O protestantismo
tem na Bíblia a sua razão de ser. Ela é a “única regra de fé e prática”, e esse
princípio tem uma série de desdobramentos. O texto sagrado tem a primazia na
Igreja e a prédica é o ponto alto do culto cristão. Nisto todos concordam. Poderíamos
também acrescentar que a Sagrada Escritura é sinônimo de relacionamento com
Deus, daí o pregador pode ser medido pelo seu conhecimento bíblico. Lembremo-nos
que somos herdeiros da Reforma, para nós [protestantes] a construção se dá a
partir do texto bíblico, sem texto não há Protestantismo.
O reformador
Martinho Lutero teve nas Sagradas Escrituras sua inspiração. Mas em nenhum
momento a Bíblia ganhou um status de infalibilidade ou inerrância. Estes são
conceitos posteriores do fundamentalismo. Segundo Dreher, Lutero via o
Evangelho como anterior à Bíblia (cânon)[1].
Entende-se que a Bíblia não era o Evangelho, mas o que ela relata, sim, é
Evangelho. Para Lutero, a mensagem do Evangelho vinha antes da Bíblia e não depois.
Nesse sentido, portanto, a Bíblia continha a Palavra de Deus[2].
O mesmo não se aplica a João Calvino, que compreendia o texto bíblico como uma “lei
da verdade”, concepção que irá ultrapassar suas ideias no desenvolver do
Protestantismo fomentando uma relação com a Bíblia a partir da radicalidade do
literalismo[3].
À procura de uma
autoridade suprema e infalível, o Protestantismo buscou no texto bíblico a sua
fonte. Em disputas com o liberalismo teológico europeu, o Protestantismo
estadunidense formulou os fundamentos tendo como primeiro ponto “a inspiração e
inerrância da Bíblia”. Estava aí a porta de entrada para o fundamentalismo,
logo a Bíblia não contém erros em tudo que afirma[4].
A partir disso a
Bíblia deixa de ser um registro da revelação para ser a própria revelação. Quanto
àqueles que afirmam que a Bíblia contém a revelação, são qualificados como
neo-ortodoxos ou pejorativamente de “hereges”.
Um exemplo disso
é: a questão da revelação e sua relação com a Bíblia foi trabalhada por Karl
Barth, que afirmava ser a Bíblia o testemunho da revelação de Deus[5].
Rudolf Bultmann foi mais além com sua demitologização – uma maneira de ver Deus
no texto bíblico, mas não ficar espantando com o vocabulário mitológico e pré-científico[6].
Esses teólogos foram rejeitados e qualificados como hereges pela ortodoxia.
Mas, qual é a
leitura bíblica evangelística que se prega hoje nos púlpitos brasileiros?
O protestantismo
brasileiro é herdeiro dessa dicotomia Bíblia-revelação. A postura diante da
Bíblia será marcada pelo radicalismo, pela cisão, pelas disputas ideológicas e
de poder nas denominações do Protestantismo histórico, Pentecostais e
Neo-pentecostais.
Rubem Alves[7]em
sua critica diz que essa postura anula as mediações que a Bíblia tem em seu
contexto: a leitura temporal da Bíblia, ou seja, uma leitura para o seu próprio
tempo é reprimida; ocorre a destruição dos símbolos e mitos no texto; por fim,
o livre-exame deixa de existir. Mendonça resume tudo na seguinte frase “a
Bíblia ficou cativa no Protestantismo[8]”.
Para Paulo
Nogueira, a leitura bíblica evangelística brasileira tem a sua origem no
conservadorismo evangelístico americano do século XIX, nós sequer temos uma
leitura evangélica. Uma constatação inicial: existe mais literatura
fundamentalista traduzida do inglês do que literatura produzida no Brasil[9].
É a cultura da Rua Conde de Sarzedas (famosa em São Paulo por vender materiais
evangélicos).
Durante uma aula
de Ciências da Religião - Lato Sensu na UMESP, Nogueira expressou a seguinte
ideia “basicamente as ideias que nos temos [se referindo ao protestantismo
brasileiro] são ideias do evangelismo norte americano que é extremamente conservador
e é do senso comum que combate as variações e os estudos bíblicos que procuram
ver a Bíblia pela cultura, inclusive às questões emancipatórias literárias de
grupos específicos que leem a Bíblia. Em seminários de teologia, tirando os que
estão nas universidades e que são de instituições de tradição intelectual, onde
há liberdade acadêmica efetiva, os seminários pequenos sofrem inquisição na
medida em que você não está alinhado a essa linguagem teológica conservadora
que importamos e que está arraigada no nosso universo evangélico. O não
enquadramento a esse conservadorismo propicia inúmeros dissabores ministeriais
como descredenciamento e coisas do gênero. É com base na aceitação ou não deste
sistema de doutrinas (do qual acreditam que a Bíblia é fonte) que os
fundamentalistas decidem se alguém é cristão ou não (portanto se a alma terá
salvação ou perdição eterna). A função da Bíblia é dar informações (tiradas
literalmente e segundo arranjos malabarísticos entre diferentes textos) para a
construção deste edifício doutrinário”.
