terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Saul e a Pitonisa de En-dor

Saul e a pitonisa de En-dor 
(1 Sm 28.3-25)


Uma das maiores frustações da minha caminhada cristã, foi quando ainda neófito na fé procurei meu pastor para perguntar-lhe sobre a passagem acima. Meu questionamento na época foi: “Se Deus sempre proibiu a necromancia, por que ele havia permitido que o Rei Saul infringisse essa lei divina e consultasse uma feiticeira?” Para a minha surpresa a resposta foi: “Neste caso Deus permitiu!”

Ahhhh! “neste caso Deus permitiu”, fiquei atônito, decepcionado, como pode? Seria possível que Deus mudasse sua palavra em função de alguns? Não, não consegui aceitar aquela resposta. Ela viria destruir tudo aquilo que eu havia construído na minha fé.

Muitas vezes respostas inconsequentes como esta podem destruir a fé, não foi o caso, muito pelo contrário a minha indignação me levou a outra direção.

Voltemos ao texto: Por quê a Bíblia traz a passagem sobre Saul e a feiticeira de En-dor? (1 Sm 28.3-25).

Uma explicação plausível é que desde a pré-história de Israel até a edição do Pentateuco, Israel passou por três fases, a saber: do politeísmo; a monolatria intolerante até chegar na monoteísmo radical. A edição dos livros da Lei, dá-se no século VI aC por composição deuteronomista dos livros do Pentateuco e dos profetas anteriores, sob a influência de um rigoso monoteísmo radical que impunha sobre a idolatria todo o peso da destruição de Israel do norte. Nesse contexto de reformulação da religião, e a unificação do povo baseada no culto ao Deus único, tais reformadores provavelmente tenham banido do povo todos os costumes e mitos considerados ameaçadores e ofensivos a Yahweh.

O fato da história contada em 1 Sm 28.3-25, entre a consulta de Saul e a feiticeira, serve de exemplo para o povo da rejeição de Yahweh a tais atos e serviu de alerta às gerações futuras que tais leis não foram revogadas.
Lembramos que, embora proibidos, os ritos de necromancia eram conhecidos em Israel, tanto que seu próprio rei recorre à prática e convence a mulher a executá-la. Tendemos a acreditar que, na verdade, as prescrições acerca dos ritos podem ser um indicativo do quão conhecidos eles deviam ser: a Lei regia que os mortos não podiam ajudar e nem ser ajudados, que qualquer forma de culto aos espíritos era rejeitada e que consultas mediúnicas aos mortos deveriam ser punidas com apedrejamento (Cf. Lv 19.26, 31; 20.6, 27; Dt 18.9-12). Esta última normativa é ameaçadora e pode muito bem ter tido força de repressão em virtude de uma situação vigente. No entanto e curiosamente, mesmo que as normativas e proibições sinalizem que a prática pode ter existido entre os antigos israelitas, o Pentateuco não apresenta quaisquer sinais destes cultos, o que imediatamente nos remete às perguntas: estes sinais teriam sido removidos antes que os livros fossem editados? Por qual motivo? Em que ponto na história israelita Deus teria proibido a necromancia e de que forma as pessoas ouviram essa proibição?

Em algum momento teria havido em Israel uma prática autorizada destes ritos nos moldes daqueles encontrados nas redondezas? Do que consistiam? Qual era sua motivação? Mary Douglas[1] entende que essa mudança veio com o livro de Levíticos, descrito por ela como “uma religião totalmente reformada”. Pode ser que esta religião reformada, quem sabe em função de uma unificação do povo baseada no culto à um Deus único, tenha banido os ritos de necromancia ao considerá-los ofensivos ou ameaçadores do princípio de singularidade cúltica adotado. Uma hipótese que nos ocorre neste momento, quem sabe paralela a esta última, é a de que a ausência de pistas destes rituais pudessem influenciar que outras gerações tomassem contato com a antiga prática, em preservação da Aliança. Contudo, as perguntas anteriores e outras que se possam levantar permanecem difíceis de serem respondidas, especialmente em razão da ausência de material específico paralelo ao texto sagrado e que remonte ao período em questão. Assim, toda lacuna que se busque preencher não encontrará mais que alternativas hipotéticas.

Vejamos mais uma delas: no imaginário do Israel pré-exílio desde que a morte também representava o fim de todos os relacionamentos, inclusive com a divindade, uma hipótese é a de que a proibição dos ritos de necromancia teria se dado em função de um distanciamento da ideia de que os mortos “sobrevivem” em algum outro tipo de existência à parte do governo de Yahweh, podendo manter um relacionamento entre si e com os vivos à revelia do Deus de Israel, assumindo um status de deuses ou semideuses. Talvez a aceitação dessa ideias significasse o estabelecimento de um panteão, mesmo que formando por deuses de um tipo inferior. Lembremos que na história de Saul e a mulher de En-dor, quando invocado, Samuel aparece como uma espécie de semideus, capaz até mesmo de conhecer o futuro. A mulher de En-dor não classifica a imagem que lhe aparece como um fantasma, mas como um ser divino, um “elohim” (1 Sm 28.13).

Uma possibilidade é que as celebrações funerárias com banquetes, rituais de exorcismo, aplacamentos e consultas aos mortos, etc. tenham sido suplantados em algum momento na história de Israel por motivos que podem ir desde a aversão israelita aos cultos vizinhos até a organização nacional em torno do monoteísmo.








[1] 1921-2007 – Antropóloga e Teóloga