terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Saul e a Pitonisa de En-dor

Saul e a pitonisa de En-dor 
(1 Sm 28.3-25)


Uma das maiores frustações da minha caminhada cristã, foi quando ainda neófito na fé procurei meu pastor para perguntar-lhe sobre a passagem acima. Meu questionamento na época foi: “Se Deus sempre proibiu a necromancia, por que ele havia permitido que o Rei Saul infringisse essa lei divina e consultasse uma feiticeira?” Para a minha surpresa a resposta foi: “Neste caso Deus permitiu!”

Ahhhh! “neste caso Deus permitiu”, fiquei atônito, decepcionado, como pode? Seria possível que Deus mudasse sua palavra em função de alguns? Não, não consegui aceitar aquela resposta. Ela viria destruir tudo aquilo que eu havia construído na minha fé.

Muitas vezes respostas inconsequentes como esta podem destruir a fé, não foi o caso, muito pelo contrário a minha indignação me levou a outra direção.

Voltemos ao texto: Por quê a Bíblia traz a passagem sobre Saul e a feiticeira de En-dor? (1 Sm 28.3-25).

Uma explicação plausível é que desde a pré-história de Israel até a edição do Pentateuco, Israel passou por três fases, a saber: do politeísmo; a monolatria intolerante até chegar na monoteísmo radical. A edição dos livros da Lei, dá-se no século VI aC por composição deuteronomista dos livros do Pentateuco e dos profetas anteriores, sob a influência de um rigoso monoteísmo radical que impunha sobre a idolatria todo o peso da destruição de Israel do norte. Nesse contexto de reformulação da religião, e a unificação do povo baseada no culto ao Deus único, tais reformadores provavelmente tenham banido do povo todos os costumes e mitos considerados ameaçadores e ofensivos a Yahweh.

O fato da história contada em 1 Sm 28.3-25, entre a consulta de Saul e a feiticeira, serve de exemplo para o povo da rejeição de Yahweh a tais atos e serviu de alerta às gerações futuras que tais leis não foram revogadas.
Lembramos que, embora proibidos, os ritos de necromancia eram conhecidos em Israel, tanto que seu próprio rei recorre à prática e convence a mulher a executá-la. Tendemos a acreditar que, na verdade, as prescrições acerca dos ritos podem ser um indicativo do quão conhecidos eles deviam ser: a Lei regia que os mortos não podiam ajudar e nem ser ajudados, que qualquer forma de culto aos espíritos era rejeitada e que consultas mediúnicas aos mortos deveriam ser punidas com apedrejamento (Cf. Lv 19.26, 31; 20.6, 27; Dt 18.9-12). Esta última normativa é ameaçadora e pode muito bem ter tido força de repressão em virtude de uma situação vigente. No entanto e curiosamente, mesmo que as normativas e proibições sinalizem que a prática pode ter existido entre os antigos israelitas, o Pentateuco não apresenta quaisquer sinais destes cultos, o que imediatamente nos remete às perguntas: estes sinais teriam sido removidos antes que os livros fossem editados? Por qual motivo? Em que ponto na história israelita Deus teria proibido a necromancia e de que forma as pessoas ouviram essa proibição?

Em algum momento teria havido em Israel uma prática autorizada destes ritos nos moldes daqueles encontrados nas redondezas? Do que consistiam? Qual era sua motivação? Mary Douglas[1] entende que essa mudança veio com o livro de Levíticos, descrito por ela como “uma religião totalmente reformada”. Pode ser que esta religião reformada, quem sabe em função de uma unificação do povo baseada no culto à um Deus único, tenha banido os ritos de necromancia ao considerá-los ofensivos ou ameaçadores do princípio de singularidade cúltica adotado. Uma hipótese que nos ocorre neste momento, quem sabe paralela a esta última, é a de que a ausência de pistas destes rituais pudessem influenciar que outras gerações tomassem contato com a antiga prática, em preservação da Aliança. Contudo, as perguntas anteriores e outras que se possam levantar permanecem difíceis de serem respondidas, especialmente em razão da ausência de material específico paralelo ao texto sagrado e que remonte ao período em questão. Assim, toda lacuna que se busque preencher não encontrará mais que alternativas hipotéticas.

Vejamos mais uma delas: no imaginário do Israel pré-exílio desde que a morte também representava o fim de todos os relacionamentos, inclusive com a divindade, uma hipótese é a de que a proibição dos ritos de necromancia teria se dado em função de um distanciamento da ideia de que os mortos “sobrevivem” em algum outro tipo de existência à parte do governo de Yahweh, podendo manter um relacionamento entre si e com os vivos à revelia do Deus de Israel, assumindo um status de deuses ou semideuses. Talvez a aceitação dessa ideias significasse o estabelecimento de um panteão, mesmo que formando por deuses de um tipo inferior. Lembremos que na história de Saul e a mulher de En-dor, quando invocado, Samuel aparece como uma espécie de semideus, capaz até mesmo de conhecer o futuro. A mulher de En-dor não classifica a imagem que lhe aparece como um fantasma, mas como um ser divino, um “elohim” (1 Sm 28.13).

Uma possibilidade é que as celebrações funerárias com banquetes, rituais de exorcismo, aplacamentos e consultas aos mortos, etc. tenham sido suplantados em algum momento na história de Israel por motivos que podem ir desde a aversão israelita aos cultos vizinhos até a organização nacional em torno do monoteísmo.








