão de 175 a 163 a.C., durante a dominação do rei selêucida Antíoco IV Epifânes sobre a Judéia. Esse é o tempo real do autor-redator-editor final. É provável, porém, que as partes em grego foram acrescidas (3,24-90; 13-14) elas se encontram na LXX[2] e na Bíblia católica. O acréscimo estão no capítulo 3 os versículos 24-90 conhecido como o cântico de Azarias na fornalha, a história de Suzana (Dn 13); de Bel e o dragão (Dn 14). O conteúdo da Bíblia Hebraica (Tanakn) é o equivalente ao nosso Antigo Testamento, porém com três divisões, a saber: Torah (O Pentateuco); Os Profetas (Neviim) e os Escritos (Ketuvim). O livro de Daniel na Bíblia Hebraica não é considerado profeta e sim histórico, por esse motivo fica na sua última sessão nos Escritos.

O contexto histórico é muito importante para entendermos o momento. Jerusalém caiu sob o domínio do rei babilônico Nabucodonosor em 586 a.C., com isso o reino de Judá deixa de existir. Israel já não existia há mais de 200 anos.  A Judéia passará pela dominação de vários impérios. Primeiro o babilônio, que se estende de 586 a 539 a.C., quando Ciro vence os babilônios e transforma a Judéia em colônia Persa. Até que no ano de 333 a.C. Alexandre Magno venceu os persas e consolidou o império grego. A dominação grega se estenderá com os selêucidas e os ptolomeus  (generais de Alexandre que tomam o poder após a sua morte) até o ano de 63 a.C. quando os romanos dominam a região.  

Por vários motivos linguísticos, históricos e histórico literário, os fatos narrados no livro de Daniel não podem ter surgido no século VI a.C., por volta de 586 a.C. O livro surge somente no século II, na época helenista, mais especificamente, entre 167 e 164 a.C. durante a revolta dos Macabeus. Nessa época, o povo de Israel sofria as consequências da helenização patrocinada pelos selêucidas. A cidade santa de Jerusalém, paulatinamente estava sendo transformada numa polis grega devido a medidas drásticas do rei selêucida Antíoco IV  Epífanes (175-164 a.C.). Durante o seu reinado, no ano de 169 a.C., ele saqueia o tesouro do templo de Jerusalém para financiar suas campanhas militares e manda esmagar brutalmente uma rebelião em Jerusalém. Dois anos depois ele conquista a cidade de Jerusalém num sábado e ordena matar e escravizar boa parte da população, e substitui a elite governante.

Antíoco impõe medidas religiosas, que interferiam nas normas alimentares judaicas, na observância do sábado e na prática da circuncisão medidas que atinge todas as camadas da população. Forçava aos perseguidos o consumo de carne de porco a fim de testar a sua lealdade ao sistema. E, conforme os testemunhos bíblicos, sua maior iniquidade consistiu na colocação de um estrado sobreposto ao altar de sacrifício do templo a fim de permitir sacrifício a Zeus (Dn 11,31; 9,27 “abominação desoladora”). Com essa medida o templo foi profanado, tornando impossível ao judeu a realização de sacrifícios.

Nasce então o livro de Daniel, os grupos responsáveis pelo conteúdo (Dn 11,33) encontram-se entre os perseguidos, alguns de seus membros sofreram martírio. Eles se autodenominam Maskilin (“sábios, entendido, esclarecidos Dn 11,33) eram, portanto, círculos zelosos apoiados por grupos liberais dentro do judaísmo. Temiam perder as suas tradições e a sua identidade e, por isso, estavam dispostos a defender a sua fé mesmo sob o risco da própria vida (2 Mac 7).

Qual a proposta do(s) autor (es)?

Compilando, adaptando tradições antigas e acrescentando materiais novos, o autor procurou tomar posição diante dos acontecimentos. Cansados da longa dominação e ameaçados da perda de identidade e da extinção. Produziram um livro em linguagem cifrada, compreensível para o seu povo, a fim de estimular a resistência e incitar a luta.
O gênero apocalíptico do livro de Daniel, não permite ao leitor moderno uma leitura fundamentalista e linear dos fatos, como muitos o fazem. Os recursos literários citados acima: da pseudonimia, da antedatação, dos sonhos, das visões sempre acompanhadas de anjos, das imagens, das alegorias, entre outras, apontam para descortinar e revelar um panorama polissêmico característico dos apocalipses (veja o Ap. de João). Sua leitura é simbólica e enigmática, Jerônimo dizia que “o apocalipse tem tantos mistérios quanto palavras”. A sua estrutura é dualista, com oposições e soluções radicais, tensão continua entre bem e mal; entre tempo primordial (tempo primeiro) e tempo escatológico (tempo final); ocultamento e revelação; resistência e esperança.

Sole Deo Glori


[1] STORNIOLO, Ivo, 
[2] Septuaginta