Para Nogueira, todo
o edifício fundamentalista é sustentado não por uma sólida hermenêutica bíblica
e sim por um sistema doutrinário. Este sistema doutrinário e a sua aceitação é
que define se uma pessoa é fundamentalista ou não. Crer nas verdades
fundamentais, a saber: a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a
redenção pelo sangue de Cristo, sua ressurreição corpórea, a segunda vinda de
Cristo, a pecaminosidade do homem e o juízo sobre o mundo, etc. fazem parte de
um cristianismo saudável e não obrigatoriamente torna o crente em um
fundamentalista.
Apresentando um
quadro (caricatural) do fenômeno religioso e social chamado fundamentalismo. As
características mais salientes [do fundamentalismo] são as seguintes:
(a) uma ênfase
muito forte sobre a inerrância da Bíblia, [isto é,] ausência de toda sorte de
erro;
(b) uma forte
hostilidade contra a teologia moderna e contra os métodos, resultados e implicações
do estudo moderno e crítico da Bíblia;
(c) uma
convicção de que aqueles que não compartilham de seus pontos de vista não são realmente
“verdadeiros cristãos” de maneira nenhuma.
Para Nogueira, o
fato é que existe uma geração de pesquisadores que estão pensando as coisas de
modo diferente, que estão voltando as suas comunidades e mudando o paradigma de
quem estuda teologia perde a fé, muito pelo contrário, o estudo crítico da
Bíblia ele não tira a fé, mas aumenta as experiências religiosas e o
conhecimento baseado na verdade. Esses pesquisadores voltam as suas igrejas e
trabalham para abrir o entendimento dos demais, não podemos no sec. XXI seguir
com os paradigmas do sec. XIX.
Alguns teólogos
vêm trabalhando para o encurtamento da distancia entre Deus e o ser humano em
seus textos. Varias literaturas de autores sérios tem sido traduzidas no país, a
proposta é buscar uma síntese entre transcendência e imanência onde a revelação
vem de fora, mas encontra ressonância na pessoa. Partindo de eixos condutores,
como a exegese contemporânea, a leitura histórico crítica, a arqueologia são
estudos que contribui na solução de questões históricas bíblicas que até então
eram inquestionáveis. A Bíblia narra a historia de um povo que viveu sua fé,
que inclui naturalmente, vicissitudes, como tramas, conquistas, derrotas,
alegrias, tristezas. Sua história foi ganhando corpo escrito depois do exílio babilônico.
E se há revelação no texto, como há de fato, ela surgiu como consequência de um
processo de fé que modelou seu pensamento e experiência[10].
O texto não surgiu como palavra feita e dada do nada e no vazio [como o livro
dos Mormos], muito pelo contrário, o texto recolhe sagas, mitos, festas,
lendas, folclore para dar claridade ao passado de Israel e sua experiência originária
com o conhecido YHWH.
Dentro do imaginário
religioso e cultural, a comunidade vivência a sua fé sem pretensão alguma de construir
dogmas, ou fundamentalismo. O texto já é um produto revelacional e não, propriamente,
revelação. A revelação não apareceu como palavra feita, como oráculo de uma
divindade escutado por um vidente, mas como experiência viva.
O texto bíblico não
esta pautado num fundamentalismo ou inerrância. Ele possi fragilidade, e está
aí a graça de Deus. As contradições, as ambivalências, o caráter histórico vêm
corroborar que o texto é humano, demasiadamente humano-divino.[11]
[1] Cf. DREHER, Martin N. Bíblia; suas leituras e
interpretações na história do cristianismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006. p. 44.
[2] Cf. TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Trad.
Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE, 1988. p. 222.
[3] Cf. ibid., p. 250.
[4] Cf. HORDERN, William. Teologia protestante ao
alcance de todos. 2. ed. Trad. Roque Monteiro de Andrade. Rio de Janeiro:
JUERP, 1979. p. 70ss.
[5]Cf. BARTH, Karl. Conceito dialético de revelação. In:
FERREIRA, Júlio Andrade (org.). Antologia teológica. São Paulo: Fonte
Editorial, 2005. p. 60ss.
[6] Cf. BULTMANN, Rudolf. Demitologização; coletânea
de ensaios. Trad. Walter Altmann e Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal,
1999.
[7] Cf. ALVES, Rubem. Religião e repressão. São
Paulo: Teológica/Loyola, 2005. p. 115ss.
[8] Cf. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. A Bíblia cativa, Cristo
no céu e a Igreja ausente. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo:
Umesp, ano IV, n. 6, p. 167-182, abr. 1989.
[9] Paulo Roberto de Souza Nogueira é Prof.Dr. em Teologia
e Professor titular de Apocaliptismo na UMESP
[10] Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. A revelação de Deus na
realização humana. Trad. Afonso Maria Ligorio Soares. São Paulo: Paulus,
1995.
[11] Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. A fragilidade de Deus – Uma
compreensão da revelação de Deus em Andrés Torres Queiruga. In: SOTER (org.). Deus
e vida; desafios, alternativas e o futuro da América Latina e do Caribe.
São Paulo: Paulinas, 2008. p. 385-406.