[1] 1921-2007 – Antropóloga e Teóloga

terça-feira, 9 de junho de 2015

Cuidado!!!!! Com o que “Parece, mas não é!!!”

Uma reflexão sobre a auto-exaltação.

 “De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai”.
Filipenses 2,5-11

Filipos era uma cidade da Macedônia fundada por Felipe II, pai de Alexandre o Grande, no ano de 356 a.C. Em 42 a.C., com imperador romano Otaviano, inicia-se uma grande colonização, o que a tornou  uma cidade importante do Império Romano. Considerada uma porta de entrada da Europa em relação aos visitantes provenientes da Ásia. Filipos tornou-se uma colônia militar romana, onde se assentavam principalmente veteranos, e a cidade acabou ganhando status de Colônia Augusta Júlia Philippensis[1], o que a tornava uma réplica menor de Roma. Seus cidadãos tinham cidadania romana e possuíam inclusive direitos de propriedade equivalentes aos de uma terra em solo italiano. Os oficiais políticos eram descendentes dos soldados romanos, o que reforçava ainda mais o caráter latino da cidade, refletindo também seu pensamento e religião. Eram frequentes os cultos às divindades romanas, como JúpiterJuno e Marte, à antigos deuses italianos e ao culto do Imperador.

A Epístola de Paulo aos Filipenses foi escrita por volta do ano 53 a 58 d.C., conforme a tradição cristã, durante o período que o apóstolo Paulo provavelmente estava  em Éfeso. Éfeso foi o cenário inspirador para a teologia paulina, lá se encontrava o templo a duas divindades, a deusa Roma e o deus Julius Cesar. Lá também escavadores encontraram artefatos que sugerem o casamento de Augusto com Artêmis[2], ou seja, de Roma com Éfeso. Nesse cenário de divinização e auto-glorificação de Cesar, Paulo fala do verdadeiro Deus que se auto-esvazia da sua glória. Enquanto Cesar se diviniza pela dominação, Jesus o faz pela crucificação.

Nesta afetuosa epístola, Paulo elogia os filipenses por sua fé em Jesus e por seu apoio, os ajuda a centralizar a vida em Cristo e a estar contentes em todas as situações, ser fortes em oração e imitar com alegria o exemplo de seu Salvador, Jesus Cristo.

O propósito do Apóstolo Paulo ao escrever essa carta, era incentivar a igreja a se alegrar. Paulo mostra que mesmo preso ele se alegrava, e que devemos nos alegrar independente de qual seja as circunstancias.

A perícope de Filipenses 2:5-11 pode ter sido um hino cristão, uma kenosis (esvaziamento) de Jesus, o Cristo. O hino fala do humilde dos humildes, alguém que não se identificou com a escravidão, mas que revela a vontade libertadora do Deus transcendente.[3] Paulo instrui os filipenses a ter a mente de Cristo, servirem bem uns aos outros, deixando seus próprios desejos pelo bem comum de todos os santos, eles teriam que aprender a ser desprendidos de bens materiais. Muitos reinos tinham caído por causa do egoísmo e da ganância. Mas o reino do céu estava estabelecido no serviço desinteressado aos outros. Jesus Cristo -- o próprio Rei -- veio como um servo (vs. 6-7), e serviu a toda a humanidade vivendo sem pecado e morrendo numa cruz. Se Jesus pode humilhar-se para descer do céu e servir os homens, estes podem humilhar-se para descer de seu orgulho e servir os outros. O tema “servo sofredor” Isaias 53 está habitualmente ligado a esse texto, refere-se ao Messias. Ele é altamente exaltado e diante do qual os reis fecharão a boca. O Messias é o renovo que surgiu da caída dinastia davídica. Ele se tornou o Rei dos Reis. Ele forneceu a expiação final. Paulo fala dele em 2 Coríntios 8:9 onde lemos: “Porque já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, por amor de vós se fez pobre; para que pela sua pobreza enriquecêsseis”.

A mensagem de Filipenses 2,5-11, nos mostra como vivermos o propósito de Deus, necessitamos viver o modelo estabelecido por ele, para alcançarmos a vontade de Deus. Olhar para Cristo “autor e consumador da nossa fé” e nosso exemplo. Em Romanos 8:29 diz “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. Jesus é a qualidade que temos que alcançar em nossa jornada. Ele é o alvo, o modelo estabelecido pelo Pai. O sentimento que houve em Cristo é o mesmo que deverá existir em nós. Temos que nos ajustar a Ele para que Deus seja glorificado.
Jesus subsistindo em forma de Deus, Nele habitava a plenitude de Deus: “o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação”, “porque aprouve a Deus que nele habitasse a plenitude” Colossenses 1.15 e 19. O Deus Todo-Poderoso se fez homem e habitou entre nós.

A obra de Cristo foi tão maravilhosa, que mesmo sendo Deus agiu como servo. Normalmente nós sabemos que um deus recebe o serviço dos seus servos. As pessoas quando possui algum deus elas entregam as suas devoções em serviço a este deus. Fazem um altar, um trono, ofertas, isto é, tudo aquilo que vai reverenciar ao tal deus. Aquilo que este deus exigir será feito pelos seus súditos. Mas Cristo não usou de autoritarismo e nem explorou os fracos.

Cristo se esvaziou.  Esvaziar significa desocupar o espaço, tirar a importância. Jesus tirou de si a importância de ser Deus, Ele desocupou o lugar de Deus. Esse sentimento tem que prevalecer em nossas vidas, precisamos esvaziar o nosso ser.

Por que os cristãos contemporâneos não seguem o exemplo de Cristo?

O mundo prega o sentimento de auto-exaltação, mas o exemplo de Cristo é outro.  As pessoas querem ser deuses, famosas, grandes, egocêntricas, donas dos próprios caminhos, buscando cargos e usando estes para usurpar outros, querem ser agradados, porém Deus nos leva a desocuparmos de tudo. O esvaziar tem uma consequência em nossas vidas que é muito salutar, faz cair o egoísmo que impera em nossos corações. Se humilhar é uma virtude que nos dá um sentimento de nossa fraqueza. A humilhação como diz é uma virtude. Para Deus é uma das maiores virtudes, pois ela mostrará que uma pessoa não é soberba (orgulhosa) e se tem algo que Deus abomina é o soberbo.

Conheço um ministro do evangelho que já foi pastor, depois bispo, apóstolo, agora se auto-denominou PRIMAZ,  o meu questionamento é: o que ele será no futuro para satisfazer o seu ego?  Voltemo-nos as escrituras:

E amam os primeiros lugares nas ceias e as primeiras cadeiras nas sinagogas, E as saudações nas praças, e o serem chamados pelos homens; Rabi, Rabi.
Mateus 23:6,7

Os fariseus e os escribas usavam a religião para se promover diante dos homens, quando havia banquetes eles procuravam sentar nos primeiros lugares, nas sinagogas, que eram as igrejas da época, eles tinham lugares especiais. Quando eles passavam nas ruas eles queriam ser cumprimentados pelos homens, mestre, rabi, meu guia, doutor. Eles gostavam de títulos e gostavam que as pessoas se dirigissem a eles usando esses títulos. Isso é ser religioso. Religioso é aquele que pratica o cristianismo com o objetivo de ter primazia, controle, espaço. É aquele que explora a religião com o objetivo de se promover. Tem muita gente que explora o cristianismo para ganhar dinheiro, tá cheio de mercenário no meio evangélico, gente que se aproveita da religiosidade das pessoas para ganhar dinheiro. Seja se promovendo porque é um bom pregador, um bom palestrante ou um bom cantor. Há muitas maneiras que as pessoas criam para ganhar dinheiro em nome de Jesus. Mas tem gente que gosta de popularidade, mas do que de dinheiro. Tem gente que pensa que o dinheiro é o ídolo maior de todos, mas não, tem gente que não está preocupada com dinheiro, ele quer ser popular, quer ser adorado pelas pessoas, quer estar em primazia, quer ser respeitado pelas pessoas, quer que as pessoas olhem para ele ou ela com admiração.  Os fariseus gostavam dessas duas coisas da auto-exaltação e do dinheiro.

Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus. Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo”. Mateus 23:8-10

Jesus sempre condenou esse apreço que o fariseu tinha pelo primeiro lugar e pelas saudações que as pessoas davam para eles nas sinagogas e nas praças. Tem pessoas que gostam disso ai, e você conhece o religioso quando ele faz muita questão dessas coisas. E nós conhecemos muita gente assim nas igrejas, principalmente na liderança. São pastores, bispos, apóstolos que gostam de ser chamados assim, ou melhor, fazem questão desses títulos. Todavia quando analisamos as escrituras notamos que Jesus sempre evitou títulos, mestre, rabi. E sempre condenou a exaltação de pessoas no lugar de Deus. A liderança que Deus coloca na igreja recebe dons espirituais para servir a igreja e não para se colocar em destaque e ambicionar ser reverenciado com títulos. Isso parece, mas não é cristianismo. Isso é religião quando exalta o homem, a direção do comportamento da liderança cristã está em Mt 23:11 “O maior dentre vós será vosso servo”. Quer ser grande, sirva. “E o que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado". Mateus 23:12.

Sigamos o exemplo de Jesus “que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens”. Isso é cristianismo.




[1] Schenelle, Udo – Paulo: Vida e Pensamento –p. 464
[2] At 19, 28-34 por duas vezes podemos ler “grande é a Artêmis dos efésios.
[3] Pereira, Sandro – Dissertação de Mestrado – p.23.

domingo, 7 de junho de 2015

A MULHER, A SUBMISSÃO, A IGREJA E SOCIEDADE DO SÉC XXI.

A cada dia que passa, a mulher conquista espaços que durante muito tempo foram dominados pelos homens. Hoje, ela é chefe, líder, executiva, comandante e… pastora.
Para uns, é natural e aceitável que elas estejam em posição de destaque, não só no mercado de trabalho, mas também dentro da igreja. Para outros, a mulher precisa ter uma missão abaixo da que o homem recebeu. Ou seja, submissão.
Mas o que significa “ser submisso” (sujeição, força repressiva, domínio) e qual é o impacto desse conceito na vida da mulher do século XXI? Vejamos o que as escrituras sagradas nos ensinam? Antes de responder a essa pergunta, primeiro precisamos entender, o quanto pode ser prejudicial uma tradução equivocada da palavra de Deus e quais são as consequências que isso pode levar.

Usaremos como exemplo o versículo 1 Co 11,10 em seu texto original no grego.

δια τουτο οφειλει η γυνη εξουσιαν εχειν επι της κεφαλης δια τους αγγελους

Por isso deve a mulher autoridade ter sobre a cabeça por causa dos anjos (tradução literal). A palavra autoridade  no grego “exousia” (grifada acima) tem o sentido de autoridade, habilidade. Ver http://bibliaportugues.com/interlinear/1_corinthians/11-10.htm

Agora vejamos o que diz a tradução da Bíblia Almeida Revisada, 
Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por causa dos anjos” 1Co 11.10.
Nesta tradução a palavra no grego εξουσιαν (exousia) é traduzida por “submissão”, ou seja, a mulher tinha habilidade, autoridade e licença para governar a igreja em pé de igualdade com os homens, agora segundo essa tradução, ela está submissa.

Mas não para por aqui, vejamos o mesmo versículo na tradução da Bíblia Almeida Revista e Atualizada. 
“Por tanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade”. 
Percebemos que nesta tradução a submissão passa a ser visível, o tradutor acrescenta inoportunamente no texto original a palavra véu. Neste caso, segundo o entendimento desse versículo além da mulher ser submissa ela precisa demonstrar a sua submissão usando o véu.

Na Bíblia NTLH (Nova Tradução da Linguagem de Hoje), a situação da mulher piora de vez, vejamos 
Portanto, por causa dos anjos, a mulher deve por um véu na cabeça para mostrar que esta debaixo da autoridade do marido” 1 Co 11,10. 
Nesta tradução, além do jugo do véu, ela ainda precisa estar debaixo da autoridade do marido (outra frase que não existe no original).  Entre outras palavras, aquela que não colocar o véu e não obedecer ao seu respectivo marido está em desacordo com a palavra de Deus.

Fica evidente o quanto algumas traduções contemporâneas se desviaram do texto original, dando margem a uma discriminação e submissão da mulher em determinados ministérios. Em apenas três traduções foram acrescentados ao texto original as palavras: "submissão", "trazer um véu na cabeça", "por um véu" e "está debaixo da autoridade do marido". Enquanto que a palavra chave desse versículo εξουσιαν (exousia), cuja tradução é autoridade, habilidade foi retirada do texto bíblico.


Desta forma, podemos notar o quão prejudicial tem sido a situação feminina, ela que lutou tanto para progredir  na sociedade e vem conseguindo seu lugar ao Sol. Em algumas “igrejas” onde ela deveria ter liberdade, a mulher ainda está estigmatizada na Eva mitológica, fruto do machismo, da intolerância de alguns que se escondem por traz da insipiência bíblica. Pois conseguiram transformar o que era uma habilidade em submissão, o que era poder (autoridade) agora se transforma em dependência.

Essa inabilidade na tradução desse versículo, ocasionou inúmeras interpretações equivocadas da palavra de Deus. A Bíblia é o sagrado e não cabe a nós discutirmos sobre o sagrado, mas neste caso precisamos reparar essa injustiça. Quantas vidas nasceram, viveram e morreram debaixo dessa submissão? E não foi esse o plano de Deus, para o criador não há separação entre homens e mulheres.

“Pois todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes.  Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Gálatas 3:27-28.

É para que sejamos livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão. Gálatas 5:1


Se, portanto, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. João 8:36

terça-feira, 26 de maio de 2015

Didaqué (ano 145 -150 d.C.)

Didaqué: A Instrução dos Doze Apóstolos

(Ano 145-150 DC)

O CAMINHO DA VIDA E O CAMINHO DA MORTE

CAPÍTULO I
1 Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois. 
2 Este é o caminho da vida: primeiro, ame a Deus que o criou; segundo, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você não quer que façam a você.
3 Este é o ensinamento derivado dessas palavras: bendiga aqueles que o amaldiçoam, reze por seus inimigos e jejue por aqueles que o perseguem. Ora, se você ama aqueles que o amam, que graça você merece? Os pagãos também não fazem o mesmo? Quanto a você, ame aqueles que o odeiam e assim você não terá nenhum inimigo.
4 Não se deixe levar pelo instinto. Se alguém lhe bofeteia na face direita, ofereça-lhe também a outra face e assim você será perfeito. Se alguém o obriga a acompanhá-lo por um quilometro, acompanhe-o por dois. Se alguém lhe tira o manto, ofereça-lhe também a túnica. Se alguém toma alguma coisa que lhe pertence, não a peça de volta porque não é direito.
5 Dê a quem lhe pede e não peças de volta pois o Pai quer que os seus bens sejam dados a todos. Bem-aventurado aquele que dá conforme o mandamento pois será considerado inocente. Ai daquele que recebe: se pede por estar necessitado, será considerado inocente; mas se recebeu sem necessidade, prestará contas do motivo e da finalidade. Será posto na prisão e será interrogado sobre o que fez... e daí não sairá até que devolva o último centavo. 
6 Sobre isso também foi dito: que a sua esmola fique suando nas suas mãos até que você saiba para quem a está dando.

CAPÍTULO II
1 O segundo mandamento da instrução é:
2 Não mate, não cometa adultério, não corrompa os jovens, não fornique, não roube, não pratique a magia nem a feitiçaria. Não mate a criança no seio de sua mãe e nem depois que ela tenha nascido.
3 Não cobice os bens alheios, não cometa falso juramento, nem preste falso testemunho, não seja maldoso, nem vingativo.
4 Não tenha duplo pensamento ou linguajar pois o duplo sentido é armadilha fatal.
5 A sua palavra não deve ser em vão, mas comprovada na prática.
6 Não seja avarento, nem ladrão, nem fingido, nem malicioso, nem soberbo. Não planeje o mal contra o seu próximo.
7 Não odeie a ninguém, mas corrija alguns, reze por outros e ame ainda aos outros, mais até do que a si mesmo.

CAPÍTULO III
1 Filho, procure evitar tudo aquilo que é mau e tudo que se parece com o mal.
2 Não seja colérico porque a ira conduz à morte. Não seja ciumento também, nem briguento ou violento, pois o homicídio nasce de todas essas coisas.
3 Filho, não cobice as mulheres pois a cobiça leva à fornicação. Evite falar palavras obscenas e olhar maliciosamente já que os adultérios surgem dessas coisas.
4 Filho, não se aproxime da adivinhação porque ela leva à idolatria. Não pratique encantamentos, astrologia ou purificações, nem queira ver ou ouvir sobre isso, pois disso tudo nasce a idolatria.
5 Filho, não seja mentiroso pois a mentira leva ao roubo. Não persiga o dinheiro nem cobice a fama porque os roubos nascem dessas coisas.
6 Filho, não fale demais pois falar muito leva à blasfêmia. Não seja insolente, nem tenha mente perversa porque as blasfêmias nascem dessas coisas.
7 Seja manso pois os mansos herdarão a terra.
8 Seja paciente, misericordioso, sem maldade, tranquilo e bondoso. Respeite sempre as palavras que você escutou.
9 Não louve a si mesmo, nem se entrege à insolência. Não se junte com os poderosos, mas aproxima dos justos e pobres.
10 Aceite tudo o que acontece contigo como coisa boa e saiba que nada acontece sem a permissão de Deus.

CAPÍTULO IV
1 Filho, lembre-se dia e noite daquele que prega a Palavra de Deus para você. Honre-o como se fosse o próprio Senhor, pois Ele está presente onde a soberania do Senhor é anunciada.
2 Procure estar todos os dias na companhia dos fiéis para encontrar forças em suas palavras.
3 Não provoque divisão. Ao contrário, reconcilia aqueles que brigam entre si. Julgue de forma justa e corrija as culpas sem distinguir as pessoas.
4 Não hesite sobre o que vai acontecer.
5 Não te pareças com aqueles que dão a mão quando precisam e a retiram quando devem dar.
6 Se o trabalho de suas mãos te rendem algo, as ofereça como reparação pelos seus pecados.
7 Não hesite em dar, nem dê reclamando porque, na verdade, você sabe quem realmente pagou sua recompensa. reverência, como à própria imagem de Deus.
12 Deteste toda a hipocrisia e tudo aquilo que não agrada o Senhor.
13 Não viole os mandamentos dos Senhor. Guarde tudo aquilo que você recebeu: não acrescente ou retire nada.
14 Confesse seus pecados na reunião dos fiéis e não comece a orar estando com má consciência. Este é o caminho da vida.

CAPÍTULO V
1 Este é o caminho da morte: primeiro, é mau e cheio de maldições - homicídios, adultérios, paixões, fornicações, roubos, idolatria, magias, feitiçarias, rapinas, falsos testemunhos, hipocrisias, coração com duplo sentido, fraudes, orgulho, maldades, arrogância, avareza, palavras obscenas, ciúmes, insolência, altivez, ostentação e falta de temor de Deus.
2 Nesse caminho trilham os perseguidores dos justos, os inimigos da verdade, os amantes da mentira, os ignorantes da justiça, os que não desejam o bem nem o justo julgamento, os que não praticam o bem mas o mal. A calma e a paciência estão longe deles. Estes amam as coisas vãs, são ávidos por recompensas, não se compadecem com os pobres, não se importam com os perseguidos, não reconhecem o Criador. São também assassinos de crianças, corruptores da imagem de Deus, desprezam os necessitados, oprimem os aflitos, defendem os ricos, julgam injustamente os pobres e, finalmente, são pecadores consumados. Filho, afaste-se disso tudo.

CAPÍTULO VI
1 Fique atento para que ninguém o afaste do caminho da instrução, pois quem faz isso ensina coisas que não pertencem a Deus.
2 Você será perfeito se conseguir carregar todo o jugo do Senhor. Se isso não for possível, faça o que puder.
3 A respeito da comida, observe o que puder. Não coma nada do que é sacrificado aos ídolos pois esse culto é destinado a deuses mortos.

A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA CAPÍTULO VII
1 Quanto ao batismo, faça assim: depois de ditas todas essas coisas, batize em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
2 Se você não tiver água corrente, batize em outra água. Se não puder batizar com água fria, faça com água quente.
3 Na falta de uma ou outra, derrame água três vezes sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
4 Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Você deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias.

CAPÍTULO VIII
1 Os seus jejuns não devem coincidir com os dos hipócritas. Eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana. Porém, você deve jejuar no quarto dia e no dia da preparação.
2 Não reze como os hipócritas, mas como o Senhor ordenou em seu Evangelho. Reze assim: "Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai nossa dívida, assim como também perdoamos os nossos devedores e não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal porque teu é o poder e a glória para sempre".
3 Rezem assim três vezes ao dia.

CAPÍTULO IX
1 Celebre a Eucaristia assim:
2 Diga primeiro sobre o cálice: "Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre".
3 Depois diga sobre o pão partido: "Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre.
4 Da mesma forma como este pão partido havia sido semeado sobre as colinas e depois foi recolhido para se tornar um, assim também seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino, porque teu é o poder e a glória, por Jesus Cristo, para sempre".
5 Que ninguém coma nem beba da Eucaristia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor pois sobre isso o Senhor disse: "Não dêem as coisas santas aos cães".

CAPÍTULO X
1 Após ser saciado, agradeça assim:
2 "Nós te agradecemos, Pai santo, por teu santo nome que fizeste habitar em nossos corações e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre.
3 Tu, Senhor onipotente, criaste todas as coisas por causa do teu nome e deste aos homens o prazer do alimento e da bebida, para que te agradeçam. A nós, orém, deste uma comida e uma bebida espirituais e uma vida eterna através do teu servo.
4 Antes de tudo, te agradecemos porque és poderoso. A ti, glória para sempre.
5 Lembra-te, Senhor, da tua Igrreja, livrando-a de todo o mal e aperfeiçoando-a no teu amor. Reúne dos quatro ventos esta Igreja santificada para o teu Reino que lhe preparaste, porque teu é o poder e a glória para sempre.
6 Que a tua graça venha e este mundo passe. Hosana ao Deus de Davi. Venha quem é fiel, converta-se quem é infiel. Maranatha. Amém."
7 Deixe os profetas agradecerem à vontade.

A VIDA EM COMUNIDADE CAPÍTULO XI
1 Se vier alguém até você e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido.
2 Mas se aquele que ensina é perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, não lhe dê atenção. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justiça e conhecimento do Senhor, você deve acolhê-lo como se fosse o Senhor.
3 Já quanto aos apóstolos e profetas, faça conforme o princípio do Evangelho.
4 Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor.
5 Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta.
6 Ao partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta.
7 Não ponha à prova nem julgue um profeta que fala tudo sob inspiração, pois todo pecado será perdoado, mas esse não será perdoado.
8 Nem todo aquele que fala inspirado é profeta, a não ser que viva como o Senhor. É desse modo que você reconhece o falso e o verdadeiro profeta.
9 Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa não deve comer dela. Caso contrário, é um falso profeta.
10 Todo profeta que ensina a verdade mas não pratica o que ensina é um falso profeta.
11 Todo profeta comprovado e verdadeiro, que age pelo mistério terreno da Igreja, mas que não ensina a fazer como ele faz não deverá ser julgado por você; ele será julgado por Deus. Assim fizeram também os antigos profetas.
12 Se alguém disser sob inspiração: "Dê-me dinheiro" ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue.

CAPÍTULO XII
1 Acolha toda aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a esquerda da direita.
2 Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entretanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias, se necessário.
3 Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe para se sustentar.
4 Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudência, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio.
5 Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha cuidado com essa gente!

CAPÍTULO XIII
1 Todo verdadeiro profeta que queira estabelecer-se em seu meio é digno do alimento.
2 Assim também o verdadeiro mestre é digno do seu alimento, como qualquer operário.
3 Assim, tome os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os dê aos profetas, pois são eles os seus sumos-sacerdotes.
4 Porém, se você não tiver profetas, dê aos pobres.
5 Se você fizer pão, tome os primeiros e os dê conforme o preceito.
6 Da mesma maneira, ao abrir um recipiente de vinho ou óleo, tome a primeira parte e a dê aos profetas.
7 Tome uma parte de seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses, conforme lhe parecer oportuno, e os dê de acordo com o preceito.

CAPÍTULO XIV
1 Reúna-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer após ter confessado seus pecados, para que o sacrifício seja puro.
2 Aquele que está brigado com seu companheiro não pode juntar-se antes de se reconciliar, para que o sacrifício oferecido não seja profanado. 
3 Esse é o sacrifício do qual o Senhor disse: "Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro porque sou um grande rei - diz o Senhor - e o meu nome é admirável entre as nações".

CAPÍTULO XV
1 Escolha bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres.
2 Não os despreze porque eles têm a mesma dignidade que os profetas e os mestres.
3 Corrija uns aos outros, não com ódio, mas com paz, como você tem no
Evangelho. E ninguém fale com uma pessoa que tenha ofendido o próximo; que essa pessoa não escute uma só palavra sua até que tenha se arrependido. 
4 Faça suas orações, esmolas e ações da forma que você tem no Evangelho de nosso Senhor.

O FIM DOS TEMPOS CAPÍTULO XVI
1 Vigie sobre a vida uns dos outros. Não deixe que sua lâmpada se apague, nem afrouxe o cinto dos rins. Fique preparado porque você não sabe a que horas nosso Senhor chegará.
2 Reúna-se com freqüência para que, juntos, procurem o que convém a vocês; porque de nada lhe servirá todo o tempo que viveu a fé se no último instante não estiver perfeito.
3 De fato, nos últimos dias se multiplicarão os falsos profetas e os corruptores, as ovelhas se transformarão em lobos e o amor se converterá em ódio.
4 Aumentando a injustiça, os homens se odiarão, se perseguirão e se trairão mutuamente. Então o sedutor do mundo aparecerá, como se fosse o Filho de Deus, e fará sinais e prodígios. A terra será entregue em suas mãos e cometerá crimes como jamais foram cometidos desde o começo do mundo.
5 Então toda criatura humana passará pela prova de fogo e muitos, escandalizados, perecerão. No entanto, aqueles que permanecerem firmes na fé serão salvos por aquele que os outros amaldiçoam.

6 Então aparecerão os sinais da verdade: primeiro, o sinal da abertura no céu; depois, o sinal do toque da trombeta; e, em terceiro, a ressurreição dos mortos. 
7 Sim, a ressurreição, mas não de todos, conforme foi dito: "O Senhor virá e todos os santos estarão com ele". 
8 Então o mundo assistirá o Senhor chegando sobre as nuvens do céu.

Do politeísmo ao monoteísmo, a saga de um povo.

A imagem que a historiografia bíblica esboça da saga do relacionamento de Israel com YHWH, pode ser descrita em três fases, ou seja, do politeísmo a monolatria intolerante e, por fim, ao monoteísmo radical.
A pré-história e a história primitiva de Israel, usando como fontes os livros veterotestamentários de Gênesis, apresenta a divindade denominada Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó, é uma divindade que na história das religiões é denominada “Deus dos Pais”. O característico dessas divindades é que elas não se vinculam a um determinado lugar ou a um santuário fixo, mas assumem uma relação pessoal com o grupo de pessoas que a cultuam. Por isso, o Deus dos pais não tem nome próprio; ele é chamado pelo nome da pessoa que o cultuou primeiro, e fundou seu culto, a quem esse Deus apareceu primeiro para dar-lhe determinadas promessas. Por isso, ele se chama “Deus do meu pai”, “Deus do teu pai”, ou, em fase posterior, “Deus de Abraão”, “Deus de Isaque”, “Deus de Jacó”, e, finalmente “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. O motivo das promessas de descendência e terra é um motivo antigo e corresponde aos anseios mais profundos de todo pastores nômades em situação de transumância. É possível compreender a religião dos deuses dos pais como a variante nômade ou seminômade do culto a El ou Elohim, comum a todos os semitas.
Um forte indício disso são os nomes estranhos que encontramos na pré-história de Israel. São nomes em forma de orações com o imperfeito de um verbo e um nome divino, ou em forma abreviada sem o nome divino (Yisra-el, Yizkak-el, ou Yakob-el) e  futuramente as formas compostas do nome de Deus, tais como: El-Shadai, El-Gibor, El-Elion, etc.
A primeira advertência contra o politeísmo hebraico vem com o Decálogo Ex 20:3 “Não terás outros deuses diante de mim”. Essa declaração, a segunda lei do Decálogo além de comprovar o politeísmo já implantado entre os hebreus, devido a contaminação da idolatria, mostra a visão monolatra do Israel primitivo.
Somente durante a dominação assíria e neobabilônica, época pré-exílica, podemos descrever a ideologia deuteronomista como “monolatria intolerante”. YHWM é o único Deus que Israel deve adorar, mas a existência de outras divindades não é contestada, pelo contrário: o livro do Deuteronômio está cheio de exortações a não “seguir os outros deuses”, o que provavelmente alude a procissões com estátuas cúlticas.
No inicio do período persa, pós-exílio também chamada de judaísmo posterior, houve aparentemente, entre a elite, uma guinada para um monoteísmo mais radical, como se mostra especialmente na polêmica contra as estátuas cúlticas e as divindades das nações, no assim chamado segundo Isaias (Is 40-55). Alguns textos tardios da História Deuteronomista refletem esta mudança da monolatria para o monoteísmo. É especialmente o caso de Dt 4, esse capítulo fornece, após uma instrução (v.1-9), uma nova interpretação dos acontecimentos no Horeb apresentados no cap. 5 (v.10-24). O autor de Dt 4 enfatiza o segundo mandamento do Decálogo, a interdição de estátuas de culto, e lança a idéia de que nenhuma forma de YHWH foi vista no Horeb. Ele amplia a interdição da representação de YHWH transformando-a numa rejeição geral a qualquer representação cúltica.
Israel assume assim as tradições dos patriarcas pré-israelitas. O Deus dos pais, já antigamente identificado como o Deus El, cultuado em diversos santuários locais, fundiu-se com YHWH, o Deus de Israel. A identificação do Deus dos pais com o Deus YHWH se dá no cumprimento da promessa do Deus dos pais.
O monoteísmo hebraico desenvolveu-se gradualmente como configuração religiosa no antigo Israel, basicamente entre os séculos IX e V a.C., a partir de uma realidade politeísta (existência de várias divindades) vivida há longo tempo pelo povo hebreu.
Esta forma de adoração consistia na negação de outras representações religiosas e na ênfase do culto a YHWH como único Deus.
Queremos destacar alguns elementos dessa diversidade religiosa (politeísta), bem como parte da complexidade simbólica que está por detrás do processo de desenvolvimento da religião hebraica. Partindo do conceito de que o sagrado “é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade” (ELIADE, 1992, p. 27), acreditamos que este sagrado, no antigo Israel, não esteve enclausurado em uma única manifestação religiosa, mas foi partilhado por meio de uma vasta simbologia.
Conforme Reimer (2003, p. 979), o desenvolvimento do monoteísmo no antigo Israel, propriamente entre os séculos IX e V a.C., pode ser esboçado em cinco fases:
A primeira fase seria marcada pelo sincretismo entre El e YHWH, no qual El é uma divindade cananéia cujas características é ser criador da terra e pai dos Deuses (REIMER, 2003, p. 979-980).
A segunda fase, por volta do século IX a.C., seria marcada pelos conflitos com a divindade Baal. No imaginário religioso, Baal era filho de El; sua característica principal era ser responsável pela fertilidade (REIMER, 2003, p. 980).
Crüsemann (2001, p. 780) aponta especialmente a época do profeta Elias (aproximadamente século IX a.C.), como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal e no processo de sincretismo no qual YHWH incorpora as características de Baal. Para o pesquisador, os escritos bíblicos do Primeiro Testamento já teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a realidade do monoteísmo: “a proibição de se adorar outras divindades já é pressuposta em Gênesis e formulada claramente no Sinai (Ex 20,2)” (p. 781).
A terceira fase estaria marcada pela ênfase da adoração exclusiva a YHWH. O profeta Oséias, no século VIII a.C., equipara a idolatria à adoração de outras divindades. Neste período acontece a reforma de Ezequias (2Rs 18,4), que, entre outras ações, promove a remoção dos lugares altos e a destruição da serpente de bronze, Neustã. A reforma é legitimada legalmente por meio do Código da Aliança (Ex 20,22-23,29) (REIMER, 2003, p. 980-981).
Ribeiro (2002, p. 994) destaca que a citação de 2Rs 18,4 faz entender que Neustã constituía, ao lado de Aserá e YHWH, uma tríade divina em Jerusalém. Neustã era, portanto,
uma divindade relacionada aos harashim, trabalhadores dos metais (ouro, prata, bronze, ferro), da pedra e da madeira. Esteve desde cedo relacionada aos trabalhadores da mineração. Serpentes de cobre foram localizadas nos vestígios arqueológicos das minas de cobre ao sul de Israel, exatamente na região onde a tradição bíblica localiza o episódio das serpentes de bronze (Nm 21,4-9) (RIBEIRO, 2002, p. 994).
Este terceiro momento seria caracterizado também pelo sincretismo entre Baal e YHWH, bem como com outras divindades. Conforme Secretti (2006, p. 98), o processo pelo qual os atributos de Baal passam a ser apropriados por YHWH denomina-se ‘baalização’ de YHWH. A divindade YHWH passa a ser afirmada como responsável pela fertilidade, função que antes era de Baal.
A quarta fase remeteria à época imediatamente posterior à dominação assíria, com a reforma de Josias (2Rs 22-23), justificada legalmente pelo Código Deuteronômico. Ela engloba uma série de medidas que visavam a exclusividade de YHWH e sua centralidade em Jerusalém. Trata-se de algo como um “monoteísmo nacional”, que afirma a ideologia de um “deus nacional”, sendo que “o santuário central e seus agentes religiosos (sacerdotes e profetas) desempenham funções importantes neste processo” (REIMER, 2008, p. 13). Reimer (2003, p. 982)
afirma que do templo de Jerusalém teriam sido retirados utensílios feitos para Baal, Aserá e o Exército do céu; sacerdotes dos 'altos' foram depostos, a estaca sagrada (hebraico: asherah) foi destruída, cabanas onde as mulheres teciam véus para Aserá foram demolidas etc. Também os santuários do interior foram desautorizados e desmantelados. Houve, assim, claramente, uma concentração do culto a Yahveh em Jerusalém, com a conseqüente exigência da adoração exclusiva dessa divindade.
Cada vez mais, as reformas religiosas vêm carregadas de intolerância religiosa, proibindo qualquer tipo de imagens de divindades, mesmo que de YHWH. Esta fase teria repercutido intensamente no culto à Deusa Aserá, cultuada até este período como possível consorte de YHWH (REIMER, 2003, p. 982).
Secretti (2006, p. 141) ressalta que
com o surgimento do Estado, a religião camponesa, com seus mitos, foi apropriada e funcionalizada a favor do mesmo Estado, que passou a perseguir e eliminar toda e qualquer expressão religiosa popular, seus símbolos, a centralizar o culto num Deus único, em Jerusalém (2Rs 23,4- 20).
A quinta fase seria marcada pelo monoteísmo absoluto que teve sua sintetização no período do exílio (597-539 a.C.). Esta realidade pode ser percebida com clareza em Is 45,5, onde, pela boca do profeta, o próprio YHWH afirma: “Eu sou YHWW e fora de mim não existe outro Deus”. E Gn 1 seria a afirmação do poder criacional de YHWH diante do domínio babilônico ancorado na fidelidade à divindade Marduc. No entanto, o pós-exílio (539-445 a.C.), época do domínio persa e do retorno das elites sacerdotais exiladas na Babilônia, seria o momento de maior afirmação do monoteísmo absoluto em YHWH, bem como, da supressão de qualquer referência a outras divindades, sobretudo femininas. Toda a literatura bíblica produzida e finalizada neste período terá essa tendência exclusivista em YHWH (REIMER, 2003, p. 983-984), sem, contudo, apagar por completo os indícios/vestígios e a pluralidade anterior (REIMER, 2005).

Bibliografia:
ROEMER, Thomas - A Chamada história deuteronomista , Editora Vozes –São Paulo 2005
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
CRÜSEMANN, Frank. Elias e o surgimento do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 11, n. 5, p. 779-790, 2001.
REIMER, Haroldo. Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 13, n. 5, p. 967-987, 2003.
REIMER, Haroldo. Monoteísmo e identidade. In: RICHTER REIMER, Ivoni (Org.). Imaginários da divindade: textos e interpretações. Goiânia: UCG; São Leopoldo: Oikos, 2008. p. 9-24.


RIBEIRO, Osvaldo Luiz. De Siquém a Jerusalém – Josué 24,1-28 como narrativa mítico-literária. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, São Leopoldo, n. 61, p. 52-67, 2008.